Nossa vida através da história

Os homens do rei nem suspeitavam serem vigiados, ainda bem. Amarradas nos cavalos, havia sacas com dinheiro. Vendo-as, Hadassa se enraivecia. Todos sabiam que o povo de Nottingham estava empobrecido. Mesmo assim, o Príncipe João cobrava impostos abusivos, pois nunca retornavam à comunidade.

 

De repente, uma árvore caiu, bloqueando o caminho. Era a primeira parte do roubo. Logo Hadassa viu João Pequeno gesticulando ao líder do grupo.

 

Robin Hood saiu de seu esconderijo sorrindo. Era incrível como estava tão tranquilo. Parecia até se divertir! A presença alegre dele dava muito vigor à alma de Hadassa.

 

Vendo o fora da lei mais procurado de Nottingham, os homens do rei pararam tudo. Até os cavalos encararam o recém-chegado. Alguns colocaram as mãos em suas espadas para atacá-lo. Outros em seus escudos, pois sabiam que ele era hábil com arco e flecha.

 

Assim que chamou atenção, Robin saiu em disparada. Tendo ganhado uma certa distância, subiu em uma árvore e disparou suas flechas. Hadassa, João Pequeno e Marian aproveitaram a distração para pegar as sacas de ouro.

 

Os três já estavam arrumando tudo na carroça deles, quando foram descobertos. Devido a isso, os homens do rei desistiram de capturar o fora da lei em cima da árvore. Os cavalos corriam ao máximo carregando os comparsas de Robin, enquanto flechas voavam ao redor.

 

Subitamente, o líder dos foras da lei entrou na carroça em movimento. Usou uma manobra que ninguém mais conseguiria reproduzir. Aquele homem tinha características extraordinárias...

 

Após a distribuição do dinheiro, era hora de comemorar a mais nova vitória e planejar o próximo ataque. Hadassa e João Pequeno estavam concentrados na tarefa, mas Robin e Marian já não mais prestavam atenção. O casal apaixonado estava em um mundo só dele. Eram feitos um para o outro. Coisa de cinema mesmo. Uma química invejável.

 

Vendo essa paixão tão perfeita, Hadassa não podia deixar de ter ciúmes. Eles já estavam juntos muito antes de ela ingressar no grupo, mas Robin Hood era admirável. Sua companhia era agradável e a fazia sentir-se tão tranquila, acolhida. Seu coração disparava e ela sorria involuntariamente. Além disso, ele era bastante atraente e...

 

. . .

 

– Hadassa, você fica sonhando com outro enquanto estou no trabalho? – Uma voz masculina interrompeu os devaneios da mulher.

 

– Azekel! – Ela tomou um susto. – Nem vi que você já tinha chegado. Desculpe, amor. Se sente ameaçado por personagens fictícios agora, é?

 

– Ele pode ter existido de verdade.

 

– E já teria morrido há muitos séculos. Se minha vida fosse um filme, eu adoraria viver grandes aventuras junto de um ladrão. Mas, na realidade, jamais faria isso. Ou minha vida já é um filme e estou jogando fora a oportunidade... – A mulher ficou pensativa.

 

– Alguns sonham com o Príncipe Encantado, outros com o Príncipe dos Ladrões. – Azekel disse rindo.

 

– É que a Kino Produções me encomendou um roteiro sobre o Robin Hood. Enquanto escrevia, fiquei imaginando como seria viver naquela época. É divertido. – Deu de ombros.

 

– Você sabe que não seria dessa forma idealizada, não é? Ainda mais na Idade Média, que nojo!

 

– Sei. Por exemplo, todo o prazer que teria militando na Revolução Francesa se esvai assim que lembro a sua profissão. Você trabalha na Receita Federal, seria guilhotinado. – Hadassa ficou horrorizada, como se estivesse mesmo diante da execução do esposo.

 

Surpreso com a súbita carga emocional, Azekel se apressou em abraçar sua esposa e tranquiliza-la.

 

– Calma querida. Estou bem. Isso é fantasia, guarde seu sofrimento para a realidade. Afinal, nem iam deixar alguém como eu entrar na Ferme Générale. Provavelmente, estaria no Haiti. Lutar ao lado de Toussaint L’Ouverture, isso sim soa legal… – falou sonhador. Porém, logo sua expressão transformou-se em raivosa.

 

Mais calma, Hadassa saiu do conforto dos braços do marido quando percebeu que ele começou a se alterar.

