FAMÍLIA SEM DEUS

Um homem morava em uma fazenda. Ao fazer uma trajetória mais curta, se deparou com uma linda moça morena de cabelos longos que estava na janela de uma casa bem simples. Ele acenou e a moça retribuiu com um lindo sorriso. A partir disso, o homem passou a fazer aquele trajeto sempre para rever a linda mulher que tanto lhe chamou a atenção.

Certo dia, essa bela dama chegou na feira e desejou um “Bom dia!” com muita alegria àquele jovem.

- Bom dia! Em que posso te ajudar? - ele respondeu.

- Então, sábado é o meu aniversário e o meu pai me deu um leitão de presente. Se quiser, está convidado para ir…

- Claro! - ele concordou - Mas, leve mais um leitão. Assim, a sua festa vai ser mais farta.

- Eu acho que meu pai não vai gostar de um estranho me dando um leitão…

- Considere um presente de aniversário antecipado…

- Tudo bem, então. Meu irmão vem buscar sábado. Obrigada pelo leitão!

- Obrigado pelo convite pra festa!

No sábado bem cedo, o jovem já havia separado os leitões da bela moça. Ansioso, esperava pelo irmão dela, que segundo suas palavras buscaria nesta data.

- Olá, boa tarde! Eu sou Elias. Vim buscar o leitão que meu pai comprou para a festa da minha irmã…

- Prazer, Elias! Me chamo Mário. Aqui está o pedido…

- A minha irmã escolheu bem, mas… aqui tem dois leitões, não tenho como pagar pelo outro…

- O segundo foi um presente meu pra ela.

- Você deu um leitão de graça pra minha irmã? O que você está planejando?

- Não me interprete mal, Elias. Quando eu sou convidado para alguma festa, não consigo aparecer de mãos vazias…

Mais tarde, na festa da Elisa, a casa estava linda e ela mais ainda. Mário colocou sua melhor roupa e, decidido a tomar uma atitude radical, se dirigiu a festa, onde foi recebido na porta pela própria aniversariante.

- Boa noite, moça! - ele cumprimentou - Você ainda não me disse seu nome…

- Eu sou Elisa. Você é o…

- Mário. O seu nome é lindo!

- É o nome da minha mãe. - ela respondeu sorrindo.

Alguns minutos se passaram até Elias reconhecer Mário e cumprimentá-lo, desejando-lhe as boas-vindas. Não demorou muito até que Benedito, o pai de Elisa, aparecesse e também cumprimentasse o rapaz.

- Até que enfim você chegou! - exclamou Benedito - Elisa não parava de falar de você! Afinal, quais são as suas intenções com a minha filha?

- Boa noite, senhor! Garanto que as minhas intenções são as melhores…

- Eu soube que você deu um leitão a mais de presente para a Elisa. Muito obrigado!

- De nada, senhor. Foi um prazer!

- Vamos, Mário! - interrompeu Elisa segurando-o pela mão - Eu vou te dar algo pra beber,

- Mas você ainda não me apresentou a sua mãe…

- É que… ela morreu há muito tempo…

- Sério? Me desculpa, Elisa. Eu… sinto muito pela sua perda.

- Tudo bem, Mário! Eu já superei a morte dela… - ela respondeu enquanto pegava uma bebida para ele.

Mário juntou toda coragem que tinha e esperou estarem quase a sós para entregar o seu presente especial.

- Eu… é… comprei um anel pra você… é simples, mas… com muito amor.

- É lindo! Obrigada! Se a minha mãe estivesse viva, ela ia gostar muito de conhecer você…

- E eu ficaria muito feliz de tê-la como sogra…

- Calma, isso é um pedido de namoro?

- Bom, é que… desde que eu te vi naquela janela, não consigo tirar você e o seu sorriso da minha cabeça…

- Pelo jeito a coisa é séria, hein, Elisa! - interrompeu um rapaz vindo na direção dos dois - Ganhou até um anel! Deixa eu ver?

Elisa estendeu a mão para que seu irmão pudesse ver em detalhes o belo presente que ganhou.

- Que lindo! - Luis exclamou - Bem vindo a família, Mário! Eu sou Luis, irmão da Elisa.

Olhando para Mário e desconfiando de seu caráter, Luis começou a questionar o que Mário fazia da vida. Este prontamente respondeu:

- Meus pais têm uma fazenda. Lucas, o meu irmão, e eu cuidamos de tudo e aos finais de semana, eu trabalho na feira.

- Interessante. Eu e o Elias trabalhamos para o senhor Davi. Conhece?

- Meu pai falava muito do senhor Davi, mas eu ainda não tive a oportunidade de conhecê-lo…

- É uma pena! Ele é um senhor muito bom, mas está no fim da vida…

Passaram algumas horas e Mário decidiu ir embora, visto que já estava bem tarde. Senhor Benedito o acompanhou até a saída, se despedindo de seu novo genro:

- A porta da minha casa está sempre aberta para você, desde que esteja bem intencionado com a minha filha…

- Senhor Benedito, não precisa se preocupar! As minhas intenções são das melhores com a sua filha!

No dia seguinte, Benedito, ainda levemente desconfiado, perguntou a Luís sobre suas impressões a respeito de Mário. Ele respondeu positivamente, trazendo à tona todos os atos do novo cunhado.

