POST IT - CONTO DE OUTONO: QUANDO MORRI EM LYON
“O amor nasce de quase nada e morre de quase tudo.” (Júlio Dantas, 1876-1962)
Como de hábito, a jovem Catierina acordou bem cedo. A bem da verdade, nem havia dormido. Passara toda a noite agitada, tensa. Algo de muito sério para ela não lhe escapava do pensamento; ao invés, insistia em manter seu tormento.
Mulher determinada, de muita fibra, não tinha costume de refletir em demasia sobre nenhuma questão a que fosse apresentada. Gostava de agir rápido, ter respostas contundentes e imediatas às indagações. Impaciente, os questionamentos que fazia eram sempre precisos, pontuais, incisivos, cortantes.
De família numerosa, para chamar atenção sobre si aprendera que para sobreviver e se fazer notada teria que elaborar artimanhas infantis, inúmeras artes dos disfarces, abusando do vitimismo que lhe permitia fragilidade aparente, exacerbando sinais da bronquite crônica que cultivava nem sempre com parcimônia, e à qual recorria nos momentos de menor protagonismo. Depois de adulta, percebeu que tais mecanismos de proteção e poder não mais surtiam resultados; porém, esperta, os substituiu por outras peraltices mais elaboradas.
Nos últimos tempos, entretanto, vinha sendo submetida a determinado tipo de paciência compulsória a que não estava acostumada e com a qual intimamente se rebelava. Faltavam respostas e definições para suas ansiedades amorosas. Estava novamente apaixonada, mas carecendo de novo desenho para seu projeto de vida... Que sabia não andava lá muito bem.
Desde mocinha sonhava com o casamento “conto de fadas”: véu, grinalda, bênção dos anéis, igreja florida, a cerimônia do arroz e, principalmente, a tradicional sentença que alimentava esperanças: “foram felizes para sempre!” Este era o ponto que estava “pegando”. Casar-se com todos os rituais aprendidos e para os quais fôra treinada. Treinada? Considerava o vocábulo um verdadeiro horror! Já havia passado pela experiência, mas o “feliz para sempre” como constava dos manuais não se apresentou. Logo no primeiro ano da denominada vida-a-dois percebeu que o casamento não era o sonhado e prometido jardim das maravilhas.
Quase imediatamente após as liturgias e cerimônias descobriu que haveria de estar sempre negociando com seu parceiro até o modo de dobrar as toalhas de banho. Pode parecer isso muito pouco para ameaçar a união e a felicidade de um casal, contudo e embora “são a partir dessas pequeninas coisas, prosaicos desacertos repetidos diária e indefinidamente que germinam as principais sementes da tal árvore do desentendimento”, leu em revista de autoajuda em consultório médico. Detestava esse tipo de publicação, mas, extremamente fragilizada, sucumbiu à curiosidade da leitura, embora sem convicção.
De vez em quando, deprimida e sem brilho nos olhos, também apelava às tradicionais orações salvadoras, rituais para desintoxicação, análise dos chacras, retiros espirituais, banhos com essências miraculosas. Porém, nos entremeios das janelas de racionalidade sabia do diagnóstico: sofria de desimportâncias.
“Para alcançar um mínimo de felicidade e tranquilidade é preciso estar sempre atento e podar continuamente os galhos dessa árvore da felicidade, recolher sistematicamente as folhas que vão se desprendendo e flutuam, flutuam, flutuam para nem sempre caírem no chão. Nem ceder à ilusória sensatez do impulso de cortar o mal pela raiz. Nunca! É grande erro, bastante comum, buscar extirpá-la. Quem o faz está muito próximo da tragédia.” Essa a lição e aconselhamento que encontrava junto ao grupo de amigas experimentadas pelos infortúnios amorosos, às quais recorria cada vez com mais frequência.
O pacato Serguiêi, jeito de bom moço, afeito ao trabalho, gostava de praticar amizades. Sua característica mais visível era a de nunca polemizar com os amigos. Sempre revelava a opinião dele de modo bem particular: não rebatia nem contestava as alheias, mas colocava seus pontos de vista com tranquilidade e polidamente. Com arranjos verbais bem articulados parecia estar concordando com todos ao mesmo tempo, sem desistir de manifestar-se com oportuna precisão. A ponto de falarem sobre ele que “dizia não a um pedido e saímos agradecidos!”. Um mestre na arte de absorver as sugestões e transformá-las em enunciado único onde cada qual poderia enxergar parte da própria opinião.
A jovem Catierina e o pacato Serguiêi eram amantes na mais completa acepção deste vocábulo. Nas suas diferenças e temperamentos, em clima de inescondível encantamento, sonhos e desejos semelhantes que se complementavam, foram felizes para sempre até que as mútuas peculiaridades de ambos tomou conta do ambiente e a elas os submeteu. Na ausência de contrapontos, perceberam que na equação da aritmética entre pessoas que se querem bem, a adição pode apresentar resultado inferior ao valor das parcelas.
Curiosa, pela manhã no hotel quando o pacato Serguiêi foi ao banho, a jovem Catierina não resistiu e leu no bloco de notas ao lado da cama o que o vira escrevendo antes de levantar:
MAGO APRENDIZ
"Comigo me desavim, sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo nem posso fugir de mim.
(Sá de Miranda - 1495-1558)
ela crê em duendes
eu não
vê anjos
nuvens azuis
pêlo em ovos
luz nas sombras
ela acredita em mim
eu não
Catierina compreendeu que ela e o amado Serguiêi habitavam mundos diferentes. Para ambos incomodava a difusa e indisfarçável limitação das alegrias.
Era setembro. Em Lyon.
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(07/09/2001)
(Inspirado em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk - Nikolai Leskov, 1865)