Pássaros na chuva - Tomo II

 

Nota do autor: o texto "Pássaros na chuva" foi originalmente escrito e publicado em agosto de 2020 e é uma homenagem à querida amiga e autora Josy Matos, alguém cujos textos gosto muito de ler, mas que anda meio sumida do Recanto. Abaixo, antes do Tomo II, deixo o texto original, com algumas mudanças sutis, para quem ainda não leu.

 

                                   Pássaros na chuva

                                          Tomo I

 

                O frio naquele dia era daqueles de bater o queixo e tremer as pernas. Ela, como de costume, acordou cedo. Permaneceu algum tempo deitada ainda, olhando para o teto e tentando lembrar do sonho que teve à noite. A sensação era a de que havia alguma informação muito importante, porém não conseguia recordar uma única cena sequer...

 

Depois de alguns minutos, finalmente tomou coragem para levantar-se. Caminhou até a cozinha onde preparou meia caneca de chocolate bem quente. A chuva caía lá fora, e o som gostoso da água batendo nas folhas e nas telhas era um convite à reflexão. As crianças ainda dormiam; com aquela temperatura era certo que nem tão cedo sairiam da cama. A caneca fumegava em sua mão enquanto observava atentamente alguns pássaros que se aventuravam nos galhos encharcados da goiabeira. Assoprou instintivamente o chocolate antes do gole experimental. Mais uma vez tinha acertado nas dosagens de chocolate, leite e açúcar. Pôs também um pouco de creme de leite para atribuir cremosidade. Estava espetacular.

 

Passou então a observar um casal de pássaros que fazia o tradicional ritual pré acasalamento. A fêmea tentava esgueirar-se, mas era assediada tenazmente pelo macho obstinado. Toda aquela coreografia era para ele um verdadeiro teste de paciência. Vendo aquilo, ela pensou em como no mundo humano as coisas já não eram mais assim há algum tempo. Os homens agora pareciam não ter mais nenhuma paciência com fêmeas reticentes ou que apresentam alguma "resistência pré acasalamento". Eles geralmente desistem e procuram uma fêmea "mais fácil". Tomou outro gole e viu quando a passarinha mais uma vez esquivou-se de seu pretendente determinado. Pensou então no fato de que os homens mudaram porque também as mulheres haviam mudado. De algum modo, em algum momento da história moderna, elas passaram a ceder com maior brevidade às demandas e pressões daqueles que antes compreendiam a necessidade de esperar pelo "tempo certo" em que as coisas naturalmente ocorreriam. Não dava para precisar quando foi que criaturas doces e apaixonadas por natureza, as mulheres, permitiram-se ao que hoje se vê, a saber, comportamentos equivalentes àqueles que passaram gerações criticando nos homens. E como resultado disso, um desvalor de seu gênero que jamais vira em sua idade mais tenra.

Sabia que a mudança não abrangia a totalidade das mulheres, mas um número vergonhosamente maior do que gostaria de admitir.

 

Voltou à cozinha a fim de preparar um pouco mais da bebida. Arrependeu-se de haver feito apenas meia caneca. Picou um pedaço do chocolate meio amargo e pôs no leite quente. Em seguida acrescentou o creme de leite, o açúcar e mexeu. Aproveitou e passou manteiga em algumas torradas Mellman para acompanhar. Sentou novamente onde antes estava e mordeu uma das torradas cujo barulhinho indicava a esperada crocância.

 

Torradas Mellman são uma delícia!

 

Olhou para a goiabeira e lá estavam os pássaros no que para humanos seria um impasse. A ave fêmea permanecia irredutível enquanto a outra não dava mostras de que desistiria da exaustiva empreitada. Um novo gole de chocolate fumegante a fez aquecer-se por dentro. Ainda assim percebeu que necessitava mais que chocolate quente para retroceder nas próprias mudanças e aquecer seu agora gélido coração.

 

Quando foi exatamente que perdera a fé na humanidade, sobretudo no sexo oposto? Quando foi que, como a pragana, seus sonhos de menina foram varridos pelos ventos da vida? Não foram apenas as demais de seu gênero ou os homens que tinham mudado. Suas mudanças também foram significativas. Outrora apaixonada pela vida, sua motivação para continuar, agora, era apenas o instinto materno. De fato amava seus filhos e jactava-se de que apenas a presença deles era mais que suficiente em sua vida. Repetia isso incansavelmente para si mesma e para quantos arguissem-na a respeito de sua perpétua "sozinhez". Disse essas coisas tantas vezes que seu subconsciente realmente absorveu tal informação e a arquivou em algum lugar privilegiado com a inscrição "Importante".

