Do outro lado da rua

Acordou tarde sob a luz dourada do sol brilhante que penetrava pela janela. Sentiu-se diferente. Paixão era um garoto de apenas quinze anos e tinha uma rotina normal, menos naquele dia. Gostava de usar brinco e um corte de cabelo moicano como a maioria dos garotos de sua idade. Naquela manhã de domingo, sentiu-se incomodado com seu próprio corpo. Algo o chamou atenção. Estava em conflito. Dirigiu-se ao espelho. A princípio achara que fosse o brinco, o motivo de seu estranhamento. Não era. A sua mãe já o chamava para tomar café, mas ele permaneceu ali, parado diante de um espelho, olhando-se nos olhos sem entender nada. Intrigado com aquilo retirou o objeto da orelha para observá-lo melhor seu rosto. Continuou sentido o tal sintoma. Fixou-se o olhar em sua aparência e nas curvas do seu corpo. Sentiu-se estranho, perdido em seu próprio universo. Tentou pentear o cabelo de forma diferente para esconder o corte extravagante. Não gostou. Era uma sensação estranha que vinha de fora para dentro e tomava seu corpo por inteiro.

Todos os dias, Paixão acordava cedo. Tomava café e saia para rua onde brincava tranquilamente com outros garotos de sua idade. Porém, naquele dia, tudo estava em transformação em sua volta. Seu corpo estava em chamas, ardendo em febre sem nenhum sintoma de virose. Foi até a janela. Olhou para rua. Alguns garotos brincavam de bola de gude. Outros jogavam pião. Em um terreno baldio, acontecia a famosa pelada com traves improvisadas. No horizonte, os verdes das serras cercavam a pequena cidade. Nunca sentira aquilo antes. O que havia acontecido? Perguntavam seus olhos, porém aquele pequeno coração não perguntara nada, apenas batia acelerado.

Não lembrara momento algum do sonho da noite passada, todavia sua cama e seus lençóis estavam completamente bagunçados como se estivesse havida uma batalha ao longo da noite. Talvez seu espirito estivesse percorrido por caminhos misteriosos dos quais não lembraria jamais.

Enquanto tomava café, questionava com a mãe sobre o corte do cabelo. Queria refazê-lo. A mãe concordou. O rapaz refez o corte do cabelo, porém continuava tenso, agitado como se o sangue quisesse surgir das veias. O coração batia forte. Foi aí que Paixão percebeu que o seu problema não era externo, e sim, interno. Talvez o mal fosse da idade, dissera o pai sobre a preocupação do garoto com a aparência. Mas não era só aparência porque seu corpo fervia e suava constantemente.

O dia foi longo. Não quis comer e suspirou acordado. Estava aéreo. De todas as partes do corpo os sinais se manifestavam de forma ainda mais espetacular. À noite, ficou na janela, contemplando as estrelas como que procurasse uma resposta até que seus olhos foram em direção ao ponto crucial daquela transformação. Engoliu seco. Bem em frente a sua janela, havia uma janela entreaberta. A luz de seus olhos penetrou suave até encontrar uma garota. O fato de terem crescido juntos, brincando e morando na mesma rua desde criança não havia notado nada de especial até então. Jamais havia olhado com outros olhos, porém ficou paralisado. Olhou com curiosidade enquanto ela trocava de roupa e se arrumava diante de um espelho. Aos poucos, aquela deusa foi desaparecendo na penumbra das pálpebras dos seus olhos cheio de desejo. A cena incendiara por dentro.

Ele não sabia ainda, mas estava condenado para sempre. O coração bombeava um sangue violento que rasgava as veias por dentro, deixando-o seu corpo todo banhado de suor, causando profundas palpitações, alucinações, curto-circuito mental, convulsão, e loucura.

Paixão não sabia ainda, mas ali em frente sua casa, nascera e crescera a garota que seria o primeiro grande amor de sua vida e talvez aquela que o faria sentir o primeiro sabor amargo de quem sofre por amor ou estar apaixonado. Tornou-se do colapso e sentiu na prática o primeiro sintoma. Um frio na barriga subiu cortando todo peito ao vê-la saindo de mãos dadas com alguém, ali bem em frente, do outro lado da rua.

Germá Martins
Enviado por Germá Martins em 29/08/2023
Código do texto: T7873168
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.