O Segredo

Quando meu avô Antônio faleceu nós fomos organizar as coisas dele.

As pessoas têm a mania de juntar tantas coisas, tantos papéis. Minha mãe e eu começamos olhar tudo e ver tudo que poderia ser preciso guardar.

Um dia, quando estava olhando uns papéis muito antigos, me deparei com uns escritos em um caderno amarelado e desgastado pelo tempo. Nem imagino como este caderno chegou até aqui. Como não se perdeu. Será que alguém leu e preferiu guardar o segredo para as próximas gerações? Será que meu bisavô Adriano leu e preferiu fingir que não sabia? Nunca saberemos. O fato é que este segredo persistiu por tantos anos. Jamais poderíamos imaginar o que minha trisavó Isaura escondia em seus escritos e em seu coração tão amargurado e sofrido. Hoje em pleno Século XXI, este segredo merece ser conhecido.

Eis o essencial de seus escritos:

“Todas as vezes que ouço o balanço das folhas das palmeiras levadas pelo vento eu me lembro daqueles acontecimentos. Como se minha mente tivesse associado para sempre aquela melodia do vento fazendo bailar as folhas das altas palmeiras do lugar com tudo que se passou.

Raramente volto a este lugar. Somente quando venho ver alguns parentes. Meu filho sempre gostou muito desta praia linda e cheia de palmeiras e coqueiros. Muitas vezes vinha mais por ele.

Eu tinha apenas vinte anos quando me casei e mudei com meu marido para este lugar. Eu, cheia de ilusões e apaixonada por ele. E sabia que ele também me amava muito.

O ano era 1891.

Eu sempre tive uma fina educação e fui criada com todo luxo e conforto. Frequentei escolas e tive uma boa formação para a época.

Eu sonhava com um lar cheio de amor e felicidade. Sonhava com os filhos que viriam e que encheriam nossa vida de alegria.

Mas não foi nada disso que aconteceu. Adriano apesar de ser sério, austero, digno e trabalhador, não era um homem que sabia demonstrar o seu amor e carinho.

Muitas vezes era rude comigo, chegando a me machucar nos nossos momentos íntimos.

Ele me dava tudo o que eu queria, mas muitas vezes era grosseiro comigo e me tratava não como sua esposa, mas como uma propriedade com a qual se faz o que quer.

Já estávamos casados há seis anos e não tínhamos filhos e ele me acusava por isso, me humilhava dizendo que iria encontrar uma mulher que lhe desse filhos.

Eu fui me desgostando, comecei a me sentir inferior e deprimida. Pedia a Deus que me desse um filho para que meu marido não me humilhasse tanto.

Por essa época eu conheci um jovem médico que se estabeleceu na cidade e foi morar perto de nossa casa. Ele era fino e educado, falava palavras tão bonitas. E me olhava de um jeito que me deixava encabulada. Sempre me cumprimentava de uma maneira tão cordial e simpática que meu coração começou a sonhar. Ele era sozinho. Por alguns meses a gente se via e trocava algumas palavras. Ele se tornou amigo de meu marido e sempre conversávamos.

No entanto entre nós foi começando um envolvimento. Até que um dia nós demos vazão ao nosso desejo e nos entregamos. E por meses a gente se encontrava na casa dele e um grande amor surgiu entre nós. Era irresistível e eu nem sei se queríamos resistir a esse amor tão sincero e verdadeiro.

Quando estava com meu marido eu me sentia mal. Nem sei se por traí-lo ou por ter que me deitar com ele. Eu já não o amava mais, mas naquela época e ainda hoje um casamento é pra sempre e uma mulher que trai o marido é considerada adúltera e vagabunda. Eu comecei a evitá-lo o quanto eu podia.

E ele teve que fazer uma viagem de quase dois meses.

E durante esse tempo Hermes e eu vivemos um sonho de amor.

Dias depois de Adriano chegar eu descobri que estava grávida. Eu fiquei desesperada, ele saberia que o bebê não era dele.

E eu que pedi tanto aos céus um filho, estava agora com um grande problema e nem sabia como resolver.

Eu não tinha coragem de dizer a Hermes que estava grávida e partilhar com ele esse problema.

Os dias passavam e Adriano começou a desconfiar e não foi difícil descobrir que Hermes e eu estávamos tendo um caso.

Ele me pressionou e eu contei que estava grávida.

Ele se enfureceu:

-Vagabunda. Então é verdade que você está me traindo? Quis tanto um filho e você nunca me deu. Agora você se deita com outro e aparece grávida?

-Não estou lhe traindo. O filho é seu.

-Pensa que engana a quem, rameira?

-Não fale assim comigo.