Uns meses se passaram até que Mário recebeu a notícia de que teria que viajar a trabalho. Sem conseguir ficar muito tempo longe de sua amada, foi até a casa de seu sogro para fazer um pedido arriscado:

- Mário? Que surpresa! - cumprimentou Benedito - O que te traz aqui?

- Oi, senhor! Então… eu vou ter que viajar a trabalho e quero lhe pedir permissão para levar a Elisa comigo…

- Não! De jeito nenhum! - exaltou-se Benedito - Isso não é coisa que se peça, Mário! No que você está pensando?

- Senhor, é que… a Elisa precisa comprar o enxoval do casamento…

- Como? Vocês vão se casar e eu não estou sabendo?

- Queríamos fazer uma surpresa pra vocês…

Benedito respirou fundo e suspirou, pensando bem em suas palavras.

- Se você quer a minha benção para o casamento eu dou, mas primeiro ele acontece e depois a Elisa pode viajar com você.

- Mas, senhor… a Elisa tem que ir para escolher o enxoval do casamento e…

- Mário! - Benedito gritou e interrompeu o rapaz - Primeiro vocês casam e depois ela viaja com você. Entendido?

- Senhor, a minha mãe já é idosa. Ela não tem como escolher o enxoval sozinha.

Benedito mais uma vez conteve o turbilhão de palavras que almejavam sair de sua boca com um suspiro, buscando acalmar-se para não perder sua razão com o genro.

- Se a sua mãe for junto, darei minha permissão.

Horas depois, ainda pensativo acerca do que aconteceu pela manhã, Benedito perguntou a seus dois filhos, que estavam sentados à mesa:

- Vocês dois sabiam que a Elisa irá se casar?

- Pai… a Elisa chegou a comentar que o Mário a pediu em casamento… - respondeu Elias.

- Ela também me disse algo do tipo. - respondeu Luís - Por falar nisso, ele tem que parar de trazer esses doces para a Elisa, senão ela não vai caber no vestido de noiva…

Dias depois, o inesperado aconteceu: Elisa descobriu que estava grávida há poucos meses do casamento. Temendo o que Benedito poderia fazer, Mário sugeriu que os dois fugissem e começassem sua vida de casados antes do evento acontecer.

- E pra onde a gente iria? Ainda é muito cedo, nem vimos nossa casa ainda. O pior é que se ficarmos, meu pai vai nos matar, ninguém consegue fugir dele… - se desesperou Elisa.

- Eu vou pedir ao seu irmão pra nos ajudar em relação ao seu pai…

- O Elias não vai conseguir nos ajudar! É do meu pai que estamos falando! Você não sabe do que ele é capaz…

- E o Luís? Eu sei que ele pode nos ajudar!

- Pior ainda. Se ele descobrir, ele nos mata antes do meu pai mandar…

- Fica calma! Nós vamos dar um jeito… Só não se desespere. Esse estresse todo pode fazer mal pro bebê. Junte as suas coisas antes que alguém chegue, acho que sei de um lugar onde seu pai não vai conseguir nos encontrar…

O casal se mudou para uma casa um pouco distante do domínio de Benedito, tentando se esconder da possível tragédia que aconteceria caso a notícia chegasse aos ouvidos do conservador pai de família. Um dia, alguém bateu à porta e, para o espanto de Elisa, era seu irmão Luís, que já não via há alguns meses.

- Luís? O que você faz aqui? Meu pai está com você?

- Ele está lá fora, depois ele entra…

- Eu sabia que ele estaria contigo, você não vive sem ele, né?

Benedito se aproximou e entrou na casa simples em silêncio total, desapontado com a fuga de sua filha. Seu olhar foi baixando até encontrar a imensa barriga de sua filha e retornou a face da jovem, explicitando ainda mais decepção e tristeza. Elisa, tentando contornar a situação, continuou falando com seu irmão.

- O… Mário que foi falar com você?

- Ele me pediu pra vir até aqui. - respondeu Luís - E disse pra eu trazer algumas coisas pra você. Estão na carroça, vou trazer tudo pra dentro…

Enquanto Luís ia trazendo os grandes caixotes para dentro, Elisa já não podendo mais ignorar o desgosto demonstrado por seu pai, então se aproximou dele e disse:

- Pai, me perdoa por não ter falado da minha gravidez…

- Não tem nada para perdoar. O mal já está feito.

- Pai! - interrompeu Luís ao ver uma lágrima rolar do rosto de seu velho pai - Vamos embora, os alimentos já estão na mesa. Se tudo correr bem, o Mário vai estar aqui com você.

Elias, que estava do lado de fora, entrou depois que pai e o irmão saíram da casa. Surpresa, sua irmã disse seu nome, mas este, fez sinal de silêncio e olhou ansiosamente para os dois lados da rua.

- Eles já foram… - concluiu Elias - Como você está, Elisa?

- Estou bem! O pai e o Luís não vão nos fazer mal. Mas, me conta: como estão as coisas?

- Está tudo bem. Onde o Mário está? Ele está bem?

- Ele só vem na quinta-feira que vem. Elias… como você me encontrou?

- Eu escutei o Mário conversando com o Luís. Ele pediu pra trazer algumas coisas pra você, aí eu o segui…

- Você é bom em seguir as pessoas.

