LADEIRA TORTA

Chovia fino e compassadamente, ao mesmo tempo, que o sol se escondia no horizonte azul, do mar sem fim. Dali podia alcançá-lo com meus olhos, juntando-se ao céu, num só e nada mais. Despedi de Maria Valentina com um abraço apertado. Sempre fomos amigas desde o primeiro ano de escola. Tinha por ela grande afeto, embora nossa amizade fosse alguma coisa de encontros não tão casuais e inesperados, como esse último. As ocupações nos deixavam um pouco distantes. Às vezes, nossos cumprimentos ficavam por conta das figurinhas da mídia social. Um coraçãozinho, um bom dia, ou, uma carinha carinhosa.

Nesse fim de tarde, o céu escuro anunciava chuva. Eu finalizava a varredura da calçada e punha o lixo no saco sobre a lixeira, quando ela parou bruscamente seu carro. Desceu, e com um sorriso largo de quem está feliz, me deu um abraço tão apertado que parecia ser o derradeiro das nossas vidas.

Fazia meses que não a via. Ela estava linda, magra e bem vestida. Na pouca conversa, contou-me que tinha passado no concurso para juíza, acrescentando que enviaria o convide via e-mail e que queria me ver na primeira fila, para aplaudir sua conquista.

O prédio do Teatro seria o local da solenidade e ficava no alto da Ladeira Torta, quero dizer no alto do morro onde ela finalizava dando lugar à Avenida Tristão de Ataíde. A Ladeira Torta começava à beira mar, de forma que o local era privilegiado e de uma vista deslumbrante. Minha casa ficava embaixo. Era a quinta casa na subida do morro, próxima do mar. Nasci ali e continuava a morar com todos da família. Meu pai construiu um prédio de três pisos, ele e mamãe moravam no térreo. Eu e meus irmãos, nos outros, acima deles. Eu morava no primeiro andar e sentia na obrigação de limpar a escada e a calçada.

Não tive a mesma sorte que Maria Valentina, minha amiga juíza. Virei professora de Matemática. Lembro que quando estudávamos juntas eu a ensinava nas dificuldades com os números.

Os turistas amavam descer a ladeira fotografando, e, ou, filmando até chegar no mirante à beira mar. Nesse local não tinha areia. O mar e as rochas viviam brigando noite e dia, cada qual por seu espaço. Ali no final era um penhasco de uns dez metros de altura. O paredão de pedra era liso e brilhante por causa do açoite das ondas. Os marinheiros diziam que à noite parecia uma caixa de joias. Ela devia ter uns quinhentos metros de extensão até as primeiras areias onde os biguás e outros pássaros viviam e faziam seus ninhos.

O governador resolveu construir ali um muro bem reforçado de cada lado do mirante, porque era perigoso, caso faltasse os freios, o carro ia parar nas águas. Muitos adolescentes gostavam de pular no mar e nadar pela orla profunda até chegar à praia. Na verdade, era uma proteção feita com muito ferro, pedras e concreto. De alguma forma, evitou muitas tragédias ocorridas antes do muro ser construído.

A ladeira em si era maravilhosa, em toda a sua extensão, além das árvores centenárias, era circundada de desenhos feitos de concreto onde nós habitantes cultivávamos flores lindas e raras. As flores coloriam a subida fazendo do caminho íngreme, os canteiros desenhados de acordo com a própria tortuosidade. Eles se perfaziam dando um ar luxuoso e diferenciado ao bairro que começava à orla do mar. O mais interessante é que as construções todas muito bem definidas em conformidade com o solo pedregoso que ao me lembrar como meu pai arquitetou o prédio, construído por sobre o extenso lajedo de pedra, que parecia ter sido posto ali de maneira proposital. Não havia rachaduras, nem ranhuras. Dizia meu pai que quando criança eles se aventuravam morro abaixo nas cuias de coco de dendê e iam frenando com os pés. No fim da tarde, reparavam que durante o banho, a sola dos pés estavam cheias de bolhas, quando não os chinelos carcomidos pela frenagem. Dizia ele, que vovô não vencia comprá-los.

Depois da construção do muro os meninos desciam de esqueite e até de patinetes. Ficava louca quando via aquilo, contudo, o muro lhes servia de contenção salvatória.

Particularmente, minha admiração pelo local onde nasci, era imensa, não pensava jamais em sair dali.

