Janela

Muitas foram as janelas da casa em que passei minha infância e adolescência, porém, uma em especial fez parte das minhas mais doces lembranças.

No quarto que a minha avó ocupava, havia uma janelona bem grande, toda envidraçada. Através daquela janela eu e minha avozinha podíamos observar o céu e admirar a corrida das nuvens durante as tempestades.

Minha avó, dona Alzira, uma senhorinha com mais de sessenta anos de idade, chamava atenção pela doçura dos olhos bem azuis, pela pele lisa e morena e pelos cabelos que, apesar de alguns fios brancos, continham ainda a negritude e a textura, denunciantes da digna linhagem da cruza indígena e negra.

Dizem que, com apenas uma palavra podemos definir uma pessoa, e, se eu pudesse escolher uma palavra para definir minha querida avó Alzira, escolheria a palavra silêncio, isto porque, nos muitos anos em que convivi com ela, raras vezes pude ouvir o som da sua voz.

Lembro que ficávamos sentadas na beira da cama, lado a lado, de mãos dadas, por horas, olhando o céu que se descortinava naquela janela mágica, que nos revelava o mundo. Eu, menina, ela sexagenária, ambas com os mesmos olhos de poesia e silêncio.

Foi através daquela janela, que vi por muitos anos, desfiarem-se os novelos de invernos rigorosos amenizados pelo vidro colorido e pelas capas de astracã, que usávamos. Já na primavera o espetáculo da janela utilizava um coadjuvante especial, um cinamomo que se enfeitava de folhas verdes, flores cor de rosa e bolotas de sementes amarelas. A bela árvore cobria com sua silhueta todo o ângulo de visão da abertura da janela, formando um cenário que desafiava a beleza de qualquer cartão postal.

Porém, a obra mais sensacional daquele senhor cinamomo, era deixar-se desfolhar conforme os caprichos de qualquer brisa, vento ou ventania, salpicando o chão de flores, que teciam em sua base um tapete multicolorido de matizes verde, amarelo e vermelho, o qual exalava um perfume delicado e inebriante.

Então, ao cair da tarde, daquelas tardes de primavera quase verão, a noite vinha complementar o espetáculo, pontilhando o azul do céu com centenas de milhares de estrelas, enquanto a luz do luar se derramava sobre as sombras, despertando os vaga-lumes e as mariposas noturnas.

Assim passei a minha infância e pré-adolescência, sonhando os sonhos que a minha imaginação permitia, no cenário daquela janela, que se abria para o céu e para o infinito. Nos fins de tarde antes do sol se por, minha avó iniciava o ritual de se pentear, usando os próprios dedos como pente. Então, delicadamente soltava os cabelos, que mantinha presos num comportado coque e ia enrolando os fios que por ventura se soltavam, colocando-os enrodilhados dentro de um saquinho de tecido.

Assim, durante muitos anos acompanhei aquela cerimônia diária, com uma curiosidade quase incontida, porém, respeitando o silêncio da minha avó.

Certo dia, ela me chamou e disse que aquele era um costume das mulheres bugras, pois quem deixava cabelo solto na terra, depois de morto tinha que voltar para buscar.

Achei estranho ela me dizer aquilo assim tão de repente.

Duas semanas depois, numa manhã de primavera, o coraçãozinho da minha querida avó parou de bater. Lembro como se fosse hoje da imagem dela muito serena no caixão, como se estivesse dormindo. Lembro-me de ver minha mãe colocar discretamente o saquinho com os cabelos sob as mãos dela.

Depois disto... Só saudades.

Por muitos anos fiquei lá, sentada sozinha, olhando o mundo através da nossa janela, ás vezes, exatamente naqueles momentos em que o meu peito doía muito de tanta saudade, uma brisa quentinha acariciava meu rosto, como se fosse um beijinho da minha querida avó.

Ondina Martins
Enviado por Ondina Martins em 17/06/2022
Código do texto: T7539590
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