História de um Encontro

Devia ser uma sexta-feira. Não sei por que, mas acho que era. Na verdade, era um dia de março de 1935. Ele estava no escritório da Great Western, em Recife. Tentava, na entrevista, um emprego na ferrovia. Considerava ter cumprido seu papel para com a família, depois que seu pai morrera. Cuidara de tudo e de todos como achava que era seu dever de filho mais velho. Depois dos irmãos encaminhados, decidiu que era tempo de deixar o sítio onde morava para buscar um emprego fixo.

A ferrovia o fascinava e era a opção de trabalho mais próxima de sua realidade. Desde criança admirava os comboios de carga movimentando-se sinuosos e lentos nos trilhos paralelos que davam a volta em torno do vilarejo e desapareciam na curva mais distante, sob o apito vigoroso da locomotiva maria-fumaça, como se fosse uma saudosa despedida.

Gostava de ver os trens de passageiros que, diariamente. faziam baldeação no lugar. Chegavam barulhentos e apressados de Recife, Garanhuns e Maceió, como se marcassem um encontro diário naquela estação. Transportavam uma gente distante de lugares só imaginados. Gostava de observar aquelas pessoas que lotavam os vagões e pensar na vida que levavam em suas cidades.

Admirava, com maior curiosidade e solene respeito, os maquinistas e foguistas que comandavam a imensa e pesada locomotiva, animada pela fornalha de lenha mantida constantemente acesa e pela pressão do vapor da água fervida em altas temperaturas que davam vida a todas aquelas engrenagens.

Espantava-se de emoção e quase medo ao observar de perto o momento em que era dada a partida naquela magnífica máquina de ferro que começava a se movimentar vagarosamente, soltando esguichos de vapores barulhentos e resfolegando num esforço gigante. Depois tomava velocidade crescente e conduzia seus vagões numa viagem pelos destinos de cada um, desaparecendo ao longe, deixando a estação no silêncio da sua ausência, entregue o vilarejo ao seu próprio movimento, na espera do alegre festival do reencontro dos trens no dia seguinte. Era assim que pulsava a vida naquele lugar.

Agora, aos 37 anos, estava ali, no escritório da ferrovia, em Recife. Aguardava ansioso enquanto observava o estilo sóbrio do ambiente, com mesas pesadas de madeira maciça, sobre as quais se dispunham, organizadamente, pastas, documentos, carimbos e canetas bico-de-pena com seus respectivos tinteiros e mata-borrões. Havia armários de aço além de máquinas de escrever dedilhadas burocraticamente por tão sisudos e compenetrados funcionários que pareciam peças integrantes do rol de móveis e utensílios, a serem zelosamente mantidos e conservados ao final de cada expediente. As atividades ali em nada se comparavam ao excitante vaivém dos barulhentos trens deslizando sobre os trilhos, levando cargas, trazendo pessoas, integrando lugares

Absorto em seus pensamentos, tentava dissipar a ansiedade, enquanto numa sala mais reservada, um também sisudo funcionário, com evidente excesso de peso e óculos pendentes na ponta do nariz, comentou para si mesmo, como chefe da repartição: “O rapaz tem boa letra”. Foi assim que naquele mês de março de 1935 foi contratado como Praticante de Condutor pela Great Western of Brazil Railway Co. Ltda (a ferrovia dos ingleses), com salário de 7$000 (sete mil réis) por dia.

Desempenhava suas atividades com dedicação e responsabilidade, sendo escalado para diversas viagens, para as quais estava sempre disponível. Gostava do que fazia e trabalhava muito. Naquele dia estava aguardando o comboio para o qual havia sido escalado. Havia chovido na noite anterior e a manhã estava luminosa e ainda molhada. Experimentava uma agradável sensação de bem-estar e vestia seu bem passado uniforme cáqui, que lhe caía muito bem. Enquanto aguardava, um trem de passageiros fez parada na estação. Observava de forma usual e distraída os ocupantes do vagão à sua frente, quando sua atenção fixou-se naquela pessoa sentada ao lado da janela. De repente sentiu inusitada inquietação, seus batimentos cardíacos pareciam acelerados e uma involuntária emoção, nunca antes percebida, assumiu o controle dos seus sentimentos. Quis reagir, assumir o pleno domínio da razão, afinal era um homem maduro, um trabalhador da ferrovia, acostumado a lidar com tarefas de responsabilidade, trens de carga, controles de vagões. Até usava uniforme! Em vão! Ela estava lá, distraída e encantadora. Tinha os cabelos pretos, levemente ondulados, sobrancelhas bem definidas, nariz harmonioso e a boca desenhada com sutil habilidade. Os olhos negros eram ao mesmo tempo expressivos e suaves.

