Quem roubou as estrelas?

Eu sempre fui apaixonado pelas estrelas. Os mistérios escondidos por trás do véu escuro que abraça a noite e a beleza da lua refletindo, em prata, o brilho do sol me encantam como quase nada no mundo. Mas as estrelas – ah, as estrelas! –, elas me fascinam.

Era quase como um ritual: todos os dias, às onze horas da noite, eu espiava o céu apenas para observar aqueles pontos luminosos pairando sobre nós, assistindo ao mundo louco e acelerado, em perfeito contraste com a estabilidade, ao menos aparente, dos corpos celestes que habitam a imensidão do universo. Estivesse eu onde estivesse, dava um jeito de ver aquilo que mais me intrigava em toda a minha existência. Pouco sabia sobre elas, nada entendia sobre constelações; eu era apenas um admirador nada secreto de seus encantos.

Naquele dia vinte e sete de fevereiro, as coisas também não seriam diferentes. Acordei logo cedo, estudei o dia todo e esperei ansiosamente pelas vinte e três horas. O dia estava claro e o céu se encontrava sem nuvens. Tudo indicava que as estrelas brilhariam soberbas sobre nós. Ledo engano.

Pouco antes de o céu se banhar em rubi e queimar em poente, tempestuoso, voltou-se contra o mundo. Os trovões ribombaram sonorosos e açoitaram o céu, agora travestido de luto. Nuvens densas e maliciosas invadiam o horizonte e dominavam a mansidão do pôr-do-sol. O rubro deu lugar ao cinza e a calmaria crepuscular cedeu espaço à tempestuosidade ofensiva de mais uma chuva de verão.

Esperava eu que fosse passageira, mas nada demonstrava que assim seria. Sem dar brechas para o brilho prateado rasgar aquele temporal, nada restava senão assistir ao céu chorar. Lágrima após lágrima, cansei-me de ouvir a chuva bater lamuriosa contra a janela de meu apartamento. Troquei, então, de roupa e saí a procura de algo para comer.

Como era de se esperar, a cidade estava praticamente deserta. Alguns casais jantavam em restaurantes de primeira classe, apreciando comidas caras e degustando vinhos que custavam mais do que meu paladar poderia pagar. Em uma pizzaria, meia dúzia de jovens conversavam e bebiam como se o mundo não estivesse acabando em água. Parei meu carro no estacionamento de minha cafeteria preferida.

Depois de alguns minutos esperando a chuva diminuir e percebendo que meu desejo não se realizaria, desci do carro e corri para a porta do estabelecimento. Todo enxarcado, bati a água das roupas e caminhei até o balcão.

Não precisava olhar o cardápio. Eu já sabia o que queria. Mas, como quem faz charme, passei os olhos pelas opções e pedi um chococcino e dois croissants para acompanhar.

Enquanto esperava o pedido ficar pronto, olhei para o relógio na parede, que marcava dez horas e cinquenta e três minutos. Olhei pela janela e a chuva ainda castigava a cidade. Aceitei que não veria as estrelas. O céu as roubou de mim naquela noite.

Dez horas e cinquenta e seis minutos. Meu chocolate quente ficou pronto. Tomei-o em uma das mãos, com cuidado para não me queimar, agarrei a sacolinha com os croissants e fui para o piso superior, que, parcialmente coberto, protegia contra a chuva e me permitia assistir ao céu.

Enquanto subia os degraus, ouvi a porta da cafeteria se abrir e se fechar atrás de mim. Uma voz feminina e ofegante pediu um latte macchiato no balcão. Não ousei olhar para ver quem era. Tampouco me importaria. Com certeza não a conheceria.

Cheguei ao terraço e parei, em pé, próximo a uma mesa, onde apoiei minha bebida. Tirei um dos croissants do saquinho e dei uma mordida. Vinte e duas horas e cinquenta e oito minutos.

Ali, os dois minutos que restavam para as onze horas se diluíram na chuva que caía e perdi a noção de tempo e espaço, até que duas coisas me devolveram à realidade.

Primeiramente, o alarme no celular que dizia ser vinte e três horas. Em segundo lugar, aquela mesma voz feminina e ofegante, agora tranquila e ainda feminina, “lindo, não?”

Demorei alguns segundos para entender que ela falava comigo. Com o olhar perdido no nada, chacoalhei a cabeça e voltei para o presente. “Perdão! O que foi que disse?”

Enquanto ela repetia a pergunta, virei-me para encará-la e, atônito, não compreendi uma palavra que saiu de sua boca. O céu não havia roubado as estrelas de mim. Aquela mulher o fizera. Ali estava a prova, lá estavam elas, disfarçadas naquele olhar, brilhando mil constelações, às onze horas em ponto.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 22/01/2023
Reeditado em 22/01/2023
Código do texto: T7701593
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