Coração Ateu

“O meu coração ateu quase acreditou

Na tua mão que não passou de um leve adeus

Breve pássaro pousado em minha mão

Bateu asas e voou

Meu coração, por certo tempo, passeou na madrugada

Procurando um jardim

Flor amarela, flor de uma longa espera

Logo meu coração ateu

Se falo em mim e não em ti, é que nesse momento já me despedi

Meu coração ateu não chora e não lembra

Parte e vai-se embora”

(Letra da música “Coração Ateu” de autoria de Sueli Costa, lindamente interpretada por Maria Bethânia)

Desde muito jovem eu sempre fui uma pessoa fria em relação aos sentimentos, às paixões e ao amor.

No final da década de 1960, início dos anos 1970 eu era uma jovem saindo da adolescência e chamava a atenção dos rapazes. Nos bailes, muito comuns na época naquela cidade do interior, eu sempre era disputada para uma dança. E isso me deixava envaidecida. Mas eu não me interessava por ninguém. Gostava de saber que alguns rapazes queriam me namorar e eu sempre os deixava na expectativa, sempre dava esperanças e depois me retirava sem explicação. Isso me dava um certo prazer. Era boa a sensação daqueles rapazes se arrastando aos meus pés. E eu sempre fria e sem entregar meu coração a nenhum deles.

Aos vinte e dois anos, já quase terminando meu curso na faculdade, eu conheci Aluísio. A gente se conheceu num barzinho da cidade. Logo de cara eu senti uma imensa atração por ele. Até parecia que aquela coisa de amor à primeira vista, que eu nunca acreditei, aconteceu naquele momento. De ambas as partes. Conversamos e tudo que ele dizia me encantava, como se eu estivesse hipnotizada. Ele era muito inteligente e tinha um nível cultural e intelectual de dar inveja. Coisas que sempre me atraíram.

Ele era um cara diferente, muito diferente. Aquilo tornava tudo mais misterioso e consequentemente mais fascinante.

Ao contrário dos outros, perfeitos galanteadores, raramente ele me fazia um elogio. E quando fazia era de forma enigmática.

Jamais falou abertamente de si embora se traísse muito no comportamento. Eu, observadora nata, conseguia entendê-lo muitas vezes por seu comportamento.

Saltava aos olhos que ele era uma pessoa cheia de conflitos e complexos.

Sempre via a vida de forma negativa.

Pessimista, ele culpava o mundo por suas frustrações e cuidava de protegê-las e alimentá-las para que elas crescessem dia a dia juntamente com seus complexos e revoltas.

Desligado do mundo a ponto de passar horas sentado na escadaria de uma Igreja olhando para o nada ou ficar observando uma fonte na praça para explicar os jatos de água caindo numa analogia homem-mulher, macho-fêmea

Muitas foram as vezes que ele passou por mim sem me ver. Perdido em pensamentos. De comportamento imprevisível às vezes fugia de mim, outras vezes corria para me alcançar.

Cheio de complexos, sentia-se magoado e perseguido por nada.

Tinha o dom de fazer acreditar que os outros tinham culpa pelo que ele fez.

Condenava com veemência as mentiras, mas muitas vezes deixava de dizer a verdade.

Nós continuamos a nos encontrar e eu estava completamente apaixonada por ele. E ele demonstrava muito interesse também.

Ele demonstrava ser um pouco frio e não demonstrava nenhum interesse em um compromisso, um namoro. Mas eu não me importava com isso. Estava apaixonada e pensava nele todo o tempo. O importante era a gente estar se encontrando.

Pra mim ele era perfeito. O homem ideal. Eu me desliguei de todo mundo e passeia a viver em função dele, embora não tivéssemos compromisso.

Todos os meus pensamentos eram pra ele

Todos os meus olhares buscavam-no quando ele estava distante e concentravam-se nele quando estava comigo.

Com ele eu me sentia feliz, longe dele eu me sentia perdida.

Mas ele desligado, não me procurava, não dava um telefonema, a gente sempre se encontrava naquele barzinho onde nos conhecemos e que na época estava em alta na cidade e de lá ia para outros lugares. No entanto a cada dia ele se mostrava mais interessado e apaixonado e nossos encontros eram encantadores. Eu me sentia feliz. Estar ao lado dele era tudo que eu queria.

Era uma figura comum, não era bonito ou elegante, mas eu o enxergava perfeito.

Até o dia que ele me decepcionou pela primeira vez. Uma doída decepção. Mas eu superei, me convenci que ele não havia me decepcionado, eu que havia sonhado demais.

Afinal ele nunca disse que queria um compromisso comigo.

Outras decepções vieram. Ele se mostrava apaixonado mas não me respeitava como mulher. Fazia cenas de ciúmes se um outro olhasse pra mim, mas sempre que a gente brigava ele saia com outras garotas. E eu me sentia profundamente triste.

E a gente voltava a sair e brigava novamente. A gente já não se respeitava mais. Ele dizia que a gente precisava se desenrolar, precisava tomar uma atitude ou se separar de vez. Mas não me deixava e eu não tinha coragem de dar um basta naquela situação.

Na realidade, ele nunca me respeitou ou considerou. Encontrava comigo quando queria, falava comigo quando queria e eu aceitava tudo. Minhas amigas diziam que não me reconheciam mais, que eu parecia estar enfeitiçada, dominada, cega de paixão Ele brincava com meus sentimentos o tempo todo.

O fato é que ele me magoava, mas quando ele fazia um sinal eu estava nos braços dele.

E quando eu o via meu coração disparava. Só conseguia enxergar ele e mais ninguém.

Por quase dois anos ele fez o que quis comigo. Eu me sentia muito mal com aquela situação.

E por fim a gente quase não se encontrava mais. E eu já não me importava com isso. Meu coração já não pulava no peito quando eu o via.

Fui me interessando por outras coisas, outras pessoas e já não pensava tanto nele.

Por fim fiquei sabendo que ele estava saindo com outra. Mas não me importei. A gente já tinha se perdido um do outro há algum tempo.

E eu me encontrei com ele por acaso. Ele veio falar comigo. E meu coração permaneceu sereno.

Conversamos banalidades. Ele disse que estava com saudade.

Eu só ri com ironia e nada disse.

Não havia mais nada a ser dito.

Ele disse:

-Desejo boa sorte pra você.

-Obrigada! Desejo que consiga ser feliz.

Não dissemos mais nada. Viramos as costas e fomos embora. Aquele encontro casual não me causou qualquer reação. Parece que finalmente estava curada. Estava orgulhosa de mim. Caminhava com a altivez e a segurança de quem não estava mais sob o domínio de uma paixão que tantos dissabores me causou.

Muitas vezes ele tentou reatar nosso caso, mas eu nunca quis. Agora que eu já não me importava mais, ele me ligava e me procurava. Insistia. Mas eu já tinha voltado a ser aquela mulher fria de sempre e nunca aceitei nenhuma das investidas dele.

Hoje, lembro daquele tempo e não consigo entender os mistérios da paixão. Como pude ser tão tola e me comportar com tão pouco amor próprio? Como pude sentir tanta paixão por quem não merecia sequer um pensamento meu?

Não sinto mágoa ou tristeza. Toda forma de amor e experiência sempre vale a pena.

Tive outros namorados.

Gostei.

Casei.

Vivo bem.

Sou feliz.

Sou respeitada como toda mulher deve ser.

Mas paixão e um amor como aquele eu nunca mais vivi. E não me faz falta.

Meu coração voltou a desacreditar de amores românticos, avassaladores e intensos…

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 29/04/2022
Reeditado em 29/04/2022
Código do texto: T7505685
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