Naquele momento ouviu o sinal autorizando a partida do trem, que já começava a tomar movimento. Ficou confuso. Tinha que fazer alguma coisa. Num gesto impulsivo pulou para dentro do vagão, correu até ela e perguntou alvoroçado: - Qual o seu nome? - Onde você mora? Ela, tomada de surpresa, virou-se para ele e somente respondeu: - Engenho Uruçu!!! – Engenho Uruçu!!! O trem aumentava a velocidade e ele tinha que sair. Correu para a plataforma e pulou para a calçada, tentando correr para compensar o movimento acelerado do vagão e manter o equilíbrio, evitando uma desastrada e perigosa queda. Conseguiu parar, quase dobrando os joelhos, a tempo de vê-la a olhar pela janela, numa expressão de confusa ansiedade. Aos poucos o trem desapareceu distante.

Ao final do dia retornava de sua viagem de trabalho a bordo do último vagão do comboio, onde ficava o condutor. Estivera inquieto e distraído, embora sem descuidar das responsabilidades de suas tarefas profissionais. Na pensão onde se hospedava jantou descuidado e depois sentou num canto da sala para ouvir o rádio que era ligado toda noite na PRA 8 Rádio Clube de Pernambuco. Entre propaganda do Governo Getúlio Vargas, notícias de futebol e um “jingle” do sabonete Eucalol, ouviu especialmente atento uma certa música de bandolim. Na verdade, a imagem dela não saía de sua cabeça. Não sabia seu nome, pois ela apenas falara o nome de um lugar: Engenho Uruçu.

Procurou informações na pensão, mas ninguém tinha idéia de onde ficava aquele engenho. No dia seguinte, na estação de trem, conversando com colegas de trabalho, um outro ferroviário, também condutor, mas de trens de passageiros, disse que já ouvira falar daquele lugar. O Engenho Uruçu ficava para as bandas de uma cidade chamada Maraial, tinha certeza, pois viajava por aquele trecho da ferrovia com freqüência. Não teve dúvidas e seguindo um impulso incontido, dois dias depois, obtendo folga do trabalho, como compensação por trabalhos em horas extras, tomou um trem para aquela estação.

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O Engenho Uruçu era formada por três propriedades pertencentes a pessoas da mesma família. Era uma região muito bonita e agradável, com matas nativas, açudes, criação de gado, plantações de cana-de-açúcar, roçados de mandioca entre outras culturas. Galinhas e perus ciscavam pelos terreiros ao redor das casas de moradia. Tinha a movimentada casa de farinha, onde homens e mulheres trabalhavam movidos por descontraídas conversas e alegres cantorias, enquanto as crianças brincavam nos arredores, simplesmente felizes por correrem livres e descalças. Havia também um engenho movido a bois que puxavam uma almanjarra (parece nome de coisa de encantamento!), fazendo girar o moinho que moia a cana para extrair o caldo. Caldo que enchia cubas de madeira, onde fermentava e depois ia para uma caldeira, onde fervia, virava vapor e depois se condensava ao passar por uma serpentina para, finalmente, escorrer “cachaça de cabeça”, respeitavelmente forte e traidoramente pura.

Lá ela nascera e crescera, como seus irmãos, irmãs, primos e primas. Eram alegres e gostavam de reunir-se para festejar qualquer coisa. Usavam um modo particular de comunicação para avisar que ia haver festa em uma das casas. Num mastro existente no terreiro (usado para prender no alto uma bandeira indicativa de celebração religiosa do Mês de Maria), hasteavam um pano colorido. De longe, das outras casas, dava para ver o “sinal” e lá se reuniam naquele dia.

Uma festa especialmente comemorada era o São João. Havia fogueira, comidas típicas, brincadeiras e adivinhações. A “Tomada da Fogueira” era uma disputa particularmente emocionante. Enquanto alguns bacamarteiros da casa tomavam conta da fogueira, fazendo estrondosos disparos com suas armas, alguém de fora que já fizera a ameaça de “tomar a fogueira” naquele dia, escondia-se por perto, esperando o momento oportuno de fazê-lo. Teria de surpreender a todos e disparar seu bacamarte no meio da fogueira, antes que alguém da “guarda” o fizesse. Era uma empreitada difícil. Daquela vez tudo corria normalmente, com muita animação e alegria. Dentro da casa improvisaram uma Quadrilha na sala, mas, no meio da folia, um cachorro apavorado com tanto barulho, fez “sujeira” no meio da roda. Foi um alvoroço danado e muita gritaria. Nisso, os bacamarteiros correram para ver o que acontecia, momento de descuido aproveitado pelo “inimigo” que correu para o centro do terreiro e disparou seu tiro triunfante, espalhando brasas e faíscas de fogo ao redor. Surpreendidos e frustrados os responsáveis pela guarda nada puderam fazer, a não ser aceitar a derrota e convidar o “invasor” para compartilhar uns tragos e entrar na festa, afinal estava sedento e faminto de tanto esperar.