- Mas já estou indo! Agora eu sei onde você mora. Toma esse dinheiro, é pouco, mas dá pra comprar alguma coisa.

- Obrigada, Elias!

- Você vai ficar bem, Elisa?

- Vou sim. Pode ir tranquilo e toma cuidado! Leva esses biscoitos, eu sei que você gosta deles…

- Logo você vai estar perto da família de novo.

- O Mário me ama, ele vai casar comigo.

- Sem dúvidas que Mário vai casar com você! Senão ele se meteu com a família errada…

Dias depois, Mário apareceu com o enxoval do bebê e fez uma surpresa para Elisa:

- Mário! - cumprimentou Elisa - Então foi por isso que você demorou?

- Foi sim. Também por causa dos meus pais, eles estão doentes e tem muito trabalho na fazenda pra ser feito.

- Você precisa ajudar seu irmão a cuidar dos seus pais e da fazenda.

- Se a minha cunhada não fosse dramática, íamos morar na fazenda com os meus pais…

- Se é assim, por que você não traz seus pais para morar com a gente? Eu cuido deles…

- Elisa, você vai ter um bebê e meu pai está acamado. Além do mais, eles não vão deixar a fazenda e a vida deles pra trás…

- Mário, eu te amo. Só quero ajudar…

- Você tem que ter cuidado com você e com o nosso filho. Até porque a parteira recomendou muito repouso.

Dias depois…

- Elisa, você vai ficar bem? - perguntou Mário - Eu prometo que volto antes do bebê nascer.

- Eu vou ficar bem, Mário! Não se preocupe, a parteira passa aqui todos os dias para ver se eu e o bebê estamos bem.

Elisa repara no papel que Mário está segurando e a quantidade de coisas escritas ali.

- Tem bastante coisa na sua lista de compras…

- Eu não quero que falte nada para o nosso bebê!

Dias depois…

- Mário? O que você faz na minha casa? Se esqueceu do que prometeu?

- Bom dia, senhor Benedito! Vender uma fazenda não é fácil…

- Eu só espero que você não faça corpo mole, eu tenho pressa!

- Senhor Benedito, eu preciso da assinatura da minha esposa pra vender a fazenda…

- Então, por que você não dá pra ela assinar os documentos?

- A minha esposa… a sua filha espera um bebê. Ela não está com a saúde boa. O senhor pode esperar o bebê nascer?

- Por que eu tenho que esperar o seu filho nascer? Esse não foi o trato!

- Eu não posso vender a fazenda nesse momento. Foi um presente de casamento dos meus pais.

- Eles deram a fazenda pros dois! Peça para sua esposa assinar e vender a fazenda!

- Eu já te disse que a sua filha não está com a saúde boa. Ela pode morrer no parto…

- Por mim, que morram! Assim, você se livra deles, né?!

- Não fala desse jeito!

- Que jeito?!

- “Que eles morram”...

- E eu estou errado?

- O senhor pode não considerá-los mais sua família, mas eles são a minha…

- Família? Que família o quê! Ela era a minha filha e olha o que você fez! - gritou Benedito - VOCÊ ESTRAGOU A VIDA DA ELISA!

Mário abaixou a cabeça ao perceber que aquela discussão não levaria a lugar nenhum. Afinal, era só um velho teimoso e rabugento que rejeitou a própria filha. Benedito, percebendo que havia se alterado demais, respirou fundo e ameaçou:

- Escuta bem: ou você vende aquela fazenda ou eu vou na sua casa e conto tudo pra Elisa. Tudo. Você decide…

Meses depois, o casal desapareceu da vista da família de Elisa. Após procurar em todos os lugares e não encontrá-os, Luís fez o relatório a seu pai, que logo perdeu a calma:

- AQUELE MÁRIO! Ele mentiu pra todos nós! Não foram os pais dele que deram a fazenda de presente de casamento. Foram os pais da esposa…

- Chega! - indignou-se Elias - Vocês dois! Deixem a Elisa viver a vida dela!

- Que vida? - respondeu Benedito - O Mário roubou tudo dela!

- Pai, a Elisa está esperando um filho. O senhor quer mesmo ter um neto sem pai?

- O Mário é um “pé rapado”! Como ele conseguiu dinheiro pra fugir com a irmã grávida de vocês?

Horas depois…

- Luís, você pegou as economias do pai, não pegou? - acusou Elias - Quando ele descobrir, o que vamos falar pra ele?

- O pai está muito decepcionado pelo Mário ter mentido pra ele.

- Mas ele vai achar que foi o Mário que pegou o dinheiro dele…

- Elias… o que importa é que eu ajudei a Elisa, como você me pediu.

- Eu te pedi pra ajudar a Elisa, não pra roubar o dinheiro do nosso pai!

- Eu tinha que tirar esse dinheiro de algum lugar. Além do mais, o pai já ia matar o Mário mesmo, ele está obcecado por esse moleque…

Alguns anos se passaram e a família de Mário continuou fora do alcance da visão de Benedito, mas este não esqueceu do jovem que havia roubado o que ele tinha de mais precioso.

- Pai, você está há uma semana fora de casa. - comentou Elias - Eu fiquei preocupado, aconteceu alguma coisa?