 

No entanto, naquele momento, observando a chuva e os pássaros, viu-se questionando sua verdade exaustivamente repetida. Não percebeu quando o pensamento sub-reptício entrou e preencheu uma lacuna que aparentemente não deveria existir. Sim, inconscientemente um "quartinho secreto" havia permanecido ali, e as informações que nele haviam eram divergentes daquelas que moldavam seu atual sistema de crenças. Ali ainda havia amor, esperança e fé nos homens como gênero e também na humanidade como um todo. Ali, e apenas ali, naquele diminuto espaço remanescente, ainda perseveravam os sonhos, ainda cresciam as flores e a felicidade a dois era possível. Sim, era possível. Os eventos passados não tinham necessariamente que determinar os do porvir. Ali as pessoas não eram iguais, conquanto sim, muitas se parecessem em suas atitudes. Mas era um universo infinitamente maior do que aquele mundinho onde todos tinham como objetivo causar sofrimento ao seu par, ao seu próximo. Ali o mundo era repleto de novas possibilidades, novas pessoas, novas experiências e tudo estava em conformidade com o sentimento prevalente naquele cantinho "esquecido".

 

Sem que ela percebesse, um sorriso brotou em seu rosto e imediatamente as defesas de sua mente subconsciente armaram-se para combater o pensamento intruso. Não havia registro dele por ali em lugar algum. Todavia o sentimento liberado quando a porta se abriu permitiu o pequeno Davi ousar enfrentar o gigante Golias. Um gole a mais do chocolate liberou uma carga extra de endorfina e aquilo que havia atrás da pequena porta naquele quartinho outrora esquecido principiou a espalhar-se em todas as direções. Lágrimas brotaram-lhe nos olhos; um novo sorriso moldou as feições de seu rosto, e um sentimento igualmente novo parecia possuir aos poucos os espaços de seu coração antes empedernido. Ela olhou e viu que os pássaros agora copulavam. Não percebeu o momento em que a chuva tinha cessado e agora via no céu um lindo arco-íris onde antes existiam somente nuvens cinzentas. O sol aparecia timidamente, porém com seu potencial esplendoroso…

 

— Mamãe? – disse a voz de seu filho primogênito.

 

Ela virou-se ainda com os olhos tingidos da vermelhidão típica dos que choram e viu seu casal de filhos com os pijamas ainda em desalinho.

 

— Feliz aniversário, mamãe! – disseram eles em coro enquanto estendiam os braços para abraçá-la.

 

Um canário pousou num dos galhos da goiabeira e os brindou com seu majestoso canto...

 

 

                                                     ***

 

                                   Pássaros na chuva

                                         Tomo II

 

                  No decorrer do dia, enquanto fazia uma coisa e outra, ela notou que, na medida em que aquela emoção causada pela experiência matinal arrefecia, sentimentos ambíguos travavam renhida batalha nos recônditos de sua mente. Desse modo, antes mesmo que o relógio marcasse meio-dia, os pensamentos predominantes eram de novo aqueles que por tanto tempo havia semeado no subconsciente. Lembrou de certo texto bíblico: "Tudo o que o homem semear, isso também ceifará". Era ingenuidade supor que uma única experiência seria o suficiente para mudar para sempre um paradigma construído com tanto esmero e dedicação em sua fortaleza mental. Passara tempo demais afirmando o que agora, lá no fundo do seu íntimo, queria negar...

 

Após o almoço, estando as crianças entretidas na atividade de preparar sua "festa surpresa", enviando mensagens e combinando o horário com parentes e amigos próximos, aproveitou e abriu uma garrafa de Zanotto, o tinto suave que figura entre seus preferidos. Encheu a taça, levou consigo a garrafa e caminhou até a varanda onde sentou na emblemática cadeira de dois lugares feita em rattan. Aliás, sempre que sentava-se na tal namoradeira, sentia que o móvel estava ali para afrontar sua solitude. Entretanto, pela primeira vez sorriu ao pensar naquilo.

 

Tomou um gole generoso do vinho, cerrando os olhos e sentindo o sabor adocicado da uva bordô descendo gostosamente pela garganta. Em seguida pegou o smartphone e logou no perfil que mantém ativo há alguns anos no Recanto das Letras, um website voltado àqueles que gostam de ler e escrever, não obstante estes primeiros serem raros por lá. Deu uma rápida olhada nos comentários recebidos e viu um nickname estranho... Desconfiada, olhou a escrivaninha do tal autor e viu que havia um áudio por lá. Apertou o play. O texto estava no limiar da decência, mas a voz era estranha e o sotaque irritantemente carioca.

