A tragédia da bela moça

Minha vida se inicia--creio terminar também-- nesse minúsculo e desconhecido vilarejo chamado Paranoá, para alguns ignorantes: região administrativa. O nome é tão inexpressivo quanto seus moradores; mas sempre vivo na primavera, verão e um pouco do outono. Os transeuntes não se arriscam as boas intenções, nem manifestam educação. Olha que por aqui todos se conhecem. Apesar dessas mazelas, tenho vivenciado, incólume, aventuras e experiências únicas. Ora, foi sendo um paranoaense que me formei em filosofia e fiz-me especialista em literatura-- apesar de considerar-me um medíocre que nada sabe; todos por aqui me tratam por "Sr. Poeta". O problema é de faltar emprego e um pouco mais de reconhecimento... Fazer o quê?, toda má fama existente aos que cursam filosofia é dada pelos próprios alunos, péssimos alunos. Vivo por aí como um andarilho, vagando em busca de bons empregos. Quem sabe um dia os céus não me presenteiam com uma oportunidade de docência. Enfim, não pretendo preencher essa coisa toda branca, oriunda de uma tecnologia, com lamentações ou apenas sobre mim. Seria como destoar algo o qual poderia ser bonito e agradável de ler.

Quero mesmo é falar de Marieta. A mais bela desse vilarejo, cuja fama é dada pela má educação de seus moradores. Sua beleza inspirava sonetos; com uma pele caucasiana, lisa, olhos um pouco puxados como das orientais nipônicas, tão negros quanto a noite, altura média e um rosto sublime. Ah, se eu fosse um Mozart, faria uma obra para ela. Pobre de mim, apesar de formado em filosofia com a tal especialização já referenciada por aqui, não possuo talento algum, apenas um vazio. Ao seu lado sentia-me vexado. Devo ser mais pobre que Jó. Nada tenho a oferecer à Marieta. Por outro lado, o senhor Ricardo, nascido em boa família, possuía um bom status, atrativo às mulheres. Com carro, bom emprego, advindo de uma sorte, ostentando algumas mentiras, saiu-se muito bem com Marieta. Todos os meus lugares: meu namoro, meu casamento, meus filhos e minhas brigas de marido e mulher foram furtados. Ricardo tem o suficiente; eu, apenas bons livros e um razoável intelecto, um "semi-filósofo", como sempre diz a mim o senhor Peralta. Não dou importâncias ao materialismo da ganância, mas é preciso de um pouco disso para a sobrevivência tranquila de uma família. Digo tudo isso precipitadamente, pois quem diz que Ricardo e Marieta estão juntos são meus preconceitos, angústias, ansiedades, frustrações e medo.

Ao passar por perto dela, com pânico e alma paralisada, sentia seu olhar para mim semelhante quando encaram os miseráveis de rua: condoídos.

--- Olhá lá, o Sr. Poeta. Moço tão inteligente; cheio das palavras que nem sequer conseguimos pronunciar, vivendo em misérias, não consegue nem bancar vicíos baratos. Pobre. --- Disse Marieta inundada de amarguras no peito e piedade. As amigas lamentavam para si mesmas, não sabiam o que dizer, limitavam-se as comparações financeiras:

--- Hoje em dia essas coisas de intelecto não adianta, tem que ter dinheiro. Digo, muito. Quem tem boas condições é o Ricardo. Moço altivo, bom carro e com emprego terceirizado pelo governo. Não sabe lá falar bem o português, mas quem liga? Ele se sente inteligente as vezes, acha que é advogado-- elas riem sarcasticamente--- Porém, como já disse, ele tem onde viver.

Marieta, perdia-se diante da janela, gostava de observar a movimentação lá de cima do seu quarto. Não acreditava, nem concordava, com as palavras das amigas. Admirava pessoas inteligentes, cheias de conhecimento que pudessem contar a ela sobre as passagens de Dante pelo inferno, purgatório e paraíso; queria escutar sobre tudo um pouco. Achava que mesmo Ricardo sendo advogado não queria dizer muita coisa, ela sempre desconfiou dessa classe.