Todas as manhãs ia ao trabalho. O carro subia gemendo em primeira marcha.

Lecionar para mim era gratificante, amava lidar com os números e de certa forma aprendi uma didática bastante fácil de entendimento. Meus alunos quase nunca reclamavam do aprendizado. Pouquíssimos ficavam no vermelho.

Enfim, chegou o grande dia da diplomação de Valentina.

Usei meu melhor vestido, sapatos altos, maquiagem e cabelo feitos por outra amiga do salão, em frente minha casa.

No auge dos meus trinta anos, sentia-me bonita e confiante.

Cheguei no horário conforme constava no convite.

Tomei meu lugar.

Um rapaz grisalho sentou-se ao meu lado e me cumprimentou. Reparei que além de bem vestido e cheiroso, era de uma elegância ímpar.

Respondi ao seu cumprimento e fiquei em silêncio, mas, com a língua coçando para iniciar uma conversa.

Tão logo, começou a solenidade e a mesa foi composta pelas autoridades de praxe. Para se juntar a eles, Maria Valentina foi convidada.

Sentia orgulho da nossa amizade, ainda que caminhássemos por atalhos nada parecidos.

São tantas coisas guardadas no coração, que falar delas, nesse episódio, entre mim e Valentina é algo mais que zeloso.

Retorno à diplomação da minha amiga, ô festa linda e emocionante! Chorei enquanto ela fez o juramento e seu discurso. Fiquei pensando: será que ela vai mesmo cumprir com mestria tudo o que disse?!

Nesse pensamento reparei que o rapaz ao meu lado, não tirava os olhos dela. Tive vontade de perguntar se ele a conhecia, se eram amigos, mas, me contive.

Depois do coquetel nos despedimos e cada qual foi para sua casa.

Continuei na minha vida de professora e ela na de juíza de uma comarca próxima da nossa cidade.

Nossas conversas eram sempre pouco longas, afinal, ela em começo de carreira e eu professora em dois empregos, quase não tínhamos mesmo tempo para conversas mais longas e profundas.

Lá se foi o ano inteiro. Nas férias ela me convidou para ir com ela, mas, não pude lecionava também numa escola preparatória para concursos e não ia dar para sair em vista de que haveria as provas para os oficiais de carreira dentro de dois meses.

Assim que ela chegou das férias me ligou e saímos para um jantar. Conversamos bastante até quase meia noite. O restaurante já lacrava as portas quando saímos. Colocamos o papo em dia, mas, nada de novo, além de trabalho e mais trabalho foi dito.

Passados alguns dias, nos encontramos no estacionamento do Tribunal. E conversamos um pouquinho.

Nessa pouca conversa, ela me disse que encontrou um rapaz bacana, que esteve no teatro no dia da sua diplomação e posse e que os dois estavam se conhecendo.

Sobre esse assunto, eu nada tive a dizer, contudo fiquei pensando quando é que chegaria a minha vez.

Certamente, em algum lugar deste mundo minha outra metade deveria estar à minha procura.

Amava minha amiga de infância e queria mesmo que ela fosse feliz. Notei o brilho radiante em seus olhos e lhe desejei boa sorte.

Cada uma de nós entrou por uma porta. Na saída tive vontade de ir me despedir dela, mas, acabei indo embora porque já estava atrasada.

Alguns meses se passaram. Nossas atividades sempre exageradas e nós na peleja para que elas tivessem um fim.

Passados alguns meses, encontramo-nos à porta do Tribunal, eu chegava e ela saía. Abraçamo-nos, apenas. Reparei que não estava com o semblante feliz.

Ainda que fôssemos tão amigas, não podia invadir sua privacidade. Nesse dia, à noite, liguei para ela. O telefone tocou, mas, ela não me atendeu.

No outro dia, enquanto dirigia ao caminho da escola, retornou-me a chamada, dizendo que chegou exausta do trabalho, caiu no sofá e dormiu. Disse a mim numa grande euforia que achava que estava grávida, havia feito o exame. Assim que obtivesse o resultado me diria.

Escutei, fiquei feliz, mas, nada questionei.

No outro dia, ela me ligou confirmando a gravidez e sem que eu perguntasse já foi me dizendo quem era o pai e porque quis engravidar. Disse que me visitaria no fim de semana para contar tudo pessoalmente.