 

Por que diabos o "idioma carioquês" cisma em pronunciar palavras com "S" como se elas tivessem "X"? Qual o problema dessa turma?

 

Terminou o áudio e viu um título que por algum motivo chamou sua atenção: "Pássaros na chuva". Antes, porém, de clicar no texto, tomou outro gole do vinho.

 

Enquanto fazia a leitura do breve texto, espantou-se com as coincidências entre aquilo que lia e sua experiência matutina. Até mesmo a goiabeira existente ao lado da janela do seu quarto figurava na história. E o que dizer das torradas Mellman, suas favoritas, ou o chocolate quente. Tudo era tão… ela. Aparentemente tinha mais coisas em comum com a protagonista do que poderia supor no início da leitura.

 

Esvaziou novamente a taça, mas não tornou a enchê-la. Por um momento sua mente decidiu, à revelia, contabilizar a multidão de garrafas que já havia esvaziado sentada, sozinha, naquela cadeira para duas pessoas. Mais uma vez o sistema de alerta no seu subconsciente entrou em modo de atenção. Aquilo não deveria ser questionado. Não estava no "programa".

 

O que pode ser melhor do que tomar vinho e observar a Lua em suas fases enquanto desfruta da sua própria companhia?

 

Ela olhou para a garrafa quase vazia do vinho tinto. Seria apenas mais uma entre muitas que ainda viriam? Faria isso por quanto tempo mais? Quantos anos ainda teria seus filhos consigo? Como será depois que eles partirem para viver cada qual a sua própria vida?

 

Bobagem! Eles nunca irão embora. Sabe qual o seu problema? Esqueceu de comprar aquele queijo que gosta de apreciar com este vinho. Não estaria pensando bobagens se tivesse croutons Mellman e queijo brie para acompanhar o vinho.

 

Porém já não tinha certeza de nada. A única coisa que sabia é que, pelo menos naquele momento, a bebida de uvas maceradas não era-lhe o suficiente…

 

Depois de alguns angustiosos minutos, onde uma batalha feroz se travou entre sua mente analítica e as informações contidas no software instalado em seu subconsciente, decidiu levantar-se da cadeira e deitar na rede para escrever um pouco. Fez isso e pôs-se a balançar lentamente enquanto digitava as primeiras palavras de seu novo texto. No entanto, não demorou para perceber que a inspiração acenava-lhe de longe naquele momento. Decidiu dar uma volta sozinha. Entrou e fez saber às crianças que sairia mas que não ia demorar. Já eram crescidinhos e podiam ficar sozinhos sem o risco de incendiar a casa ou algo do tipo. As crianças vibraram com a saída da mãe. Isso apenas tornava mais fácil orquestrar os preparativos para a festa surpresa…

 

Sem saber exatamente aonde ir e ainda sob o fogo cruzado de sentimentos ambíguos, simplesmente pilotou a moto sem destino certo. O Sol tinha voltado a recolher-se na coberta de nuvens que preparou para si, e a temperatura havia caído novamente. Então, quase que instintivamente, pilotou até a Chocolatto, sua cafeteria preferida. Não estava necessariamente com fome, mas ainda assim pediu o Chocolattino, a versão da casa do cappuccino com chocolate amargo e raspas de laranja. Pediu também o croissant de peito de peru com cottage e ervas finas. Enquanto saboreava o pedido e lia novamente "Pássaros na chuva", não percebeu que alguém a observava com curiosidade. Terminou o texto e, enquanto abocanhava o derradeiro pedaço do croissant, tinha os olhos fixos no nada, pensando não sabia exatamente no quê.

 

— Geralmente fico assim também quando como esse croissant. – disse uma voz masculina, fazendo-a despertar do seu devaneio.

 

— Perdão? – falou ela, visivelmente embaraçada, enquanto limpava a boca com o guardanapo macio que exibia a logo da Chocolatto.

 

Num instante quase infinitesimal, ela o esquadrinhou dos pés à cabeça. Mesmo sentado, percebeu que ele era relativamente alto; talvez um metro e oitenta, e tinha olhos e cabelos ordinariamente castanhos. Os cabelos não eram lisos, tampouco crespos, mas via-se que eram bem cuidados. Os dentes eram alvos e relativamente alinhados, e a boca carnuda exibia um sorriso que produzia um tipo de encanto peculiar. Aliás, a boca era realmente convidativa.