Ricardo e eu éramos bons amigos, numa dramática época em que meu intelecto beirava aos do chimpanzés. Esse nosso laço vingou por mais de dez anos. Porém, com o passar do tempo, ele ficou inerte, parado em meio às estações do ano, nada mudava. Quando havia mudança era para pior. Tornou-se um profissional da mentira. Além disso, adquiriu uma índole de traidor e, de certa forma, soberbo. Hoje, por intermédio do senhor Peralta descobri que Ricardo andava pelas redondezas de Marieta, senti uma picada em meu peito.

--- Tem certeza senhor Peralta?

Senhor Peralta, dono de uma pequena mercearia da vila, conhecido por todos, passava-me algumas entregas para, assim, ajudar-me com alguns trocados. Um bom velho, ostentava seus 79 anos com vida, mas com alguns problemas. Ele gemia ao sentar-se e dobrar aquelas juntas, era possível ouvir os rangidos de seus ossos.

--- Aquele Ricardo é um lorpa! Lembro-me muito bem de vocês dois bem miúdos brincando aos arredores desse vilarejo. Sei muito bem que sua condição financeira, graças à pensão do tio, proporcionou solidez às suas mentiras. Fica mais fácil ter dinheiro e sair por ai montando uma gangue de interesseiros. Por isso você se afastou. Hoje, graças a tudo isso, ele tem carro, ostenta mentiras, como ser advogado, e ainda por cima, mentindo e traindo colegas, conseguiu um cargo terceirizado do governo. É um malandro!

Não queria dizer ao velho Peralta, mas quem sou eu para decidir as mulheres de interesse do Ricardo, ele é livre, assim como elas. Apenas embriaguei-me no amor utópico, algo cuja existência limitava-se aos meus pensamentos. Dirigia amabilidades à Marieta, pois conhecia sua índole, moça de manifestar bondades as quais emanavam de seu doce e nobre coração. Como não se apaixonar e sentir um ciúme tolo daquilo que nem me pertence?

Depois de ouvir o Senhor Peralta, preparava-me para responder quando um garoto rechonchudo ofegante, vinha correndo espantado, anunciar que "O 'dotô' Ricardo acabara de pedir à mão de Marieta...", sem esperar a pobre criança concluir sua informação, sacudi-o perguntando:

--- Ela aceitou... hein... Responda!!!

Senhor Peralta exclamou, pedindo para que eu parece com a cena; então dei de conta da besteira que estava fazendo. Dei alguns trocados ao garoto e pedi desculpas, ele foi embora assustado sem entender nada. Não seria mesmo um bom marido para Marieta. Certa vez ouvi de uma de suas amigas o seguinte "ele pode até ser culto, cheio de erudições, mas não tem carro ou orientações tangíveis", nenhuma mentira. A mulher que iluminava meus olhos merece algo que dê sentido à sua nobre vida.

Passaram-se alguns dias desde a informação do garoto sobre o pedido de Ricardo, agora o vilarejo inteiro não apenas sabia do casório como foram convidados, inclusive eu. Fiquei indignado, a raiva serpenteava pelo meu corpo, sentia-o febril e poderia esmurrar até mesmo um grande amigo. Porém, quem deveria levar a culpa? Aliás, culpa de quê? Ricardo e eu não tínhamos nenhum laço há alguns anos. Essa fúria me consumiu ao ler o convite:

" Meu velho amigo,

Sei que não nos vemos há anos -- até hoje não entendi os motivos-- mas quero lhe dizer que sinto sua falta. Lembro-me de todas as nossas aventuras, as saidinhas às escondidas de nossos pais, cada bronca. Era tudo muito engraçado e nostálgico. Por isso, meu amigo, além de convidá-lo para meu casamento, quero que seja o padrinho!"

Ora, aquele convite, tão mal escrito, surtiu como uma afronta, por mais que ele não saiba disso. Ricardo parecia entusiasmado. Sentia deboche, mas ele não poderia saber de meus sentimentos por Marieta. Creio, conhecendo-o bem, tratar-se de mais um gesto de exibir seus "dotes". Estaria amando Marieta? Minhas conjunturas forçaram-me a ir à mercearia do senhor Peralta, precisava de um velho conselheiro; talvez apenas um ouvinte.

