Elegia para Román

     Um dia, veio me contar que Román tinha terminado com ele. Sofria. Estava arrasado. Sentamos numa lanchonete, ele abriu o verbo. inventei também dramas pessoais parecidos para fazer-lhe companhia, enquanto tomávamos café com leite e meias-luas. Mostrou-me um texto, era sua cura, fez questão de dizer: 

 

     “Elegia para Román - Quando voltou a primeira vez de Buenos Aires sabia que alguma coisa em sua vida tinha mudado completamente. Eram alguns preconceitos e mentiras que haviam caído por terra para sempre, e sentia-se nu, como se, de alguma forma, aquelas ideias e preconceitos fossem uma espécie de roupa necessária para ajudá-lo a viver até aí. Nessa época, entendeu porque a maioria das pessoas tem medo de mexer em suas crenças, quebrar ícones e ter, quem sabe, de enfrentar sozinho o vazio dessas crenças. Como é que seríamos sem esses valores externos? Teríamos coragem de procurar encontrar, depois desse engatinhar no vazio, alguma coisa que valesse a pena?

 

     Uma das grandes mentiras que nos passaram era de que os argentinos não prestavam, que eram nariz empinado. E que eram todos iguais. Não são, viva em Buenos Aires sem ser turista, labutando pelo pão de cada dia, para entender. Claro, fanáticos por futebol como são os brasileiros, a imagem predominante dos argentinos é a dos 11 diabos alvi-celestes que tantas vezes os derrotaram no futebol ou, mesmo não ganhando, lhes atiravam insultos e provocações. Daí, incentivada pela mídia, a imagem desses luciferes bons de bola se estende a todo argentino, como se todos eles quisessem derrotar-nos, todos fossem ameaça. Para alguns mais velhos e outros mais bem informados, a imagem negativa dos portenhos é a criada pelos endinheirados, dos europeizados de Buenos Aires, que arrotavam riqueza e boa educação que a prosperidade dos anos 40 e 50 do século passado lhes outorgara. A gente de Missiones, por exemplo, tem outros valores e há séculos interage em paz com os brasileiros. Os preconceitos viabilizam muita coisa, inclusive conversas inúteis entre seres sem alma.

 

     Mas não era só isso que tinha aprendido. Tinha o Amor, havia Román. De onde se o originaria o nome? Uma moça pobre com nome tão charmoso. Descendente dos romanos? Teria tido, aquela mestiça de espanhol com guarani, um patrício latino como antepassado? Mas seu corpo moreno e seus deliciosos lábios rubros faziam-no pensar na romã, aquela fruta meio sem graça, mas que tem tanto significado simbólico, além de ser tão receitada para macacoas da garganta, tanto quanto sementes de sucupira. Ali onde vivia, nunca havia visto um pé de romã, então prometeu-se mandar buscar algumas frutas daquelas em Minas ou Goiás e mostrá-las a sua amada, embora com o risco de, mais uma vez, estar atirando pérolas aos porcos. Há sutilezas que só certos espíritos podem captar, a maioria se alimenta de rame-rame. 

 

     Apesar dos riscos, tinha que mostrar-se todo para Romã, assim é que a chamaria agora, dada a brevidade da vida. Tinha que dar-se todo, compensando anos e anos de silêncio interior, numa economia de sentimentos que, hoje, não sabia para que iria servir, se dentro de 15, 20 ou, na melhor das hipóteses, 25 anos, disco rígido enferrujado, estaria esclerosado, trocando o nome das coisas e das pessoas e, dessa paixão juvenil e animal que o fazia ressuscitar, nada teria restado. Além dessa classe de riscos, havia outras, mais terrenas, como, por exemplo, uma prosaica agitação na fronteiram. Certo, rusgas entre brasileiros e paraguaios que revivessem o dicionário das classes dirigentes de cada lado e orientassem uns contra os outros. Os ódios reprimidos em particular eram fáceis de transforma-se em fogueira para uma guerra entre gente tão igual em sofrimento diário. E ele, de alguma maneira, manteria a fidelidade a uma, digamos,inimiga. 

