Segundo Andar

Eu olhava a cidade pela sacada, com os braços escorados sobre o parapeito de metal e uma xícara de café nas mãos. Um café muito ruim, mas que servia ao seu propósito.

O vapor dançava e brincava com a neve que começava a cair, pintando as ruas com uma fina camada de branco que cresceria até cobrir cada foco de cor e vida daquele pequeno globo de neve em que vivíamos.

Meu cabelo já está coberto de neve e as sardas em meu rosto e ombros encontram nos flocos de gelo uma companhia desagradável. Meus braços nus lutavam contra o frio, meus dentes batiam, meus joelhos tremiam e eu não queria sair dali. Por algum motivo havia conforto naquele clima.

O café esfriava rápido em minhas mãos enquanto eu ouvia uma música suave subir pela escada de incêndio, degrau a degrau, tecla por tecla com notas lentas e calorosas que traziam o verão de volta, abrindo caminho pela neve como uma deusa teimosa.

Aquela era a vizinha do segundo andar.

Uma mulher solitária que vivia com um gato cinza fofo aninhado aos pés do piano. Ela parecia gostar de café e pipoca, já que o perfume de ambos sempre escalava até meu apartamento, no andar de cima. Ela sempre vestia um moletom largo sobre um pijama amarelo, sempre usava uma pantufa de coelhos e um cachecol azul desgastado. E por algum motivo que não cabia a mim entender, sempre tocava quando a neve começava a cair.

Eu não lembrava seu nome, provavelmente já o tinha ouvido, mas como uma boa desmemoriada que sou, acabei esquecendo. Mas sempre me esbarrava com ela quando descia pela escada de incêndio para ir trabalhar, já que a porta do meu apartamento estava emperrada a algumas semanas e não trancava pelo lado de fora.

Ela sempre estava sorrindo. Como diabos alguém podia ser tão feliz? Ela sempre estava na cozinha quando eu passava pela sua janela e, ignorando o fato de ter uma estranha a encarando pela manhã, me cumprimentava com um aceno de cabeça e um sorriso brilhante colado ao rosto com cola permanente. Já eu, por outro lado, a cumprimentava com um sorriso cansado e preguiçoso, meio amassado pelo travesseiro duro e desconfortável.

Qual era o nome dela? Nadia? Por algum motivo os nomes que me vem à mente sempre começam com “N”... Nia? Neide? Não, definitivamente não. Vou chamá-la de “N” por enquanto, para facilitar minha vida.

O moletom da garota chamada N viria a calhar agora. Meu vestido, amarrotado pela preguiça daquele domingo à noite, colava ao corpo pela força do vento e cada vez mais o frio se abatia sobre mim.

Dentro do apartamento estava quente, eu sabia disso. Havia ligado o aquecedor antes de sair para tomar um ar. A ideia original era apenas beber meu café e voltar para dentro, talvez reclamar para o vento sobre meu chefe escroto e sofre a cafeteira que não funcionava direito, já que sempre deixava o café com gosto de queimado. Mas ali estava eu, a quase quinze minutos ouvindo N tocar.

Como queria saber o nome dela.

Ela tinha cabelos negros, trançados em cordas grossas e enfeitadas com linhas azuis. Já havia visto ela com os cabelos soltos uma vez, no elevador; eram como nuvens de tempestade. Eu estava levando o lixo fora e ela carregava uma partitura da qual não tirava os olhos. Lembro de ter tentado ler o que ela estudava pelo reflexo do metal brilhante, era uma língua alienígena para mim. E isso só deixava N ainda mais interessante.

Ela parecia completamente perdida entre as linhas. Nunca vi olhos tão brilhantes. Senti um pouco de inveja dela naquele momento, acho que meus olhos nunca brilharam daquele jeito. E agora, na minha sacada, ouvindo sua música e bebendo um café morno, me pego sentindo inveja também.

Porra... Como ela se chama? Era Naomi? Nicole? Talvez Nice? Ela tinha cara de Nice... Como a deusa da vitória. Acho que posso me apaixonar por uma Nice.

Seria um sonho e tanto alcançar uma deusa.

Meu corpo estremece com uma lufada de vento enquanto eu bebo o restante do café, está gelado. Olho para trás e então olho para baixo, quero voltar para dentro, mas a neve ainda não parou de cair. A garota do andar de baixo continua tocando. E eu continuo sentindo como se alguém tivesse sacudido a minha cidade como a um globo de neve, só para ver a neve assentar enquanto a música invade o ar.

Seja qual for o nome de N, acho que vale a pena passar frio por mais uns minutinhos.

André André
Enviado por André André em 27/03/2022
Reeditado em 27/03/2022
Código do texto: T7482281
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