O sol dava seus últimos suspiros, o céu forrava-se da cor rubra, logo vestiria seu manto negro cheio de pingos de luz; diante desse quadro, cheguei à mercearia do velho Peralta. Ele estava numa cadeira de balanço, mas não se mexia, encarava o horizonte com seu cachimbo, parecia apenas contemplar o tempo, sua mente parecia longe. Porém, senhor Peralta apenas esperou que eu me aproximasse mais, deu uma baforada e disse:

--- Ora, não vê o lindo pôr do sol? Por que está com essa cara de cachorro esfomeado? -- Senti-me ofendido, mas a tristeza fez-me não dá importâncias a tal ofensa.

--- Não consigo parar de pensar nesse casamento de Marieta com Ricardo! Uma espécie de sentimento diabólico consome meus pensamentos apaziguantes; esqueço-me a liberdade individual, saboreando ódios ao verme daquele homem, um dia meu querido amigo! Penso, às vezes, que ele não é homem para Marieta. O dinheiro não a compraria, apenas o amor. Talvez, creio, não... Oh, amigo, Peralta, não sei mais o que pensar...

--- Tolo! -- Disse senhor Peralta severamente-- Não acumule tais sentimentos imbecis, reprime-os, é o mais honesto a se fazer. Não digo por eles, mas por você! Olho para você e suspiro admirações por toda filosofia que carrega na cabeça, podendo tornar importante à educação precária a qual possuímos. Todavia, meu caro, nessas condições, diante de mim, sinto arrependimentos por admirá-lo! Como um homem íntimo de Platão, que desbravou pelos círculos do inferno de Dante, pode ser tão fraco?! Deixe de besteira! Não sou instruído, mas aprendi muito com o senhor. Deve saber, mais do que muitos por aqui, que amores são chamas inapagáveis, nem adiantaria águas geladas, muito menos escolhida por outros. Deveria saber que nenhuma mulher merece a amargura da pobreza, mas ter alguma base. Marieta apaixonou-se por Ricardo, o dinheiro dele é uma mera consequência. Agora se ele, de fato, for um mau caráter, isso, meu jovem rapaz, o tempo, com certeza, dirá. O tempo não mente. Agora deixa de papo fiado, vamos entrar e tomar umas cervejas.

Passamos boa parte da madrugada em conversas variadas; ora tristes, ora alegres, ora depravadas... Apesar de carregar um pouco do peso da tristeza, sai dali melhor do que antes. Agora posso encarar a realidade. Senhor Peralta até rio de mim, naquele seu momento de embriaguez, por eu, um crítico do socialismo, estar fora da realidade. Decidi ser padrinho do casamento de Marieta.

O relógio apontava para 12h44min, o sol brilhava, mas não ardia nossas peles; nossos meses de junho é possível saborear essa estrela sem muitas dores. Justamente, nesse mês invernoso, que Marieta irá se casar, o qual serei o padrinho. Por pura negligência, a certo contragosto pelo título, não havia comprado roupas necessárias. Fiz um empréstimo com o senhor Peralta. Passava, a passos apressados, pela Praça Central, rodeada de bancos de concreto, ostentando uma fonte bem no seu centro onde crianças corriam em sua volta; precisava chegar numa loja mais barata para alugar vestimentas. Em um dos bancos, o mais distante da fonte, estava uma criatura aos prantos, deitada naquele banco desconfortável. Meus olhos logo se arregalaram, era Marieta! Estava ali, acabrunhada. Cheguei bem perto e perguntei:

--- Tudo bem, moça?

Ela me olhou com espanto, depois voltou a chorar, dizendo: "Ricardo me traiu"

Fiquei em choque, não conseguia pensar em algo reconfortante. Como alguém poderia ser tão audacioso de trair uma bela flor? Nem aos prantos seu semblante doce mudava, apenas entristecia meu coração. Talvez eu fosse um inexperiente nessas aventuras, pois sem piedade perguntei:

--- Como o fez? --Marieta me olhou com mais dor, mas respondeu.

--- Estava aos beijos com Lorena... Voltou a chorar demasiadamente.

Lorena, amiga, ou, nesse caso, ex-amiga, era uma das moças que ficavam bisbilhotando pela janela ao lado de Marieta. Não pensei que seria necessário citá-la, nem sequer a vi como uma coadjuvante. Agora é um genuína antagonista! Então, cheio de incoerência, suguei o máximo de ar possível, inchei meu peito, então confessei atrapalhadamente:

--- Marieta, pois largue-o e casa-se comigo! Não tenho nada, mas posso lhe dar tudo! Prestarei aos concursos da secretaria, vou conseguir ter boa renda. Sou apaixonado por ti!