-Eu já sei de tudo, Isaura. Você e Hermes, que se faz de meu amigo, estão tendo um caso e você feito uma meretriz barata se enfia na cama dele pelas minhas costas.

-Não é verdade. Acredite em mim. Tem alguém querendo me envenenar contra você. Nós vamos ser felizes com nosso filho.

Ele me deu uma bofetada.

-Nunca mais me dirija a palavra. Depois de acertar as contas com aquele traidor desqualificado eu vou contar pra todo mundo quem é você.

Fiquei sabendo que eles marcaram de se encontrar na praia próxima a nossa casa, que era deserta, para acertarem as contas num tipo de duelo. Uma coisa estúpida e proibida por lei,

Eu fiquei desesperada. Não queria que acontecesse nada a nenhum deles.

Cheguei e pedi a eles que parassem. Implorei que desistissem, que conversassem civilizadamente.

Eles nem me davam ouvidos.

De repente Adriano atirou para o alto e num instinto Hermes atirou nele. Ambos eram excelentes atiradores e o tiro foi fatal. Hermes ainda tentou socorrê-lo, mas foi em vão.

Adriano morreu. Demonstrou que não tinha nenhuma intenção de matar Hermes.

Talvez sua intenção era justamente essa, morrer e deixar Hermes e eu nos sentindo culpados.

Hermes sabia que seria preso, julgado e condenado. Ainda mais sendo Adriano um homem renomado, conhecido e milionário. Resolveu fugir e ir exercer sua medicina em algum lugar bem remoto e longínquo.

Eu, viúva e grávida, não tive outra alternativa a não ser voltar pra casa de meus pais no interior.

Não sei bem por que aquele assunto nunca virou um escândalo, talvez por interferência de meu pai. A morte de Adriano foi tratada como um acidente entre dois amigos. Mas Hermes já estava longe. Eu nunca mais o vi e ele nunca soube que me deixou grávida de um filho seu e que este bebê foi um menino que por insistência das famílias ganhou o nome de Adriano. Para todos os efeitos meu marido era o pai. Todos acreditavam nisso. Até meu pai, mas ele eu não sabia se acreditava ou se fingia que acreditava. E nunca tive coragem de perguntar.

Meu filho nasceu em janeiro de 1901, junto com o Século XX.

Eu nunca mais amei, nunca mais me casei. Vivo uma vida quase reclusa. Cheia de culpas e de arrependimentos.

Algumas vezes penso que arruinei a vida dos dois homens que me amaram.

Mas outras eu penso que tudo tem um propósito e que nessa história talvez quem tenha saído mais ferida fui eu.

Sei que Hermes, correto e justo como é, talvez venha carregando pela vida afora a culpa pela morte de um homem.

No entanto eu sinto que meu fardo é muito pesado. Além da culpa por arruinar a vida de Adriano e Hermes, eu ainda carrego esta farsa perante toda a sociedade que é sustentar que meu filho é fruto do meu casamento com Adriano. E ter dado ao filho de outro o nome de meu marido.

A culpa de não ter tido a coragem de contar ao Hermes que estava grávida de um filho dele, de não ter a coragem de ter fugido com ele e viver o amor que nos unia.

São as fatalidades da vida ou as escolhas, como muitos preferem dizer.

Hoje estou com setenta e um anos. Meu filho já é adulto, já me deu netos. Tem sua vida, sua família, nem imagina o que aconteceu aqui.

Sentada aqui nesta praia, ouvindo o vento, as ondas batendo e as folhas das palmeiras fazendo o seu bailado é como se eu assistisse a tudo outra vez.

Aqui neste lugar eu vivi meu céu e meu inferno.

Quando me mudei pra cá, com todos os sonhos e esperanças que carregava, não podia imaginar o que me esperava.

De tudo, ficou meu amado filho que tantas alegrias me deu.

Não sei se estes escritos vão resistir ao tempo e vão chegar às mãos de algum descendente meu, quem sabe até às mãos de meu filho a quem eu não sei se um dia, antes de minha morte, terei coragem de revelar a verdade.

Vivo solitária e amarga, corroída por tantas culpas. Mas talvez seja essa a vida que mereço…”

Logicamente não conheci minha trisavó, mas fico compadecida de uma vida tão cheia de tristezas e tragédias. Minha mãe e eu choramos juntas por esta família que nasceu de uma mentira e de tanto sofrimento. Fizemos uma oração por nossos antepassados pedindo que onde quer que estejam a paz os tenha alcançado.

(Obra de ficção, mas de alguma forma pedindo a paz para todos os antepassados)

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 20/05/2022
Reeditado em 23/05/2022
Código do texto: T7520405
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