 

Ai, meu Deus… quando foi que tornei-me a desesperada da cafeteria?!

 

— Eu disse que também fico com esse olhar ao comer o croissant daqui. – ele agora a olhava nos olhos e o sorriso parecia ainda mais alvo.

 

Ela não sabia exatamente o que dizer ou como agir. Passara tanto tempo sem esse tipo de interação espontânea que simplesmente perdera a prática de como lidar com o que parecia-lhe uma cantada. O perfume que ele usava era daqueles marcantes; do tipo que você sente uma vez e não esquece nunca mais. E ainda assim não agredia o local ou suas narinas. Quando deu por si, estava olhando para os lábios dele. Corou.

 

— É muito bom sim. – foi o que conseguiu responder.

 

Ele percebeu, tenho certeza!

 

— Costuma vir aqui? – ele arriscou.

 

— Não muito. Uma ou duas vezes na semana. – o fato dele a olhar diretamente nos olhos deixava-a desconcertada.

 

— Coincidência... eu também. Mas não lembro de já tê-la visto por aqui. E acredite… seria impossível não lembrar! Acho que temos vindo em dias opostos.

 

Ela apenas sorriu. Achou que seu rosto estava da cor de um tomate maduro. Realmente tinha "perdido o jeito". Sentia-se como uma adolescente enfeitiçada pelo bonitão popular da classe, mesmo ele não sendo tão bonitão assim. Quais atrativos ele possui? É cheiroso, charmoso, veste-se bem, não é demasiadamente alto, nem baixo, deve calçar uns quarenta e três…

 

Afe! Não acredito que pensei nisso, que absurdo! Foco! Ele não é alto demais, nem baixo demais… e tem uma boca convidativa. Ai, isso de novo? Para de olhar para a boca dele!

 

— Consideraria a possibilidade de eu te fazer companhia até o final do seu cappuccino? – ele era confiante, porém ao mesmo tempo educado e gentil.

 

— Acho que vai precisar de outro argumento. – ela mostrou-lhe a xícara vazia.

 

— Bem… na verdade eu me referia a uma nova xícara! Ouvi dizer que a versão com chantilly e Nutella é um espetáculo! – ele sorriu.

 

— Isso me parece exageradamente doce! Eu passo… – ela fez uma careta. – Mas, se quer mesmo sentar, fique à vontade; acho que ainda tenho alguns minutos.

 

Ele deu a volta passando por detrás dela e sentou-se à sua frente. Ela tinha certeza de que essa atitude de passar por trás foi como movimentar-se num jogo de xadrez, porque agora aquele perfume estaria "para sempre" impregnado no seu nariz. Ao sentar, ele a encarou por alguns instantes sem dizer nada, apenas olhando-a nos olhos.

 

— O que foi? – disse ela com desconhecida timidez.

 

— Já disseram que você tem um olhar misterioso?

 

Naquele momento os programas antigos confrontaram o sentimento novo, o software que queria se instalar e mudar a configuração original, a informação já estabelecida e prevalente. Houve nova batalha mental.

 

Já ouviu esse tipo de baboseira antes. Sabe muito bem o que ele quer de verdade. São todos iguais, só muda o número do CPF.

 

Será mesmo que, num mundo com tantos homens, todos querem apenas te fazer mal ou aproveitar-se de você?

 

— Por que tenho a impressão de que essa é uma frase que você já disse muitas vezes? – falou ela, afinal, em tom de humor.

 

— Talvez porque acredite equivocadamente, moça do olhar profundo, que todos os homens são iguais. – a resposta voltou como uma bola de pingue-pongue.

 

— Sei… você certamente é uma das raríssimas exceções a essa regra, certo? – ela rebateu de volta.

 

— Talvez sim… Mas talvez a regra não exista de verdade, senão na cabeça de moças encantadoras, porém exageradamente ariscas. – ele raqueteou numa diagonal perigosa. A expressão em seu rosto era a mesma.

 

— Ou talvez moças ariscas existam por causa da tal regra. – ela cortou e a bola voltou com velocidade.

 

— Acho que não vamos entrar em acordo nisso, né? – ele levantou os braços simulando rendição.

 

— Não vai mais tentar me convencer? Não achei que desistiria tão facilmente. – ela tinha um tom levemente zombeteiro.

 

— Não quero que a moça a quem pretendo convidar para jantar tenha uma primeira impressão ruim de mim. – ele deu de ombros.

