Paula

Meu grande amor completou trinta e oito anos. Há muito que não nos falamos. Às vezes, muitas vezes, ocorre-me nem sequer lembrar seu nome. Sua existência. Porém, súbito, num turbilhão de imagens e palavras que me atravessam a mente, a recordo. Paula. Por duas vezes em toda o meu ato perene de existir toquei a sua mão. Pode o leitor perguntar-se com ardor e uma certa angústia como tal gesto simplório pode desencadear tantas lembranças. Eu, dezassete. Ela, vinte e quatro. Acercou-se de mim com aquele rosto de traços bem marcantes. Falava inglês à época. Voltara da Austrália. Era tão peculiar como é quase tudo em terra de cangurus. Endêmica. Toda vez que a recordo, tenho em mente as palavras de Benedetti: “ella me daba la mano, y esto era amor”. Um dia assumiu-se elemento da cultura dos Vedas. Tornou-se Gaya. Porém, a mim tal nome sempre fará referência à mãe terra grega, à Pachamama indígena, cujos filhos deste solo gentil não respeitam em sua rebeldia. Às vezes penso que falar sobre amor é falar sobre o devir. Transpor palavras sobre alguém a quem apenas duas vezes esporádicas na vida teve-se um contato parece uma loucura. Mas esse é o processo humano necessário: a loucura. É somente ela que deixa-nos aproximar nos corpos celestes de uma intimidade mais acercada. Enquanto imagino, penso nos corpos de dois anjos caídos das mais altas esferas, envolvidos nos sexos, entre penas, olhos, circunferências que giram por todos os lados e o campo energético envolvido. As palavras se me saem como um dilúvio interno. Uma torrente que não posso segurar. Enquanto escrevo, sigo vivo. A morte aguarda o ponto final de um texto. Para então, com as palavras, retomar a vida. E lembrar-me dela, Paula. Talvez pudesse eu subjugá-la a uma parte da memória onde apareçam vilões febris que me queiram o mal e a inimizade. Onde emanem energias que que levem à ruína e à autodestruição. Recordar-me Paula é como se o sopro da vida perpassasse as minhas narinas. Paula. Parecia oposta ao nome que carregava: tinha uma pompa, certa altivez; a altivez do pavão talvez seria a sua dádiva, não a de Deus. Incitava-me aos russos; os franceses me apeteciam mais. Estar ao seu lado, mesmo que por aquelas duas e ínfimas vezes, a mim me soava como um galardão. Era como receber o Nobel da Paz enquanto segurava sua mão e dizia-lhe coisas bobas que o frescor da juventude produz em demasia para poder ter com pessoas mais velhas. Ela nem era tão mais velha assim... Paula. Quanta sonoridade em apenas duas sílabas. Duas: a quantidade de vezes que nos vimos. A primeira mais intensa – como a primeira sílaba de seu nome. A segunda mais suave, sob a brisa de uma tarde ensolarada na avenida Paulista, sentados à calçada de algum lugar da rua Augusta ou da Haddock Lobo, a esperar um hambúrguer vegano que saciar-me-ia a fome porque eu não comia. Eu tinha a necessidade de você, Paula. Agora te escrevo diretamente, pois quando as palavras saem oriundas do fundo do ser, a elas não se deve moldar ao bel-prazer da leitura alheia. Todas as palavras têm direção. Como as flechas de Cupido ou de Oxóssi; da mesma forma que os tridentes de Exu ou de Posídon apontam para o zênite e eu aguardo, no nadir da existência, o teu retorno, Paula. Talvez não saiba que sigo à espera. Talvez em minhas cerimônias fúnebres aparecerás para dar-me o selar que faltou há alguns anos – quando eu tinha dezassete. Tal timidez daquele tempo arrefeceu-se. A timidez desperta nos frutíferos anos da juventude desvanece tal como tintas em papel de guardanapo. Hoje, no ocaso da minha breve, intensa e curta ocasião, deixo-te palavras de despedida. Não esmorecerei como pensa a humanidade, a ser jogado aos vermes; desvaneço a cada momento em que não encontro tua mão sobre a minha. Quem sabe, em meu epitáfio, estará no jazigo os três últimos substantivos que hei de proferir, a chamar-te: Paula, Paula, Paula...

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 14/11/2023
Código do texto: T7931383
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