     

     Romã, quem sabe, futuramente, poderia estar do outro lado e, com a mesma paixão com que se atirava em seus braços e o beijava e o chamava amorcito corazón, poderia empunhar uma arma e, obedecendo a um script que não era o seu, assassiná-lo, quem sabe, em pleno leito de amor, em nome de uma bandeira, um hino, armas e brasões que não lhe diziam, a ele e a ela, nada. Poderia ser racionalizado,  quem sabe, em vingança pelo massacre da Grande Guerra, quem sabe pela chamada invasão branca da parte fronteiriça. Poderia, sim. Tal procedimento estaria perfeitamente de acordo com a ignorância humana. Então, que aproveitasse o amor de Romã, mesmo que breve e disperso entre outros, que a morte, a esclerose, tudo viria e sumiria, era só questão de tempo.

 

     Entre os outros riscos - e era o pior - estava o de ser trocado por alguém. E foi. Um simples “sabe, não sei como começar a te dizer, mas eu estou gostando de uma outra pessoa” fez com que sua respiração falhasse, um frio lhe corresse pela espinha, a voz se embargasse, e, de repente, sentiu-se o mais pobre dos mortais. Tinha sido um risco calculado. Bom que, então, preventivamente, havia criado uma justificativa para explicar uma traição e não desmerecer as mulheres, dizer que elas não traem, apenas mudam de fidelidade. Era, pelo menos, um consolo, enquanto estivesse ainda navegando por este vale de lágrimas.

 

     Um dia, chegaram as frutas encomendadas, chamou Romã e lhe perguntou se as conhecia. A resposta foi positiva. Conhecia, sim, havia brincado com as sementes quando criança, tinha vagas porém gostosas lembranças da fruta. Pediu-lhe algumas, queria mostrar a sua filhinha, para que ela também a conhecesse e tivesse também essa lembrança gostosa. Porém, não, não conhecia o ritual dos pedidos que eram feitos aos três reis magos e quis aprender. Aí foi a vez de ele lembrar-se de sua avó, que chupava uma semente, jogava o caroço para trás e fazia um pedido em segredo, depois de dizer em voz alta, cada vez que a semente caía na terra, o nome de um dos reis magos, Melchior, Gaspar e Baltazar. Ao que ele soubesse, sua avó nunca foi particularmente mais feliz ou infeliz seguindo esse ritual, mas nem por isso iria deixar de ensinar a Romã aquela simpatia.

 

     Embora não fosse 6 de janeiro, aproveitou-se de estar no quintal da casa de Romã e, na vista dela, mentalmente, seguindo o ritual, a cada caroço que caía, pediu a um dos reis magos que o ajudasse a nunca mais esconder os sentimentos, nunca mais esconder os sentimentos, nunca mais esconder os sentimentos, três vezes, a cada um dos nomes bíblicos, enquanto os caroços caíam na escura e fertilíssima terra paraguaia.

 

     Hoje, pouco vê Romã, que anda enrabichada com o outro, mas não se arrepende de, enquanto faziam amor, haver-lhe dito, olhando bem nas profundezas dos seus olhos exageradamente iluminados, que a amava, que amava inclusive a Romã que ainda não existia, que via nela a materialização de todas as mulheres e que desejava abrir a cortina dos pensamentos dela, os mais secretos, possuí-los e transformar-se neles, cavalgar neles como a bruxa em sua vassoura mágica, para que nunca mais se separasse dela, que andasse pelo resto de sua vida, transformado, impossivelmente, nos sonhos dela. Uma impossibilidade, reconhecia, mas não podia deixar de dizer isso, porque o coração pedia e sabia que ela acreditava, que a fazia feliz, que, ao longo de sua vida, num século e naquele lugar sem esperanças, aquela exagerada demonstração de amor podia ser uma referência iluminada, quando tudo estivesse triste e a vida lhe cantasse uma elegia sem fim. “