Era uma vez no sonho

Aurora se viu em um lugar desconhecido e fascinante: estava à beira-mar, sentindo a água salgada em seus pés. Era uma sensação maravilhosa e muito rara, digna da trilha sonora que soava ao fundo. Não vivia no litoral, então ter contato com o oceano era exceção. Nunca mais esqueceria como era estar banhada pelo sal ao som de Tchaikovsky, parecia extinguir todas as suas angústias. 

 

Apenas um detalhe conseguiu desviar sua atenção da paisagem: o homem estranho ao seu lado, que tocava violino. Sua presença emanava uma energia ainda mais positiva que a praia ao seu redor. Era uma pessoa de aura agradável, que todos quereriam perto. Pelo menos ela quis. 

 

Quando parou de tocar e lhe dirigiu a palavra, perguntou se ela precisava de algo ou se sentia dor. Aurora ficou surpresa com a indagação, já que se sentia ótima. Contudo, tão logo abriu a boca para responder, sentiu seu corpo dolorido, fraco, ferido. Viu que estava arranhado, cheio de hematomas, sangue escorrendo. Também percebeu o ambiente praiano se dissolvendo, e, em seu lugar, restavam ruínas de concreto, como as de um prédio bombardeado. 

 

O homem desconhecido logo percebeu pela sua expressão que ela sim precisava de ajuda e tratou de fazer o possível. Não tocou nos machucados, mas ajudou-a a deitar e a ficar confortável naquele chão duro de cimento que um dia foi areia fofa. Só o toque dele em sua pele já fez Aurora sentir-se melhor. Aquelas mãos macias trouxeram um aconchego curativo e ela se sentiu viciada. Não queria que ele a soltasse nunca. 

 

A seguir, o homem pegou novamente o violino e reiniciou a interpretação. Ao soar a primeira nota, tanto a destruição que os rodeava quanto os ferimentos no corpo de Aurora desapareceram. Estavam novamente na praia, mas ela não quis admirar a paisagem. Havia algo ainda mais encantador diante de si: o musicista desconhecido e seu olhar hipnotizante. 

 

A presença dele era mágica e colocava Aurora numa paz nunca sentida, aquele homem a fez transcender o significado de paixão. Sentia outra vez a plenitude espiritual, com a diferença de que enfim sabia a verdadeira fonte dessa emoção. Nunca foi efeito da praia, ele que tinha criado o mar presente a partir de seu efeito sobre ela. 

 

Depois dessa percepção, a paisagem perdeu a beleza de outrora. Aurora esqueceu o mundo ao redor e focou no músico e em sua peça, deixando-se enfeitiçar-se pela sonoridade de Tchaikovsky. Nada mais importava, apenas a fonte de tão boas sensações. 

 

Se antes já estava seduzida pelo estranho, graças à melodia, o efeito foi quadruplicado. Inconscientemente, levantou-se sozinha e foi se aproximando dele até seus rostos estarem separados por menos de um centímetro. Ela sentia a respiração do outro em sua pele, os corações de ambos acelerados. Logo juntariam seus lábios em um singelo beijo, mais especial do que todos os balés russos. 

 

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Felipe foi correndo ao hospital assim que soube da explosão da bomba no prédio comercial. Segundo os telejornais, a autoria foi do grupo terrorista Malévola. Era uma incógnita se conseguiria autorização para entrar, já que não era parente ou amigo da vítima pela qual estava temendo. Infelizmente, era apenas aquele rapaz que se encantou por ela nas aulas de música do ensino médio.  

 

Era pouco provável que Aurora sequer se lembrasse dele, todavia o jovem jamais a esqueceria. Inteligente, bonita, educada, carinhosa, acolhedora, sedutora. Sim, tudo isso eram as características da professora. Graças às aulas daquela mulher, descobriu seu prazer pela música e teve certeza de que era a graduação adequada para ele. Naquele momento, estava prestes a defender seu TCC sobre os balés de Tchaikovsky. Esse continha, obviamente, o nome dela na dedicatória. 

 

Na entrada do hospital, deu uma sorte enorme de cruzar com as tias de Aurora: Fauna, Flora e Primavera. Teve a oportunidade de pedir, não, implorar para visitar o quarto. As três acharam estranha aquela reivindicação. Porém, talvez tivessem visto sentimentos verdadeiros por trás daquelas súplicas, pois permitiram a visita dele. 

 

A primeira coisa que Felipe fez ao entrar no quarto e ver a mulher desacordada foi fechar os olhos e rezar. Fauna era religiosa também e acompanhou o jovem nas orações. Já Flora e Primavera, estavam colocando ao lado da maca buquês de rosas vermelhas e hortênsias azuis. Os outros dois não perceberam, mas estava acontecendo uma discussão acalorada sobre qual flor seria melhor para ficar no leito. 

 

– Rosas vermelhas! – dizia Flora. 

 

– Hortênsias azuis! – respondia Primavera. 

 

Depois de rogar aos Céus, Felipe rogou à ciência. Perguntou aos enfermeiros se poderia tocar violino para a paciente. Ele já tinha lido artigos sobre a contribuição musical para recuperação de várias condições, inclusive a inconsciência. A equipe hospitalar lembrou que essa terapia, apesar de válida, não fazia milagre. Após esse esclarecimento, permitiu a atitude, desde que fosse baixo para não incomodar ninguém. 

 

Quando pegou o violino, Felipe já não controlava mais a si mesmo. Não escolhia as notas, seus dedos apenas respondiam a comandos superiores. Enfim, deu-se por si e percebeu estar executando a Valsa da Bela Adormecida. Realmente, seus instintos tinham acertado. Não havia trilha sonora melhor para aquele momento. 

 

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Aurora não conseguiu seu beijo do violinista misterioso, pois, no momento seguinte, se viu num quarto de hospital. Ele estava lá, só que bem mais distante e com uma cara de assustado. Isso porque Felipe tinha medo do que ela pensaria de um desconhecido presenciando aquele momento. Já estava esperando que as três tias levassem uma grande bronca da sobrinha. 

 

– Eu sei que, provavelmente, não se lembra de mim. Afinal já faz uns anos. Para você, devo ser estranho. Porém, eu lhe conheço e prezo muito por você, juro que vim promover seu bem. – disse ele envergonhadamente. 

 

– Você não é um estranho para mim, já lhe conheço. – Felipe abriu um sorriso, pensando ser lembrado como aluno. – Nós já nos encontramos, uma vez num sonho. – Os quatro visitantes ficaram confusos. 

 

– Como assim? – perguntaram em uníssono. 

 

– Foi você o sonho bonito que eu sonhei. Foi você, eu lembro tão bem você na linda visão. E me fez sentir que o meu amor nasceu então. E aqui está você, somente você, a mesma visão, aquela do sonho que sonhei.  

 

Felipe continuou sem compreender bem aquela história, mas entendeu o principal: seu amor era correspondido. Sem perder tempo, beijou sua querida da forma que Aurora lamentou antes ter ficado sem.