- Não aconteceu nada, Elias. - respondeu Benedito fazendo a cara mais fechada que possuía - Eu fui resolver umas coisas, só isso…

- Mas o senhor está bem? Parece que está há dias sem dormir…

- Ah, Elias! Me deixa quieto! Vai trabalhar, vai!

Elias obedeceu a rabugice do pai indo para o trabalho, mesmo com o mal pressentimento e a preocupação martelando em sua mente. Ao ver seu irmão, fiel companheiro do velho Benedito, que possuía mais proximidade e intimidade com o ancião, Elias perguntou sobre o estado de seu pai.

- O pai é muito teimoso! - se indignou Luís - Ele foi atrás do Mário. Quando chegou na casa dele e viu Elisa grávida de novo, com mais cinco filhos, ele desabou.

- Ele realmente parecia estar em choque…

- Ele levou um susto! Você precisava ver a cara dele…

- Você não devia ter levado o pai lá com você, ele já tem idade…

- Ele que quis ir! Eu falei com ele quando eu vi, mas ele insistiu…

- O Mário estava em casa?

- Ele estava na roça. Você precisava ver onde eles moram… é de dar pena.

No dia seguinte, Elias junta coragem e se dirige a seu pai, que estava na varanda, sentado na rede, observando o nascer do sol.

- Pai, o senhor está melhor?

- Que desgosto a Elisa deu à família.

Elias percebendo que o assunto só ia piorar o emocional de seu pai, deu as costas e apressadamente se retirou do ambiente e da casa. Luís vendo toda a cena pela janela, se aproxima vagarosamente de seu pai.

- Pai, pra onde o Elias foi com tanta pressa?

- Eu não sei. Foi só dizer que a Elisa trouxe uma desgraça para a família…

- Ele nem fez o café! Pra onde será que foi tão cedo? E o senhor passou a noite em claro, né? Entra pra tomar café, eu faço…

- Eu acho que o Elias foi ver a Elisa. Ele foi por conta própria ver aquela desgraça, depois não diz que eu não avisei…

- Se o senhor já sabia pra onde ele tinha ido, por que não falou antes quando eu perguntei?

- Porque aí daria tempo de você ir atrás dele e impedi-lo. Agora, vamos logo que eu quero tomar café!

- Já que é assim, quem vai me ajudar a colocar aqueles caixotes pra dentro é o senhor!

- Quando eu era jovem, eu colocava todos os caixotes pra dentro, sabia?

- Mas o senhor já viu quantos caixotes têm lá fora?

- Você está me chamando de incapaz?

- Não, só parece que o senhor não sabe contar…

- Eu não preciso contar, sei exatamente quantos caixotes tem lá!

- Enfim, foi o senhor que deu o endereço da Elisa ou o espertinho descobriu sozinho?

- Ele me pediu o endereço ontem…

- E o senhor simplesmente entregou pra ele? O senhor não deveria ter feito isso!

- Eu já disse que ele queria ir lá. O que eu poderia fazer?

- Não ter ajudado dando o endereço seria uma boa!

- Luís, com o tempo que você está discutindo sobre uma coisa que não tem mais volta, você já teria colocado todos os caixotes pra dentro!

- Mas o senhor não disse que ia me ajudar com isso?

- Não tenho forças. Ainda mais depois de tudo que a Elisa fez comigo…

- E o que ela fez com o senhor?

- Você ainda pergunta? Você é cego?

- Eu não consigo entender o que a Elisa fez com o senhor se já fazem anos que vocês não conversam…

- O lugar onde ela mora, aquelas crianças me olhando como se eu fosse o culpado. Nem consegui ficar lá por muito tempo…

- Pai, não exagera, são só crianças…

- Não era você que estava na mira delas!

- Eles são seus netos, não passou pela cabeça do senhor que talvez eles só esperavam um abraço do avô?

- Eles também são seus sobrinhos. Por que não os abraçou?

- Pra quem eles estavam olhando? É tão difícil assim tratar seus netos com amor?

- O problema é o desgosto que a Eliza deu à família! Se a sua mãe estivesse viva, seria uma decepção para ela…

Enquanto isso, na casa de Elisa…

- Elias!? O Luis deu o endereço pra você? - perguntou Elisa enquanto abria a porta para seu irmão.

- Não, foi o pai. Como você está? Por que vocês fugiram? Há quantos anos não te vejo…

- Eu estou bem, as crianças também. Eles estão dormindo, é o que importa…

- E o Mário? Ele vai demorar pra voltar?

- Ele está na fazenda dos pais, os dois estão muito doentes…

Elias fixou seus olhos na bela filha de Elisa, que estava em outro cômodo.

- Como ela se chama?

- Mara, é a mais velha. Vem, filha! Dá “oi” pro tio Elias!

- Ela tem alguma deficiência, Elisa?

- Sim, ela e o irmão gêmeo nasceram com uma doença, ele, infelizmente, não resistiu e morreu…

- Mara! Vem com o tio! - disse ele, pegando-a no colo - Ela se parece com você…

- Mara, pode voltar a dormir, ainda está muito cedo.

