Vã Catharine - PerfeBleu

No final das contas, Guinevere não passava de uma adolescente normal, com as mesmas vontades, frustrações e dilemas que qualquer jovem com dezessete anos teria. A única coisa que não lhe era normal, era sua estranha habilidade para conseguir fazer os outros se abrirem para ela nas situações mais improváveis possíveis.

Era noite de sábado, e por algum motivo ficar em casa parecia ser uma péssima ideia, assim como geralmente era. Ainda sentada sem rumo no sofá, começou a cogitar o que faria para se entreter. Começou a ter um estalo noturno, aquele estalo que geralmente ela só tinha quando começava a ficar inquieta. De repente, já tinha arquitetado todo um plano sobre como faria para se divertir.

Sua mãe reclamou pela segunda vez da louça suja. Guinevere se levantou do sofá e foi até a cozinha, ligou a torneira e fez barulho com alguns pratos. Após alguns minutos, metade da louça estava limpa e Guinevere já tinha se dado por satisfeita. Não era do tipo que recusava ordens, embora não tivesse nenhuma intenção de finalizar com o resto das panelas.

"Mãe, vou dar um rolê. Tem problema?" Sinalizou Guinevere com um grito relativamente alto. "Cê vai onde?" Ouviu de resposta, nisso gritou com um tom pouco confiante:

— Ali...

Não se sabe se Andreia ficava satisfeita com meias respostas ou se aquilo era melhor do que o sumiço desavisado que Guinevere costumava dar quando tinha quinze anos. Não era como se ela fosse uma mãe desnaturada, mas dizer "Volta hoje hein" já era uma das melhores demonstrações de preocupação que Gwen poderia receber. E ficou feliz por ter sido assim, pegou o celular e algum dinheiro e saiu com rumo incerto.

Ficou esperando uns 12 minutos em frente a uma padaria pouco movimentada, até que o ônibus chegou e ela subiu sem ser acompanhada por ninguém.

O motorista a olhou de alto a baixo, notou seu cabelo rosa e seu estilo de roupas mais destoante do que tudo o que vira desde que começou seu turno:

— Code Club? — perguntou o motorista. Era um conhecido dela.

— Eu queria ir no Fiesta mas tô sem grana. Tá de boa pegar carona contigo?

— Senta aí na frente. Você olhou aquela questão lá que eu te pedi? — disse o motorista gentilmente apontando para um banco amarelo perto da entrada do ônibus.

— Pô, o Fábio que vai ficar na gerência. Ele pediu para te avisar que você precisa falar com o do terno. Mas que é muito provável que eles te peguem porque estão precisando... Você passa hoje no Code?

— Posso te deixar na Maciel, aí você dobra na Carijós. É pertinho. — explicou o motorista, indicando o caminho até a boate famosa que Gwen planejava ir.

O resto da viagem foi bem curta, os dois trocaram assuntos divertidos e Guinevere desceu na Maciel com a benção de seu amigo motorista e futuro dançarino de boates. Uma mensagem lhe chegou no celular, era Nicole. Sua amiga perguntou se já estava chegando. Por causa dessa mensagem, ou por causa do caminho mal iluminado que é a Carijós, principalmente quando tem que se passar debaixo da ponte das Andradas, Guinevere começou a andar mais rápido.

Guinevere era apenas outra sombra hesitante que se esgueirava entre esquina e outra, compondo assim o intrigante retrato noturno urbano. Pessoas de diversas intenções e índoles com olhares que não atreviam se cruzar, mas que timidamente observavam tudo, iam e vinham de um lado para outro deixando para trás apenas estranhas impressões quase que fantasmagóricas.

Nenhuma fonte luminosa ousava competir com as sirenes das ambulâncias ou com as placas das boates. Azul, Vermelho e Rosa iluminavam o centro de BH. Embora o clima não fosse dos melhores, havia em Gwen uma estranha e mágica sensação de que algo interessante aconteceria. Principalmente pelo fato de estar a caminho de encontrar sua parceira de matinês mais singular, Nicole Catharine.

Nicole era a encarnação da sutileza extravagante, com uma profundeza de alma deprimente madura. Poderia dar as respostas mais acertivas a respeito do motivo da angústia humana no mundo, e ao mesmo tempo, rir de piadas sobre Joãozinho.

Quando dobrou a última esquina da Carijós, seguindo pela Tamoios. Avistou Nicole banhada pela luz tímida da placa do Code Club, enquanto emanava aquela sua elegância melancólica de sempre. Uma sensação de furor e expectativa tomou conta de Gwen, que se aproximou a passos lentos como que se não quisesse ser percebida tão rápido.

