Depois do café

A proposta vem sem ambição, o aceite soa casual.

- Café?

- Tá.

Conseguem dissimular bem o fim do mundo.

O cheiro amargo borbulha da espuma terrosa, toma a cozinha, ganha a sala, ocupa o espaço. Há muito espaço.

Houve um tempo de música , o que torna os vapores dançantes, agora, idiotamente atrasados.

O açucareiro, um pote de margarina desbotado, é empurrado sobre a mesa e recebe uma sutil negativa silenciosa.

Eles se tornaram bons em negativas silenciosas.

Os lábios chiam no primeiro gole, as xícaras fazem um barulho macio cada vez que batem sobre a mesa. Eles têm a impressão de que os sons ecoam, se repetem, a cacofonia dum grito diante do abismo.

Eles agora têm um abismo.

O que poderia ser desculpa para uma conversa se tornou o selo sobre as coisas não ditas. Uma porção de coisas não ditas. O líquido amargo ainda é quente quando confirmam que não há mesmo o que dizer.

Os goles funcionam como um cronômetro. Um deles pensa numa metáfora deslocada sobre ampulhetas, o outro, em quando foi que as palavras certas desapareceram assim, sem deixar vestígios.

E quando as xícaras se esvaziam em rara sincronia, percebem, ambos, que a porcelana está manchada, uma história cravada com a força dos fenômenos espontâneos.

- Tem que deixar de molho na água sanitária - diz a voz monótona.

- Sim - responde a voz distante.

E o fim do ritual faz crescer a expectativa pelo que vem a seguir: e então?

Alguém se levanta. Como aviso, entrega as chaves, depois põe o celular no bolso.

Um suspiro ruidoso se encaixa entre os segundos do relógio.

Os olhares se encontram num descuido. Não restou muito o que ver, só a ausência de adiamentos.

Uns pés se afastam, somem pela porta, descem uma escada íngreme.

Com ingênua surpresa, os pés que ficaram pensam no chão que sumiu depois de um café.

Cesar Bueno Franco
Enviado por Cesar Bueno Franco em 18/05/2022
Código do texto: T7518817
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