- Não. Elisa, arruma as crianças e as suas coisas, eu vou levar vocês para a minha casa…

- Não posso ir embora assim, o Mário é o pai dos meus filhos e eu não posso deixar a minha casa desse jeito…

- Mas vocês não podem viver nessa casa de risco…

- O Mário está arrumando uma casa no centro, não precisa se preocupar…

- Tá bom, então… Tenho que ir, Elisa. Vê se não some de novo sem avisar! Toma esse dinheiro…

- Elias, obrigada por tudo! - disse ela dando um forte abraço no irmão.

- Se cuida, irmãzinha!

A família de Elisa estava realmente precisando daquele dinheiro, Elias surgiu como um anjo para ajudá-los nesse momento difícil. Com as cédulas em mãos, ela logo pensou em tudo que estava faltando e que, finalmente, poderia comprar. No caminho de volta, Elias encontrou com Mário e deu-lhe um abraço quebra-ossos demonstrando toda saudade que sentiu de seu cunhado.

- Mário! Finalmente encontrei vocês! Acabei de vir da sua casa. Como estão as coisas?

- Bom, tudo como você viu…

- A Elisa me falou que você vai comprar uma casa no centro. Eu vou vender uma parte da minha fazenda pra ajudar vocês pelo menos com a entrada…

- Eu já estou quase conseguindo a entrada, o restante vou pagar com trabalho.

- E o que vocês vão comer, Mário? Se além de trabalhar pra quitar a casa, também vai ter que cuidar dos seus pais nas horas vagas? Sério, se precisar de qualquer coisa, sabe onde me encontrar…

Horas depois, na casa de Benedito:

- Elias, você resolveu a situação da Elisa e daquelas crianças? - perguntou Benedito assim que viu o filho passar pela porta - E me fala uma coisa: aquela menina dela é doente? Ela não tinha uma cara muito normal…

- Pai, aquelas crianças são os seus netos, não tente excluir eles da família. - indignou-se Elias - E a menina que o senhor falou é a filha mais velha da Elisa, a Mara. Ela tem uma deficiência, não uma doença!

- Deficiente, doente, problemática são tudo a mesma coisa! O Luis conversou com a Elisa. Ele me disse que o gêmeo da Mara morreu ano passado. Que vida triste a Elisa tem levado…

- Não por muito tempo. O Mário vai comprar uma casa no centro pra ficar perto do hospital.

- Comprar uma casa? Esse “pé rapado” não tem nem onde cair morto!

- Eu vou vender uma parte da minha fazenda pra ajudar eles.

- Você só consegue vender a sua fazenda se for junto com a casa.

- Não vejo problema. Fico com a casa dos fundos do lote, onde os empregados vivem. A Vera não vai ligar mesmo, não sai da casa dos pais dela.

- Se você vender a sua fazenda, vai viver do quê? Daquela sua horta?

- Eu pretendo ir embora! A Vera mudou muito comigo desde a morte da nossa filha.

- Ela é problemática! Já passou da hora de ter superado isso! E mesmo assim. Elias, uma fazenda não se vende de um dia pro outro! Aquela casa parecia poder desabar a qualquer momento! Vamos fazer assim, eu vou pegar as minhas economias e você dá pro Mário, assim eles conseguem se mudar ainda esse mês.

Horas depois, Elias foi ao encontro de seu irmão para falar sobre o que ele e seu pai combinaram mais cedo.

- O pai deve pegar as economias amanhã de manhã. Você já colocou tudo no lugar?

- Elias, eu não tenho todo esse dinheiro agora…

- Como assim? Luis, isso já faz mais de 5 anos, já era pra você ter conseguido colocar até mais dinheiro do que a gente pegou, nem que fosse aos poucos…

- Eu não tive como, a situação lá em casa tá apertada…

- Engraçado que a sua esposa está se exaltando no bairro inteiro, dizendo que você vai comprar a fazenda do lado…

- Ela está maluca! Eu já te disse que não tenho dinheiro!

- Se o pai não achar as economias dele no lugar amanhã, eu mesmo digo que você as roubou…

- Só não esquece de falar que foi você que me pediu pra ajudar a família daquele “pé rapado”!

Elias se enfureceu e saiu bufante da presença de Luis indo direto para sua casa, onde passou quase uma hora pensando no que faria para contornar essa situação. Decidiu então, pegar todo dinheiro que ganhara com sua pequena horta, o qual seria usado para investimentos desta e foi correndo ao encontro do cunhado. Pela manhã, diria a seu pai que havia se antecipado e pegado as economias antes dele, deixando-as já nas mãos de Mário.

- Mário! Mário! - Elias chamava e batia na desgastada porta de madeira da casa.

- Elias? O que faz aqui a essa hora? Já anoiteceu, entre… - respondeu Mário abrindo a porta para ele.

- Meu pai me deu o dinheiro da entrada da casa de vocês. Ele decidiu ajudar! - disse Elias entregando um envelope gordo, quase rasgando - Vai amanhã cedo fechar a compra e eu vou no mercado com a Elisa.

- Não precisa, Elias. - respondeu Mário com um sorriso e devolvendo o envelope - O dono da casa já combinou comigo: eu dou tudo que eu tenho no momento e o resto, eu pago com trabalho.

- Você vai mesmo dar tudo o que você tem agora? Como vocês vão viver?