Nessa hora pensei em mim, que estava na mesma condição que ela, beirava os trinta e cinco, solteira e era hora de decidir se ia ficar só a vida inteira, ou não. Pensei na minha condição de professora, trabalhando nos três turnos do dia, realmente não poderia me dar a esse luxo.

Enfim, chegou o sábado. Valentina apareceu radiante. Estacionou o carro e nós entramos. Tomamos café e a conversa foi longa.

Meu pai meu chamou na sacada e disse que almoçaríamos com eles, logo poderia ficar tranquila.

Nesse dia, fiquei sabendo que o pai do bebê que Valentina esperava, era o que havia se sentado ao meu lado no dia da sua posse magistral.

Contou-me que os dois iniciaram suas conversas nas redes sociais. Depois ele a convidou para jantar. Disse que nos primeiros meses estava muito bom o namoro, cheio de muitas promessas e carinho. Recebia flores quase todos os dias, assim que chegava ao trabalho. Havia dias que ao chegar, as flores já estavam sobre sua mesa com um bilhetinho carinhoso.

As discussões sobre nada, também começaram, assim que ele passou a ir em seu apartamento. Demonstrava um ciúme doentio, por qualquer coisa. Até sobre as fotografias que tinha no aparador na entrada da sua sala.

Todos os dias ela tinha que responder um interrogatório infeliz e sem nenhum fundamento.

Por causa disso, ela pressentia que não ia dar certo, mas, foi levando, afinal de contas, estava apaixonada. Parecia que ele também, entretanto, alguns desses comportamentos a deixavam um tanto quanto chateada e desanimada, até que apareceu a gravidez.

Para ela foi um misto de alegria, misturado ao desespero pelo fato de ele ter horror em ser pai. Ela já estava na décima segunda semana de gestação e não tinha ideia de como contar.

Nesse dia, ela me disse que nem sabia como falar com ele sobre o assunto, era uma questão dificílima, uma vez, que ele abominava completamente o desejo de se tornar pai.

Durante essa nossa conversa, seu telefone tocou, era ele, querendo saber onde ela estava. Informou-o de que estava na Ladeira Torta, na casa de uma amiga de infância e desligou, sem mais explicações.

Descemos para almoçar. Durante a refeição papai e mamãe conversou bastante com a gente, sobre vários assuntos, afinal, os idosos são cheios de alegria e amam estar com os mais jovens, principalmente, eles, os meus pais. Acho que se sentiam também no auge da juventude.

Depois do almoço conversamos mais um pouco e subimos. Ficamos na sacada curtindo o sabor da maresia. O vento do mar estava um pouco forte e as águas batiam com violência no rochedo de forma que molhava a rua do lado de cá do muro de contenção.

Estava sendo um dia muito agradável, até que ouvimos um barulho ensurdecedor de motor misturado a gritos, e as pessoas da vizinhança saíram para ver o que era.

João Victor desceu a ladeira na velocidade como vinha, certamente tinha bebido demais, não teve como frenar, o carro. Bateu violentamente na mureta e despencando no paredão. Além da violência das ondas e do vento, o carro mergulhando nas águas, fez com que toda parte da rua ficasse alagada.

Até então, não sabíamos de quem se tratava. O muro ficou intacto, os danos foram no veículo que perdeu toda a frente para a rigidez do muro.

Quando todos tiveram coragem de olhar o veículo, acaba de sumir no fundo do mar.

O corpo de bombeiros foi chamado e imediatamente mergulharam para içarem o veículo.

Quando chegou à superfície foi que Valentina se deu conta de que era o pai do seu filho, embriagado, que havia submergido no oceano.

Ele foi retirado das ferragens e encaminhado ao hospital.

Valentina e eu fomos também. Naquele momento, ela precisa muito de mim. Não sabíamos se ele estava vivo.

Ficamos na recepção várias horas esperando que o médico viesse dar notícias.

Noticias essas que não foram favoráveis. Com a colisão ele havia quebrado o pescoço e perfurado o tórax. Não estava usando o cinto de segurança.

Foi-se um João Victor e depois de seis meses chegou o filho que ele não sabia que iria ter, mormente porque negava esse desejo, contudo, a mãe, por amor ao pai deu-lhe o mesmo nome, João Victor Resende Costa Jr.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 27/04/2023
Reeditado em 04/06/2023
Código do texto: T7774448
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