— Você sabe que a sua idade não entra, né? — disse Guinevere puxando assunto logo de cara. Nicole não pareceu de nenhuma forma surpreendida. Apenas olhava com atenção o cabelo de mexas rosas de sua amiga e respondeu com mista tranquilidade:

— É... Mas acho que você consegue dar um jeito nisso, certo?

— Você é esperta. Está vendo aquele segurança de cinza? É meu padrinho. Eu entro, como e bebo tudo off.

— Foi aqui que você... - perguntou Nicole, mas foi logo interrompida por Gwen.

— Aqui? Não que eu saiba... Um dia acordei na casa de um casal. Mas eles tinham me resgatado de uma possível... Você sabe, boa noite cinderela. É muito comum nesses lugares... Mas fica tranquila, você pode apenas assistir aos dançarinos e de qualquer forma a gente precisaria pagar pelo private, então não rolaria.

Nicole mudou sua feição, de repente parecia pensar melhor em outra alternativa.

— Guinevere, você se importaria se fôssemos em outro lugar? Acho que perdi a vontade de entrar aí dentro. Talvez um lugar onde pudéssemos conversar a sós... — propôs Nicole olhando para uma rua abaixo, em seguida acrescentou — Talvez um lugar onde eu conseguisse escutar minha própria voz.

Guinevere entendeu duas coisas, ambas de forma certeira. A primeira era que Nicole não estava interessada em ir a nenhum lugar novo ou ter uma aventura liberal, e sim, conversar um pouco com Gwen. Segunda coisa era de que Nicole só desistira da ideia porque uma conversa verdadeira sobre sentimentos parecia mais propícia do que a distração entorpecente de uma balada. Sendo assim, Nicole provavelmente iria querer desabafar sobre alguma coisa, ou simplesmente ansiava por alguma companhia.

As luzes frias e desbotadas projetavam sombras esguias e quase transparentes, a medida que se reciclavam conforme Nico e Gwen se moviam entre postes de luz altos e inalcançáveis. Os carros passavam fluindo com o ritmo da vida cansada, faróis altos incidiam sobre fachadas sujas e cinzentas. Abaixo dos toldos das lojas fechadas, abrigavam-se mendigos que dormiam de costas ao fluxo do tráfico apressado da noite.

Caminharam por poucos minutos até que chegaram na praça da liberdade, cartão postal de Belo Horizonte. Nicole costumava caminhar bastante por aquela região, sempre muito pensativa naquelas noites frias de solidão infinita. No instante em que se sentaram em um dos bancos da praça, Nicole puxou um assunto aleatório mas que parecia estar preso em sua mente:

- Você não se incomoda com a efemeridade da vida?

Gwen recebeu a pergunta com diferentes sentimentos. O que se passava na mente de Nicole para que fizesse esse tipo de pergunta? Por que desistiu de ir no clube para conversar? Será que pretendia dizer algo? Guinevere respondeu com a primeira coisa que lhe veio a cabeça:

- Não... Por acaso isso faz de mim uma pessoa vazia?

Nicole sorriu.

- Acho que não... Mas você sabe que existe um estigma da contemplação?

- Hum? Fale minha língua. - respondeu Gwen pedindo para que Nicole fosse mais clara. As vezes parecia que ela guardava as coisas mais complexas para se dizer somente a ela.

- É que as pessoas tendem a aceitar as coisas como profundas ou filosóficas, apenas se elas carregarem questionamentos incertos ou negativos. Parece que você só pode ser inteligente se ao mesmo tempo for triste. Nenhum pensamento que não questione algo de forma pessimista é aceito como válido de atenção.

- Quando você começa esses assuntos é porque está pensativa... O que você realmente quer conversar? - perguntou Guinevere esperando pela parte em que Nicole começaria a desenvolver sua ideia.

Nicole era esguia e tinha uma aparência que carregava tons negros fortes nos seus cabelos esvoaçantes. Olhou com admiração à algumas flores do jardim público e respondeu com certa pungência nas palavras:

- Tudo é vão. Talvez até mesmo a vida...

Nicole começou a olhar para os carros a sua frente, totalmente entregue ante ao silêncio que se fez após sua última frase. Guinevere esperou um pouco para ver se Nicole diria algo a mais, mas após uns instantes, percebeu que ela era quem deveria tomar a palavra.

- Eu não concordo com você amor. - Gwen abraçou de forma carinhosa Nicole, enquanto penteava o cabelo dela com os dedos. - Você acha que nossa relação não tem valor?

Nicole apertou os lábios e parou de sorrir. Era a primeira vez desde que se conheceram naquele banheiro, que Guinevere citou a palavra "relação". Não que elas não tivessem uma relação, mas havia um senso comum mútuo de que não havia nenhuma responsabilidade entre as duas. Ambas se relacionavam até quando estivesse bom, se ficasse ruim, simplesmente então elas "parariam".