- Elias, eu sei que o senhor Benedito vai acabar precisando desse dinheiro. E do jeito que as coisas estão, seria como trocar uma dívida por outra. Não precisa se preocupar, vai dar tudo certo. Agradeça a ele por mim…

Na manhã seguinte, enquanto Mário se dirigia alegremente para, finalmente, sair da situação decadente de sua moradia, o inesperado aconteceu: ladrões o cercaram e levaram todo dinheiro que ele, por mais de um ano, havia juntado para comprar a casa. Devastado e de mãos vazias, ele retornou à miserável casa, onde precisou trocar sua expressão de angústia por uma de paz.

- Mário, já chegou?! - cumprimentou Elisa - O Elias veio aqui e acabou de ir embora. Você o encontrou no caminho?

- Não, eu vim por outro trajeto. - disse ele forçando um semblante de felicidade - Daqui a algumas semanas, esteja pronta para se mudar…

- Sério?! Conseguimos a casa?

- Não exatamente. O valor combinado aumentou um pouco, você sabe como são os corretores de imóveis, né? Eu só preciso trabalhar mais um pouco pra sairmos daqui…

Meses depois, Mário finalmente conseguiu juntar metade do valor que levaria da primeira vez, trabalhando dia e noite. Após uma conversa com o vendedor, chegaram a um novo acordo, uma nova casa bem mais em conta acabara de ser anunciada. Ele ainda conseguiu um bom desconto na aquisição, não precisando mais trabalhar tanto para pagar o restante do valor. Depois de tomar posse legal da casa, assinando os papéis, uma voz familiar se aproximou:

- Boa tarde, Mário! Você fez um bom trabalho comprando essa casa!

- Luis?! Você é o dono dessa casa?!

- Sim, eu estou me livrando de alguns territórios. Afinal, dinheiro nunca é demais, né?

Mário olhou para o trabalhador que entrou logo depois de Luis e estava fazendo o papel de seu segurança. Seu rosto não lhe era estranho. Puxou do fundo da memória até que se recordou de um acontecimento que o fez perder meses de sua vida.

- Eu conheço você! Você foi um dos caras que me assaltou há uns meses, não foi? E você, Luis, eu nunca imaginei que teria sido você o responsável por isso!

- Eu jamais faria isso com você, Mário! Acha mesmo que se tivesse sido minha culpa, eu estaria aqui agora conversando com você?

- Não duvido, você faria tudo por dinheiro. Mas quer saber? Eu não vou ficar aqui pra discutir isso, já consegui o que eu queria.

- Ótimo! Excelente! Não se esqueça que agora eu sei exatamente onde você mora…

- Por falar nisso, a sua responsabilidade legal com esse imóvel acabou. Agora ele é meu. Quero você fora daqui e fora do meu caminho.

- E se eu não quiser?

- Simples: eu te denuncio, você acaba preso e perde tudo que está tentando conquistar.

- Como você tem coragem de me ameaçar assim? Acho que devemos nos acalmar, afinal, um novo incidente pode acabar acontecendo com você, né?

- Pode tentar, se quiser. Toda a minha família sabe que eu estou aqui e todos da vizinhança sabem que você, o dono do imóvel, o único autorizado a entrar, me veria hoje. Se algo acontecer comigo, é questão de tempo da investigação chegar em você…

- Você não entendeu mesmo, né? O dinheiro faz tudo!

- Nem tudo. Eu tenho um amigo oficial, se algo acontecer comigo, ele com certeza vai em busca do culpado. Não importa quanto você ofereça, ele não vai aceitar e você vai acabar preso. Não dá pra me fazer mal, agora… sai da minha propriedade.

Meses depois.

- Boa tarde, Mário! Eu estive aqui três vezes, mas só as crianças estavam aqui…

- Boa tarde, Elias! Hoje eu cheguei mais cedo. Senta aí e toma um café…

- Faz tempo que a Elisa não vai ver o pai. Ele sente tanta saudades dela e dos netos…

- Ela não para em casa, também, desde que começou a trabalhar fora.

Algumas horas depois, Elisa finalmente chegou em casa e logo foi abraçar seu irmão, que não via há bastante tempo.

- Elias! Quanto tempo eu não vejo você! - cumprimentou Elisa - E a sua família? Como está?

- Todos bem. - respondeu Elias - Nossa, como você está diferente!

- Eu estou trabalhando com vendas, tive que cuidar um pouco da aparência. As crianças já estão grandes e cuidam da casa pra mim.

- Quando você vai visitar o pai? Ele está doente e quer ver você e os netos.

- Essa semana eu estou com muitas encomendas para entregar… Na próxima semana, prometo que nós vamos ver o pai e o Luis.

- Eu não sei do Luis há muito tempo. A esposa dele falou que ele foi embora depois de vender todas as terras dele e não tem mais notícias dele…

- Eu sabia que ele ia acabar aprontando uma dessas. - disse Mário para si mesmo.

Anos depois, a família se mudou mais uma vez. Certo dia, o alto som da batida na porta tomou conta de todo ambiente. Ele estava em casa e mandou seus filhos ficarem em seus quartos escondidos. Pegando um pedaço de madeira se aproximou da porta. Cada segundo que se passava, a batida se tornava mais intensa. Mário rapidamente abriu a porta e…

- Luis? O que você está fazendo aqui? - Mário se assustou e deixou a ripa de madeira no chão - Onde você esteve todo esse tempo? Todos acham que você estava morto!