 

– Calma, relaxa. Por que está tão abalado? A revolução haitiana foi maravilhosa. Quisera eu que todos os países da América tivessem seguido seu exemplo.

 

– Foi maravilhosa sim. Mas, em vez de seguir o exemplo, os países americanos fizeram de tudo para o Haiti dar errado. Canalhas! – Ele respirava forte.

 

– Ah, ninguém que nasceu antes do século XX valia alguma coisa. Vamos combinar.

 

– Quem nasceu depois também não. Foi a mesma coisa com Cuba, deram sorte que tinham a União Soviética para se aliar. Do contrário, estavam igualmente ferrados.

 

– Ah, prefiro pensar que o mundo melhorou desde então. Olha quantos direitos nós conquistamos! – Ela soava empolgada. – Você sabia que foi na Revolução Francesa que emanciparam os judeus?

 

–E desde então nunca mais teve antissemitismo... – Azekel foi irônico.

 

– Ah, enquanto descendente de judeus sefarditas, estaria bem otimista em 1789. As revoluções liberais eram a favor da liberdade religiosa. O problema foi tudo o que veio depois. – Engoliu em seco.

 

– Você é judia?! Me enganou todos esses anos... Caramba! Poderia jurar que era católica! – Azekel estava incrédulo com a verdadeira ascendência de sua esposa.

 

– Sou católica mesmo. Muitos acabaram criando seus filhos como cristãos, prezando pela segurança deles. Assim, a cultura dos pais se perdeu totalmente na família. Deve ser horrível ver sua descendência desconectada com suas tradições... – Antes de Hadassa começar todo um discurso, logo lembrou com quem falava. – Ah, deixa para lá. Você sabe melhor do que eu.

 

– Mas como você sabe que é descendente de cristãos-novos? – Ele perguntou, ainda surpreso por ter ficado na ignorância.

 

– Ah, pelo meu sobrenome, minha naturalidade... Muitos judeus fugiram para Pernambuco. Na real, nem sei. Foi meu pai quem disse. Porém, mesmo tendo a etnia, não faz sentido entrar numa comunidade judaica. Já acredito em Jesus, não tem como desacreditar.

 

– Bem, se você não tem certeza se é cristã nova e eu tenho certeza de que não sou haitiano, nossa brincadeira estava um pouco imprecisa. Que tal imaginarmos nossa vida no Brasil antigo?

 

– Eu estaria lá longe em Pernambuco, nem poderia conhecer você... Fico feliz de ter nascido nos tempos presentes, depois de meus pais virem para Bahia, e poder estar ao seu lado agora. – disse sorrindo.

 

– Ah, quanta fofura. – O homem disse rindo. – Então vamos imaginar o que seria de nós na Bahia do passado. O que aconteceu aqui na época da Revolução Francesa?

 

– Sabe que eu não sei? Teve a Inconfidência Mineira, mas o que nós estaríamos fazendo em Minas, em plena execução de Tiradentes? Não lembro de mais nenhum evento histórico. – Hadassa admitiu com certa vergonha.

 

– Teve a Conjuração Baiana. – Azekel comentou com um sorriso.

 

. . .

 

Hadassa e Azekel surpreenderam-se na caminhada matinal pela cidade de Salvador. Os muros da igreja estavam cobertos de papéis, os quais diziam:

 

“Animai-vos, povo bahiense!

Está para chegar o tempo feliz de nossa liberdade,

o tempo em que todos seremos irmãos,

o tempo em que todos seremos iguais!”

 

Tentaram decifrar o significado daquelas palavras, como muitos que estavam ao redor. Não era muito difícil, só poderia ser um chamado à luta. Boatos corriam sobre um grupo que planejava uma conspiração para transformar a Bahia numa república independente.

 

As histórias sobre a Revolução Francesa já tinham chegado àquela parte da América Portuguesa e a população sentiu-se esperançosa com as boas-novas. Afinal, se os franceses podiam derrubar a monarquia e instaurar um regime mais justo, com todos iguais perante a lei, por que não conseguiriam fazer o mesmo ali?

 

Se os haitianos foram capazes de expulsar a elite sanguessuga de suas terras, os baianos unidos poderiam repetir o feito. Finalmente chegara o grande dia.

 

Aos poucos, boa parte da população estava lendo e relendo o conteúdo dos panfletos pregados nos muros. A esperança tomava o rosto da multidão, todos estavam prontos para lutar. Faltava apenas o grito de ataque.