Continuei:

--- A primeira vez que a vi, naquele salão dos Pereiras, fazendo algumas compras, senti o ar tornar-se mais leve, meu corpo parecia flutuar. Você vinha com seus passos tão leves e delicados, faziam ecoar sonetos tão bonitos quanto os de Bethoween. Meu coração palpitava desorganizado, o corpo era pura tremedeira. Descobri a paixão. Era tão ardente e incontrolável. Sua presença moveu-me a tal sentimento, um meio para ascender ao amor em meu coração. Não conseguia suportar seu sorriso, ele soltava faíscas reluzentes, clareavam qualquer treva. Tão bonitos quanto o sol da meia noite norueguesa. Não o suportava pois nunca fora direcionado a mim... Oh, Marieta, como a amo!

Marieta, espantada, esqueceu-se de seu sofrimento naquele instante, não sabia o que dizer. Seus olhos, ainda encharcados e vermelhos, analisavam minha fisionomia, era como se tudo pronunciado por mim estivessem sido ofensas tão vulgares quanto o golpe da República. Os lábios pareciam querer se desgrudarem, sentia que algum som seria proferido, mas logo ela desistia. Diante dessas relutâncias, finalmente Marieta respondeu:

--- Eu não sabia, Sr. Poeta. Como isso aconteceu? Estou confusa e triste...

Marieta votou a chorar com mais intensidade. Fui rápido, não esperei pelo momento oportuno, taquei uma bomba na pobre moça diante de seu sofrimento. Pensei em ir embora e deixá-la sozinha, porém, nunca devemos abandonar uma mulher chorando sozinha, ela precisava de alguém. Então erguei minha mão e propunha sairmos dali, irmos para algum lugar melhor.

A pobre, porém, golpeou minha mão com as costas da sua, uma demonstração de recusa. Tomou, então, atitude de correr daquele lugar, fugir. Fugir de mim? Nunca saberei ao certo o que se passou. Infelizmente, o dia tão encantador mudou completamente sua fisionomia, como as quatro estações de Antonio Vivaldi, ele fora consumido por trevas e melancolia, deixando o aroma lúgubre penetrar. Marieta, aos prantos, corria em direção à igreja católica, que ficava em frente à praça, quando surge a figura vulgar de Ricardo chamando-a. Nesse ínterim, interrompendo sua corrida fugitiva para olhá-lo, ela acabou distraindo-se, esquecendo-se estar no meio da pista, a qual servia de atalho entre as duas pistas principais da avenida; um carro, apressado, atingiu Marieta...

Corri depressa em sua direção. O coração batia desengonçadamente, o ar parecia serpentear pelo interno de meu corpo, minhas pernas tremiam bambas. Ao aproximar-me pude apenas ouvir a última palavra de Marieta: "perdão", dando seguida ao findo suspiro. Morreu. Chorei deveras. O sino da igreja tocava, alertava para algum horário exato, não me lembro qual nem faço questão. Perdi o amor que jamais tive e nunca terei.

O enterro ocorreu quatro dias depois. Não tive coragem de ir, acovardei-me. Preferi ficar ao lado do sr. Peralta com seu conselhos estapafúrdios, mas sempre cheios de sentidos. Ficamos fumando cigarro de palha. Ricardo, por outro lado, chorando amargamente-- simulação quase perfeita oriunda de sua classe-- escondeu muito bem sua traição, culpando a mim pelo ocorrido. Para ele eu teria dito alguma asneira à Marieta, fazendo-a fugir do lugar onde estava. Fiquei bastante furioso, porém, Peralta, acalmou-me os ânimos, dizendo que a moral não precisa ser apreciada aos olhos de terceiros, mas, sim, pela nossa consciência. Ricardo jamais teve moral, fingia a todos.

Marieta fora vítima da ilusão de homens canalhas que vestiam o manto da moral, ética, simpatia e lealdade. Homens os quais julgam terceiros pela má conduta, as vezes até criam-nas, para enaltecer a si próprios, olhando apenas para baixo, o umbigo. Mas Marieta de nada teve culpa, apenas possuía uma alma pura e tão celestial, talvez sua existência fosse um sinal para destruir o demônio reinante no espírito de Ricardo, mas que fora levado aos céus por uma leve distração.

Descanse em paz Marieta!