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AS DUAS IRMÃS

 

Ana ajeitou as almofadas à volta do corpo franzino da irmã e depois sentou-se ao seu lado na cama.

Desde que Mafalda adoecera gravemente que era presença constante ao seu lado, de dia e de noite.
Sempre lamentara a desdita da irmã: em primeiro lugar o amor frustrado, enganado, depois o cancro traiçoeiro que a estava a minar há muito e nem a cirurgia lhe tinha resolvido o problema, apenas lhe levara parte significativa do seio esquerdo.
Porque é que persistia em amar aquele homem que apenas a usara, a enganara de forma tão vil? Cortejara-a, seduzira-a e depois desaparecera de circulação após Mafalda ter sabido que ele era casado e tinha dois filhos…
Mas não, aquela cabecinha tonta continuava a sonhar com ele, em delírios noturnos chamava o seu nome: Pedro… Pedro… Pedro…
Pelo menos ela tivera juízo, não fora em conversas… Uma desilusão apenas e o romantismo fora-se de vez. Nem marido nem filhos, só tinha a irmã.
Tinha muita pena de Mafalda, a que se somava um imenso amor, maternal, fraternal, filial, enfim, Ana era TUDO na sua atual existência, daí ter construído "altos muros" à volta do quotidiano de ambas.
O médico avisara-a que as esperanças eram inexistentes, o fim estava cada vez mais próximo e seria muito penoso… Por isso, as suas forças redobravam em energia, sentia que Ana era a sua razão de existir. Deus perdoaria os seus pecados se dedicasse a sua vida ao acompanhamento final da irmã.
De súbito, Mafalda como que despertou da letargia.
- Ana… Lê-me um soneto da Florbela. Por favor… - disse em voz sumida.
Ultimamente pedia-lhe com frequência que lhe lesse poesia, fazia-a sentir-se em paz e acabava por adormecer.
- Está bem, querida. Pode ser este? - E começou a leitura, pausadamente…


Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!


Olhou a irmã e viu duas lágrimas deslizarem-lhe pela face cavada. E também os olhos se lhe humedeceram perante o quadro. Instintivamente, envolveu o corpo franzino nos braços e apertou-a muito a si, como se pudesse dessa forma protege-la de todos os perigos.
Olhou para Mafalda, tão mirrada que ela estava...
A irmã adormecera, sentia-lhe a respiração pesada. Chorou em silêncio…
O tempo decorreu, lento, até que, progressivamente, as suas pálpebras também começaram a ficar pesadas e acabou por adormecer.

 

 

 

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 20/01/2024
Código do texto: T7980552
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