As adivinhações eram preferidas pelas mulheres. Uma delas consistia em pegar uma vela acesa, pingar aleatoriamente vários pontos em um prato com água e esperar que se juntassem e formassem uma letra, interpretada como a inicial do nome do “príncipe encantado”. Na sua vez, ela deixou cair vários pingos na água e esperou ansiosa. Por um tempo que parecia interminável, nada aconteceu. Pouco a pouco, porém os pontos foram se movimentando até tomarem a forma do que parecia ser a letra “O”. Por um momento todas que participavam da “séria” brincadeira permaneceram caladas e interrogativas. Afinal, não conheciam ninguém cujo nome começasse com aquela letra. Logo em seguida irromperam numa gargalhada descontraída e continuaram a disputada busca pela esperada “letra”, sonho apaixonado de cada uma.

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Num dia de terça-feira, ainda cedo, ele finalmente desembarcou na estação de Maraial. Vestia-se com elegante sobriedade e usava um chapéu Ramenzoni, sinal de distinção. Durante a viagem estivera ansioso, tentando descartar da sua mente a possibilidade de não localizar o Engenho Uruçu e não vê-la mais. Imaginava, por outro lado, como seria o reencontro. Afinal, a abordagem no trem poderia ter parecido a ela apenas um gesto impulsivo, já esquecido. E sua família, como reagiria? Qual seria a receptividade? Na verdade não havia pensado nisso. Tinha apenas a certeza de que precisava vê-la novamente.

Na cidade, buscou informações numa antiga casa de comércio. O proprietário, também fazendeiro, foi atencioso e percebeu nele uma pessoa séria e agradável, logo estabelecendo-se entre os dois uma relação de afinidade e confiança. Além das informações sobre a localização e estrada de acesso ao Engenho Uruçu, cedeu-lhe um cavalo com arreios para que chegasse até lá, dispensando o pagamento pela proposta de aluguel.

Tomou a estrada, conduzindo o cavalo ora por trilhas estreitas, roçando no mato ainda orvalhado, ora por caminhos mais largos, margeados por pequenas matas. Observava alguns tizius que cantavam no capinzal, ao mesmo tempo em que davam graciosos saltos acrobáticos. Uns poucos cajueiros em flor exalavam um emotivo cheiro de infância. Mais na frente, ao passar por um curso d’água que atravessava a estrada, lembrou do riacho Poço Dantas, onde tantas vezes molhara os pés em suas caminhadas para o vilarejo próximo. Desperto de suas lembranças, apressou o passo do cavalo.

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No Engenho Uruçu os dias se sucediam na movimentada rotina de sol e chuva. Nas noites de lua cheia contavam-se estórias de papa-figo e outros espantalhos (meninos dormiam assustados e faziam xixi na cama de lona). Os banhos de rio eram festivos e barulhentos. Sonhava-se com botijas escondidas pelo arco-íris (Quem já conseguiu chegar à nascente do arco-íris?). Mas vez por outra ela parecia distante, desligada. Para os outros devia ser coisa comum, própria de idade sonhadora. Nesses momentos gostava de ler as aventuras românticas dos cordéis de João Martins de Athayde, especialmente O Romance de Um Sentenciado (adaptação de O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas). Distraía-se também com as informações, conselhos úteis e divertidas banalidades do Almanaque Capivarol.

Num dia assim de devaneios, estava no alpendre da casa quando viu ao longe alguém que se aproximava montado em um cavalo. Não parecia conhecido. Teve um sentimento de incontida ansiedade, uma sensação inexplicável que ao mesmo tempo doía no estômago e deixava o coração em agonia . Aos poucos ele foi chegando e parou no terreiro, em frente à casa. Permaneceu montado por uns instantes, mudo de emoção. Despertou do encantamento pelo movimento inquieto do cavalo que sacudiu a cabeça, balançando as rédeas que segurava. Desmontou e aproximou-se mais. Então olharam-se definitivamente e tiveram toda a certeza do mundo.

E perdidos de azul nos contemplamos

e vimos que entre nós nascia um sul

vertiginosamente azul. Azul. (*)

O nome dele era Ozório. O dela, Maria José.

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(*) do poema Soneto do Desmantelo Azul do poeta pernambucano Carlos Pena Filho

zedvaldo
Enviado por zedvaldo em 02/08/2023
Código do texto: T7852125
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