 

— Sinto muito, moço cuja primeira impressão ainda está sob análise, mas já tenho compromisso hoje à noite…

 

— Hmmm… Não temos como voltar no tempo e eu fazer o convite antes do outro pretendente?

 

— Não há outro "pretendente", bobo! – ela fez o sinal de aspas com as mãos – Só vou receber a visita de alguns parentes e amigos.

 

— Nesse caso amanhã seria um bom dia?

 

— Não costumo jantar com pessoas que sequer sei o nome, moço que pretende causar uma boa primeira impressão!

 

A menos que tenha uma boca tão convidativa... Xô, pensamento ruim!

 

— Deus, onde estão meus modos? – ele estendeu a mão – Eu me chamo… Mamãe!

 

— Como?!

 

— Mamãe… Acorda! – sua filha a cutucava preocupadamente.

 

Ela abriu os olhos assustada. Estava deitada na rede. Na verdade havia dormido enquanto balançava e tentava escrever algo.

 

Então foi tudo um sonho?! Como pôde ser tão… real?

 

Ela podia jurar que o aroma marcante do perfume amadeirado ainda impregnava suas narinas. De repente seus olhos arregalaram. O sonho que teve à noite e do qual nada lembrava quando acordou...  Tinha sido exatamente o mesmo. 

 

Como algo assim pode ser possível?

 

— Mamãe? Você está bem?

 

— Sim, filha… Por quê?

 

— Você estava falando e sorrindo enquanto dormia!

 

— Nunca te vimos fazer isso! No início demos risada, mas depois ficamos preocupados! – emendou o mais velho.

 

— Está tudo bem! Mamãe está bem! Foi… só… um sonho! – seu nível de desapontamento era algo que não se podia medir. Há muito não sentia nada semelhante ao que tinha experimentado durante aquele sonho de acontecimentos tão vívidos.

 

Levantou-se e foi tomar uma ducha. Achou que talvez a água morna ajudasse a organizar as ideias, mas ocorreu exatamente o oposto disso. Enquanto sentia a água percorrendo-lhe o corpo, sua mente fantasiava com aquele homem de aparência genérica, mas encantador; carecente de uns dias sob o sol, a fim de tingir sua pálida tez, porém seguro de si e cheiroso a mais não poder; e com a boca mais deliciosamente convidativa que já vira.

 

Sabe que isso são apenas os hormônios se manifestando, não é? No fim das contas, o Don Juan fajuto não passou de uma construção gerada a partir de tuas próprias necessidades de natureza coital.

 

Ela não tinha certeza disso. Na realidade, já nem sabia mais para onde suas convicções estavam apontando. O que sabia era que havia sentido algo durante aquela experiência altamente sensorial. Algo que estava para além das insinuações de sua mente condicionada. Aventar a ideia de que tudo fora apenas manifestações hormonais era como agredir sua razão e também seus sentimentos. Saiu do banheiro. Estava disposta a entregar-se à loucura. Escolheu a roupa, vestiu e avisou aos filhos que daria uma saída breve. Não demorou para chegar ao destino. Entrou e esquadrinhou rapidamente o lugar antes de sentar. Tudo estava como sempre esteve; não havia nada nem ninguém diferente por ali. Riu de si mesma. Um riso que mesclava ironia, decepção, raiva e uma imensa vontade de comer algo doce, bem doce para adoçar não apenas sua boca, mas a alma também…

 

A jovem garçonete anotou o pedido e perguntou se ela tinha cadastro na loja. Ela assentiu e informou o número do CPF. Havia algumas vantagens no tal cadastro como descontos, participação em sorteios e outras coisas que já nem lembrava. Alguns minutos depois, a garçonete voltou com outras duas. Elas puseram sobre a mesa o Chocolattino, o croissant e uma mini torta de coco com nozes, especialidade da casa. Havia uma vela acesa sobre a pequena torta e as moças passaram a cantar a tradicional música de aniversário. Inicialmente ela ficou confusa, mas então lembrou-se do cadastro. Eles tinham essa informação.

 

— Assopre a vela e faça um pedido! – disse a garçonete, empolgada.

 

Fez o que foi sugerido e logo as jovens voltaram aos demais clientes. Tomou um gole do capuccino e em seguida mordeu o croissant, cerrando os olhos para sentir o sabor do peito de peru com cottage e ervas finas.

 

— Geralmente fico assim também quando como esse croissant! – disse uma voz masculina.

 

O aroma marcante de um perfume amadeirado impregnou suas narinas naquele momento...

Netokof
Enviado por Netokof em 12/05/2023
Reeditado em 14/06/2023
Código do texto: T7786423
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