Aqueles Eram Os Dias

Lembro de ter sido uma loucura, e muito boa por sinal, ter saído de casa um tanto sem rumo. Isso porque houvera me prolongado demais em Belo Horizonte, deixando tanta dor e tristeza rolar enquanto eu permanecia imóvel. Comprei uma passagem, direção ao Uruguai, queria ver as montanhas e o frio.

Foi quando ocorreu o incidente e o avião precisou pousar em Porto Alegre, porque não poderia seguir caminho até o destino. Fomos avisados que seríamos levados de volta para Belo Horizonte. Eu optei por ficar. A vida era um pouco diferente por lá, passei noites frias e estranhas. Porém ainda, de certa forma era um alívio estar longe daquela cidade onde só eu parecia existir. Entretanto, o cheiro de cidade grande perturbava meu coração. Eu andava sob a chuva e o céu de ferro, mãos nos bolsos e cabeça baixa. Maquinando sempre novos meios de fuga da minha própria existência confusa.

Consegui comprar uma motoneta, que ainda tenho até os dias de hoje. E segui para o interior até descansar em uma pequena cidade chamada Camaquã, não tão distante da capital de Rio Grande. Permaneci por alguns dias, mas tempo suficiente para que eu pudesse parar de conta-los.

Comecei a me questionar se o grande problema enfim era eu mesmo, talvez alguma coisa em mim mesmo não estivesse alinhada com o que fosse saudável em termos de existência. Eu mesmo não conseguia compreender a natureza da minha inquietação, talvez fosse pelo fato de eu ser um homem não realizado em nenhuma das áreas de minha vida.

Ou porque talvez, o destino me reservava boas alegrias...

Peguei o estranho costume de visitar o museu nacional, aquele dedicado aos primeiros desbravadores daquela região. Ele tinha um pequeno observatório a noite, que permitia ao seus visitantes contemplar as estrelas com o melhor dos aparatos de ciência do céu.

Foi lá onde conheci Jorge e Renato, amigos meus até os dias de hoje.

Numa daquelas noites solitárias, me deparei com uma cena que mudaria meu destino: uma garota estava reclamando do gênero masculino com um grande ênfase na falta de compromisso dos homens. Éramos só nós dois, e ela fez questão de se aproximar e perguntar:

— Por que vocês, HOMENS, agem dessa forma ridícula?

Era uma pergunta? Até hoje eu não sei explicar. Mas eu a olhei, e ela me parecia como um anjo retilíneo, triste e relutante, mas que me fez mudar meus planos. Eu tentei negociar ao responder que era porque nos faltava boa educação em nossas vidas. Ela se virou e disse:

— Isso é tão... Bobo.

Riu-se e acrescentou: — Eu também não tive quem me ensinasse... Acho que tudo é questão de caráter.

Eu disse meu nome e a minha história, 120 dias em Camaquã esperando a vida começar, e ela havia se iniciado ali mesmo. Ela me olhou impressionada, como se eu fosse um estrangeiro. Ajeitou seus óculos como se do nada conseguisse enxergar mais claro do que nunca:

— Você se chama Gustavo? Meu primo Jorge falou de você, disse que você estava precisando de alguém para te ajudar na sua casa.

— Você é a Jamile eletricista?

Ela acenou com a cabeça, positivamente, e depois se corrigiu. Na verdade ela só entendia de elétrica. E era exatamente o que eu precisava. A fiação da minha casa era bem antiga, e ela começou a me visitar regularmente para trabalharmos juntos. No começo, ela era rígida, educada e esguia. Não se demorava. Mas ao longo do tempo, comecei a notar em seus olhos o quanto ela se auto convidava em ficar um pouco mais.

Confesso ter tentado embebeda-la com vinho roubado, três ou quatro vezes. Mas ela parecia muito mais apta a se abrir em longas e interessantes conversas sobre a segunda guerra mundial, simplesmente com o seu chá de ervas-silvestres (que me convenceu a também ser um apreciador de tal bebida). E para ser sincero, acredito que essas conversas eram tão ou igualmente interessantes... Logo, não demorou muito para que ficássemos juntos. Ela tinha sempre ótimas ideias de lugares e atrações para visitar, e definitivamente eu nunca mais voltaria naquele museu.

Jamile tinha um sério problema na coluna, e eu a presenteei com uma bengala no primeiro fim de ano que passamos juntos. Na verdade, aprendi com ela que minhas tentativas de fugir de meus problemas eram apenas egoísmo e imaturidade. Na verdade, o que me tornava um ser tão sem comprometimento, era o fato de que havia em mim raízes de tristeza e questões não resolvidas com o meu passado. Ela me ajudou a os dissecar um a um, até que chegamos a uma conclusão comum sobre o sentido da vida: Estar do lado de alguém que amamos.

Luiz era um idoso, amigo da família e Jamile o chamava de "avô". Ela passou dois anos cuidando dele como se fosse de seu próprio sangue. No dia em que ele morreu, ela me ligou. Metade triste, metade chorando:

— Gus, você consegue passar aqui?

— No ambulatório?

— Isso... O Luiz faleceu...

— Fica do lado de fora, eu vou te buscar agora!

Eu cheguei tão rápido que nem me vi dirigindo o carro do Jorge por entre aquela chuva que só aumentava. Ela estava parada do lado de fora do ambulatório. Eu definitivamente não sabia o que dizer, não havia planejado nada. Ela parecia estar simplesmente auto consolada, ou talvez, simplesmente anestesiada. Então eu só podia ouvi-la. Ela entrou fria como o vento daquela noite, não disse palavra alguma. Eu entendi tudo, ela não queria ser consolada, só que alguém a fizesse se distrair um pouco.

Eu perguntei se ela gostaria de ir no museu ver as estrelas, e quem sabe dividir uma pizza.

— Gostaria de ir na praia...

— Jamile, a praia é um pouco longe. Jorge vai ficar uma fera.

Ela me olhou, com seu olhar que se auto convidava. Eu desembainhei o pé no acelerador, pegamos a estrada enquanto eu ouvia ela se alegrar.

Há chuva no caminho,

estamos perto de mais.

Faróis quentes

iluminam sua silhueta desatenta.

Seus olhos se perdem

no horizonte da estrada.

Querendo tanto estar a sós...