- É um pouco complexo. - disse Nicole dando a entender que tinha opiniões reprimidas a cerca do assunto. - Valor é algo subjetivo. É um conceito abstrato. Mas eu penso que geralmente nas relações humanas, o valor de vínculos, principalmente afetivos, tem muito mais haver com a barganha relacional do que com o relacionamento em si. Você dá muito mais valor àquilo que te dá algo em troca, do que as coisas que não te acrescentam nada. Por exemplo, tudo tem haver com sexo, menos o sexo em si. Sexo tem mais haver com dominância, status ou auto afirmação...

Nicole não precisou falar muito mais pois Gwen entendeu o que ela queria realmente dizer. Nicole estava tentando se afastar de Gwen. E isso não era exatamente uma traição pois as duas nunca prometeram responsabilidade. O problema era o fato de que o coração de Guinevere começou a arder de tristeza por causa da ideia de perder sua melhor amiga. E tudo ainda piorava pois a expressão no rosto de Nicole era como de alguém que estava totalmente decidida no que iria fazer.

- Sabe... Se você for realmente parar para pensar, nada nessa merda faz sentido. Será que não é algum tipo de burrice ficar pensando demais nas coisas? E daí se tudo é vão? Será que não é presunção demais sequer achar temos o direito de permanecer?

A feição de Nicole não mudou, embora aquelas palavras tenham lhe começado a fazer ponderar. Nicole era uma pessoa extremamente movida pela busca de equilíbrio e sentido interior, de forma que a ausência de qualquer uma dessas coisas, provocaria nela um estado de contradição mental insustentável.

- As vezes eu penso que boa parte das pessoas vivem suas vidas apenas movidas pelos instintos. São como águas vivas, vivem de pulsão e corrente. São apenas bonecos de carne que nunca pensam além, incapazes de transcender. Do outro lado existe gente que passando pela vida, deixam de vive-la e desfrutar das coisas por não verem sentido nas coisas terrenas. Hoje em dia, as pessoas se tornaram vazias e egocêntricas, idolatrando a si próprias e a tudo o que gira ao redor delas... Acho que é um problema sobre a vida. O que realmente te impulsiona? E ao mesmo tempo, qual é o valor de querer transcender se no final, os céus sabem que ao pó retornaremos?

Nicole continuou: "Se a vida acaba na morte, qual a diferença entre fazer o mal e o bem? Sabe Guinevere... - Eu tenho medo. - Disse Nicole olhando para sua amiga. Tinha um olhar de tristeza e exaustão.

- Medo de quê?

- Medo de estar me estar me tornando uma pessoa pior a cada dia... Me lembro da época da célula na igreja, íamos pra casa de uma irmã. Ela falava coisas legais, e eu até concordava. Parece que uma parte de mim ficou para trás. Tenho me sentido exausta e sem vontade de me conectar às pessoas. Relacionamentos se tornaram enfadonhos. Tenho me sentido como alguém que comeu algo ruim e se perdeu nas próprias entranhas.

Guinevere permaneceu em absoluto silêncio. Tinha medo de onde Nicole queria chegar, seu coração de apertava a cada vez que Nico descia o desfiladeiro das palavras, desenfreadamente rumo a um muro de verdades difíceis de assumir. Por fim, Nicole concluiu:

- Eu sinto que sou uma versão pior de mim mesma. Não digo que me tornei amarga, mas que estou me tornando rasa. Anestesiada para não sentir, míope para não enxergar. Os desejos carnais, as sensações, a vontade que finjo não ter... Eu queria me libertar disso tudo! Existe algo em mim que quer se libertar, para que eu possa ser verdadeira comigo mesma. E quero que isso seja uma vontade, fruto de uma decisão consciente de se apaixonar por mim própria, de me conhecer e tornar quem eu deva ser, sem nenhum fingimento a mais...

Ao voltarem pelo caminho de antes, passaram novamente pelo Code Club, mas sem nenhuma vontade de sequer olharem para aquela placa. Guinevere permanecia estuporada por toda aquela conversa. Ver a profundidade de pensamento de Nicole havia sido para ela, como um mergulhador do fundo do oceano que tenta voltar para a superfície e é esmagado pela diferença inconcebível de pressão.

Seus lábios ainda estavam ardentes pelo beijo que Nicole lhe deu ao fim da conversa. Se a partir dali Nicole permaneceria ou se afastaria, não era algo que Gwen conseguia sequer intuir. Ainda assim, algo lhe dizia que aquilo não era um relacionamento comum. Talvez ela houvesse ganhado algo melhor que uma colega de noitada. — Ela ganhou uma amiga para a vida toda...