 

Desde a transferência da capital para o Rio de Janeiro, aquela região ficou muito empobrecida. Hadassa se considerava sortuda por estar empregada como roteirista no Teatro Kino, porém temia sua demissão. Afinal, quase não havia quem fosse ao teatro.

 

Azekel também estava melhor do que seus semelhantes, afinal era livre. Mas não ser propriedade de um senhor era apenas o início até a verdadeira liberdade. Enquanto seus iguais sofressem, ele também sofreria. Além disso, do que adiantava não mais ser escravizado se muitos cargos eram proibidos para si?

 

Hadassa e Azekel sonhavam com uma Bahia republicana, livre e próspera. Só então poderiam viver seu amor sem receios. Seria o fim dos privilégios dos bem-nascidos, o fim da escravidão e, finalmente, a fraternidade. Assim, o casal poderia viver em paz. Os dois pensavam que haveria um futuro para apresentar a seus filhos.

 

Quando estavam juntos, a sensação era de pura harmonia. Eles eram tão diferentes, mas tão iguais... Separados, deficientes. Juntos, uma explosão. E, se essa revolta pudesse banir todas as divisões, então seriam a favor. Enfim alcançariam o auge da comunhão.

 

Abraçados, choravam de emoção. Hadassa imaginou ansiosa o dia da revolta. Queria acompanhar de perto, a fim de ser capaz de produzir uma peça sobre o tema. Desejava louvar o grande ato da Independência da Bahia.

 

– Essa revolução há de nos fazer franceses, Hadassa. – Azekel falou sorrindo, logo antes de tomar os lábios de sua esposa e beijá-los com a alegria de quem poderia se entregar sem restrições.

 

Após o beijo, ambos se encararam sorrindo. Era o sorriso de quem tinha encontrado novamente a esperança de um final feliz.

 

. . .

 

– Agora forçou demais. – Hadassa caiu na risada. – Pode falar, quer que eu te coloque no roteiro do filme do Robin, né?

 

Ela não obteve resposta, mas nem precisava. A expressão do esposo dizia tudo.

 

– Tá bom. Mas só se você parar de ler o que eu estou escrevendo. – pediu a mulher.

 

– Se eu sair, você vai continuar sonhando com seu Príncipe dos Ladrões... – insinuou divertido.

 

– Você sabe que eu te amo. Não ficaria com Robin Hood. – Ela sorriu carinhosa para o marido. – Até porque ele não me daria bola por gostar da Donzela Marian. – Deu de ombros.

 

– Ah, é assim que se descobre as coisas... Quer dizer que se ele aceitasse você, iria aceitá-lo também? – falou enquanto saia do cômodo.

 

Hadassa fez sinal de negação com a cabeça enquanto sorria. Estava cheia de ideias de como incluir Azekel no grupo do famoso fora da lei. Esperava que a Kino Produções não vetasse nenhuma.

 

Aqueles que foram assistir ao filme nas salas de cinema, não deram tanta importância para uma cena em especial. Nela, um dos seguidores de Robin abandonava seu papel no plano, a fim de salvar uma judia da morte certa na fogueira.

 

Era um momento relativamente relevante na trama, pois essa ausência quase acarretou a captura do fora da lei. Além disso, a judia chegou a unir-se ao bando também.

 

Hadassa e Azekel ficaram emocionados ao ver essa cena. Os atores representaram o amor do casal de maneira excepcional. Contudo, mais ninguém deu importância a isso. Para os dois, aquela parte do filme era muito mais bela do que o encerramento com o casamento de Robin Hood e Donzela Marian.

 

– Por que me salvar? Uma judia, causadora de todos os males? – perguntava a personagem do filme, acusada de heresia.

 

– Não conte a ninguém, mas eu também não sou cristão. – O personagem do longa-metragem que a salvou respondia com um sorriso.

 

A judia sentiu ter encontrado naquele homem finalmente um lugar seguro. Alguém que não a atacaria, mas sim protegeria. Ela o abraçou, como se estivesse abraçando a própria essência da satisfação. Começava um belo romance, realmente digno de um filme, uma pena que era extremamente secundário na obra.

 

Mesmo sem ser o grande herói, Azekel era o príncipe de Hadassa. Não o Príncipe Encantado, pois há muito ele já tinha se desencantado da vida pelas injustiças do mundo. Não o Príncipe dos Ladrões, pois nunca havia praticado furto algum. Muito pelo contrário, ele quem teve algo roubado, muitas gerações atrás. Era um príncipe republicano, inclusive. Tudo isso fazia dele o melhor entre os monarcas.