- Uns homens queriam me pegar porque eu devia uma alta quantia em dinheiro.

- Logo você? Devendo dinheiro?

- Eu já paguei! Não devo mais nada a eles.

- Entra… - Mário disse abrindo a porta para ele - Você não deveria mexer com gente assim, eles não perdoam ninguém! Mesmo tendo pago, fica de olhos bem abertos…

- Não precisa se preocupar comigo, “pé rapado”. Eu já deixei as provas que tenho contra os crimes deles com duas pessoas de confiança. Se tentarem me fazer mal, todos caem comigo.

Horas depois, Elisa chegou em casa e se surpreendeu ao ver seu irmão depois de anos sem sequer uma notícia dele.

- Luis?! - ela logo largou suas coisas e deu um abraço em seu irmão - Você sumiu! Por que não foi no enterro do pai? Ele morreu triste e preocupado com você…

- Eu tive que fugir, Elisa. Foi o pai que me aconselhou a sair por alguns dias…

- Dias? Foram anos! - interrompeu Mário.

- Luis, de qualquer forma, você não deveria ter vindo aqui. Você errou com aqueles homens, nada impede deles virem aqui só pra te matar… - disse Elisa.

- E vim ver vocês, não quero arrumar problemas para ninguém. Eu vou para um sítio, mas…. a passagem é meio cara e… o que eu tenho não dá pra comprar…

- Ah, entendi. Você não queria nos ver coisa nenhuma, você veio atrás de dinheiro. Confessa logo, Luis! - indignou-se Mário.

- Se vocês não quiserem me ajudar, tudo bem. Eu me viro… - respondeu Luis.

- Não, Luis, calma… - disse Elisa - Eu vou te dar o dinheiro que eu estou guardando para a quitação da casa nova. Eu espero que resolva o seu problema…

- Não acredito nisso… - disse Mário se retirando para a cozinha.

- Obrigado! - disse Luis - Me perdoem por… tudo que eu fiz com vocês…

Horas depois, ainda matutando acerca de Luis, Mário retornou ao mesmo assunto com Elisa.

- Esses homens vão acabar matando o Luis…

- Não podemos fazer nada para ajudar. Como meu pai dizia: “o mal já está feito”

- Mas e se vierem atrás de nós também?

- Só vamos torcer pra que isso não aconteça.

Anos se passaram e Mário acabou perdoando Luis pelo que fez quando vivia à margem da sociedade. No aniversário de Mário, Elias foi até a casa do cunhado para matar a saudade e passar um tempo com ele num dia tão importante.

- Como os anos se passaram depressa! Meus parabéns por mais um ano de vida…

- Obrigado, Elias! - Mário respondeu abrindo espaço para o cunhado sentar no banco que havia na varanda - Anos se passaram e nós dois sentados no mesmo banco…

- Sim. Quanto tempo… Sabe, eu me casei de novo. Agora eu sei que vai dar certo, vou formar uma nova família!

- Como dizem, é na vigésima vez que dá certo - Mário debochou - Já perdi a conta de quantos relacionamentos foram. Mas o que os seus filhos acham disso?

- Essa moça é diferente de todas: ela tem os mesmos planos que eu. Você está me zoando, mas diz como está a sua vida amorosa. Desde que a Elisa foi embora você não tentou casar de novo?

- Bom, quando eu conheço uma mulher e ela quer casar ou morar comigo, eu fico muito reflexivo. Eu tenho os meus filhos, que ainda moram comigo…

- Você não pode viver sozinho, já está velho! Precisa arrumar alguém que cuide de você, seu filhos já estão adultos e daqui a pouco, vai cada um pro seu canto…

- As mulheres que eu conheci não são pra casar… e as que são não querem um homem com muitos filhos…

- Você tem razão. A moça que eu namorei e gostava não ficou comigo porque eu tinha muitos filhos. - refletiu Elias - E a minha sobrinha Mara, como ela está?

- Ela continua internada na clínica psiquiátrica. Quando eu vou visitá-la, ela sempre me pede pra ir embora, me dá uma dor no coração…

- Mas esse é o melhor pra Mara. Lá ela tem todos os cuidados que precisa…

- Eu conversei com o médico, Elias. Ele me disse isso também, mas… não sei… mesmo sendo bem cuidada, eu sinto que ela não está bem lá…

- Os médicos fazem de tudo pra melhora da Mara. Quando for o momento certo, ela vai voltar a viver com a família e com os amigos.

Anos depois, Luis retornou a casa de Mário, que quase não o reconheceu depois de tanto tempo.

- Posso ajudar?

- Mário, você não está me reconhecendo, meu cunhado?

- Luis?! Nossa, o que aconteceu com você? Está diferente!

- Com essa vida corrida de gente honesta eu emagreci um pouco…

- Eu achei que a esse ponto você já tinha morrido.

- Não tão facilmente. - Luis riu e entrou na casa - Como você está? E a Elisa, meus sobrinhos? Aonde está todo mundo?

- Calma, você fez muitas perguntas ao mesmo tempo. A sua irmã foi embora há uns anos e os seus sobrinhos já cresceram. Alguns se casaram e outros foram morar com a mãe…

- Uau. Eu perdi muita coisa… Você soube que o Elias morreu por ter se apaixonado por uma mulher casada?

- Sim. O pior é que os dois se conheceram e se apaixonaram. Ela estava separada do ex-marido, que, inconformado, matou os dois…

- Trágico… Me desculpa perguntar, mas… por que a Elisa foi embora?

- Eu viajava muito e ela ficava sozinha com as crianças. Eu não estava cumprindo o meu papel de marido e pai. Ela se cansou, juntou dinheiro e uma noite, quando eu cheguei, as crianças disseram que ela havia ido embora e que não ia voltar. Eu fiquei arrasado, mas respeitei a escolha dela.

- Como vocês ficaram com essa situação?

- Eu tive que deixar tudo, né? Meu trabalho, meus pais, vendi minha fazenda e recebi dinheiro o suficiente pra sustentar as crianças e cuidar delas até as mais novas terem idade suficiente para cuidar da casa…

- Você fez bem, Mário. Hoje você vive do quê?

- Eu sou aposentado e crio leitões nos fundos…

- Bom saber que você está bem. Eu já vou, mas antes eu quero ver a Elisa e, depois, vou seguir meu caminho. Sabe onde ela está morando?

Mário deu o endereço e explicou calmamente como chegar na casa de Elisa. Luis seguiu as instruções e algum tempo depois de começar a caminhar, finalmente encontrou a casa da irmã.

- Luis?! - surpreendeu-se Elisa assim que o viu pela janela, logo saiu e foi averiguar.

- Oi, irmã. Quanto tempo!

- É você mesmo! - ela disse o abraçando - Como você está?

- Bem! Passei aqui só pra ver você, Elisa!

- Luis, você emagreceu muito!

- Eu caminho muito no trabalho…

- Eu estou morando sozinha. Pode passar uns dias comigo, eu cuido de você…

- Obrigado, mas eu tenho que continuar a minha caminhada.

Dias depois, Elisa foi à casa de Mário, seu ex-marido, que já não via há um bom tempo, mas soube que havia pegado uma gripe forte e perigosa.

- Mário! Como você está? Já melhorou da gripe?

- Eu estou bem melhor, obrigado. Por acaso o Luis passou na sua casa há uns dias?

- Sim, ele estava tão magro que me deu pena…

- Ele tem que parar de ficar andando de um lado pro outro…

- Eu já falei com ele pra ficar na minha casa, mas a teimosia sempre fala mais alto.

- Eu preciso te contar uma coisa, mas… não me diga que é coisa da minha cabeça, posso estar velho e doente, mas sei o que vi.

- Agora eu estou curiosa… Você pode ter falhado como pai e marido, mas a sua honestidade é inquestionável…

- Eu estava sentado no banco da varanda tomando café. O Luis chegou e me perguntou “Mário, você fez bolinho?”. A princípio, achei a abordagem dele meio estranha, mas disse que pegaria os que eu tinha feito mais cedo. Quando eu voltei pro lado de fora, ele não estava mais ali, eu só o vi de longe indo embora. Eu achei isso muito esquisito…

- Aconteceu algo parecido comigo! Eu tinha acabado de fazer o café, ele chegou com aquele jeito de “hum, está cheirando bem” e se sentou à mesa. Ele perguntou se eu tinha feito biscoitos, mas assim que alguém bateu à porta e eu fui atender, ele sumiu. Quando olhei pela janela, ele estava bem longe, indo embora.

- O que será que o deixou desse jeito?

Alguns dias depois, a devastadora notícia chegou às duas casas: Luis havia morrido. Arrasados, ambos se dirigiram ao local do velório e ao se encontrarem compartilharam, por um instante, o mesmo olhar que haviam trocado quando se viram pela primeira vez. O contato físico do abraço fez parecer que aqueles anos distantes foram apenas um sonho. Lágrimas rolavam em seus rostos, mas um não conseguia olhar para o outro. Estavam envolvidos num abraço tão confortante e consolador, que era difícil abandonar a posição para dar atenção a qualquer coisa fora daquela atmosfera.

Ambos respiraram profundamente e separaram-se do contato, os olhos não conseguiram se encontrar. O medo do passado era maior. Juntos, caminharam até o caixão de Luis, a fim de declarar suas últimas palavras:

- Meu irmão, sua caminhada chegou ao fim. Muito obrigada por cuidar de mim e do nosso pai…

- Luis, você finalmente se aposentou. Descanse em paz…

Essas últimas palavras tiveram um poder inexplicável. Era como se o próprio Luis as tivesse ouvido e agradecido aos dois. O caixão foi finalmente fechado, e aos poucos os olhares do ex-casal começaram a se encontrar. Suavemente e espontaneamente os olhos se fixaram, acompanhados de um sorriso e de um longo suspiro de paz e alívio. Sem emitir uma palavra, os dois demonstraram gratidão um ao outro por toda história que percorreram até então, mesmo sendo mal-falados e considerados por muitos uma família sem Deus.

Maria de Lurdes

Maria de Lurdes
Enviado por Maria de Lurdes em 19/06/2022
Reeditado em 27/06/2022
Código do texto: T7541094
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