ELVIRA

Sua meta era procurar no fundo dos próprios olhos a coragem. O problema? O peso de erguer a cabeça e ver-se no espelho. Como se uma corrente de elos grossos, atada ao coração, prendesse o queixo ao peito atestando a derrota. Mas não era medo de vê-la — a derrota — impressa na face. Era algo como aguardar aquela dor ao engolir errado, passar.

O coração jazia esparramado e desmilinguido, como no chão de uma cela escura, com uma janela quadrada, no alto e inatingível. Uma claridade desenxabida de um dia nublado e sem sal.

Havia um peso.

Havia um resto de vivacidade surpreendida, berrando ser necessário recomeçar:

— Mulher, o pior já passou! — ouviu-se sussurrar.

Um passado de sorrisos e confiança, jazia em uma imagem tão diminuta de si própria, tão ... no passado. Elvira quase perdera a esperança de reagir e sacudir a poeira. A montanha era alta demais para escalar. Estava tão entregue, quanto o Harry de Hemingway aos pés do Kilimanjaro. A gangrena para ela, estava na alma.

Essa mulher imaginária, outrora cheia de esperança, encarava um monstro enorme de pessimismo, instalado na mente. Como uma pedrinha no interior do sapato: incomodava por um tempo e acabava por integrar-se à rotina do caminhar.

“Quando estiver a sós, tiro o sapato e a palmilha.”

A procrastinação do bem-estar, por comodismo.

Lembranças vinham à mente, enquanto prostrava-se apoiada no granito da pia do banheiro. Dedicara-se desde o princípio aquilo tudo que acabava ali, atrás da porta.

Começou no esforço para ser notada, entre tantas “candidatas”. Comparava-se e media-se, como se estivesse competindo de verdade. Um único olhar de Ivan, acendera uma chama poderosa em seu coração. A alegria inundou o peito, quando o primeiro sorriso trocado deu a certeza de estar fazendo direito. Conquistar a preferência daquele Adonis. Uma de suas mais cálidas memórias.

“Meu Deus!”

Sua razão aliada ao tempo, corrompeu toda a ternura dessa lembrança, transformando-a no primeiro elo da corrente que atava seu coração ao calabouço da tristeza. As descobertas ao longo dos últimos dias, formavam os demais. A afligiam ali, na solidão, sem forças de erguer o queixo e mirar-se no espelho.

O poeta cantava sobre o banheiro ser “a igreja de todos os bêbados”. Elvira acreditava nisso. Mas, e também, em ser um poço dos desejos, um travesseiro perfumado, um porto seguro. O cofre de todos os seus segredos. Era ali, sob o chuveiro, sentada ao vaso ou diante da pia, podia sempre renovar-se e enfrentar a vida que escolhera para si.

Onde se escondera o homem de seus sonhos? Não tinha a menor ideia da resposta. Tinha lembranças puídas das flores e chocolates, dos beijos no escurinho do cinema, dos passeios de mãos dadas pelo parque. Ivan parecia intensamente feliz ao apresentar-se para todos ao seu lado. O aperto em sua mão, sutil, transmitia toda a segurança do mundo. Traduzia-se em felicidade e paixão.

Os olhos grudados na cuba da pia, notaram uma gota d’água pequenina, refletindo algum objeto azul — o cabo da escova de dentes que não seria mais usada — e isso lhe trouxe o dia do pedido, as margens de uma lagoa azul, sentados em um banco sob uma quaresmeira em flor:

— Estamos parecendo um casal de velhos, apreciando o nascer do sol aqui nesse banco — sorriu ele, segurando a mão direita de Elvira entre as suas. Olhares fixos e eletrificados pela paixão avassaladora que os trouxera ali, fruto da noite anterior.

“Uma lembrança puxa a outra” — pensou ela — “Ah! A noite anterior!”

A felicidade ao se entregar pela primeira vez. A delicadeza dos gestos dele e o cuidado ao invadi-la, provocando o mínimo de dor permissível.

— Dor gostosa de sentir essa, meu amor. Envolve paixão — foi o que ouviu dos lábios dele. Elvira o chamou de “maravilhoso”.

Voltou a focar a gota com o reflexo azul, o amanhecer às margens da lagoa. O modo como ele soltou sua mão com rapidez — buscando o anel no bolso do jeans — e tornou a pegá-la, já o enfiando no dedo e sussurrando:

— Case-se comigo, Elvira.

Não foi um pedido. Não foi uma pergunta. Foi mais uma ordem. Daquelas onde o subtexto se insinua e promete uma vida de sonhos e deleite. Uma paixão embrulhada em promessas de renovar-se a cada beijo, a cada gesto de carinho, a cada noite de amor.

Toda a energia que fluía em seu corpo e fazia suas células trabalharem, sustentando-a viva, projetou-se em uma lágrima solitária da mais pura emoção. O “sim” saiu também sussurrado — similar aos fogos multicoloridos das festas de final de ano, quando uma luz pequenina cruza os céus descrevendo uma parábola, explodindo de repente em milhares de desenhos. Elvira aceitou e jogou-se nos braços dele, colando os lábios em sua boca em um beijo de total entrega, de alma, corpo e energia vital.

Lembranças doces, perdidas no tempo e revividas em acasos como uma gota despretensiosa no topo da cuba da pia do banheiro. Sua “igreja”. Ali, confessava todos os seus pecados, suas alegrias, seus temores, suas derrotas e suas conquistas.

Mais derrotas.

Um jorro interno de angústia atingiu seu esôfago e subiu até a garganta. Torceu a cabeça para à esquerda, esforçando-se para segurar o choro e as lamentações. Uma hora a insistência delas lhe atormentaria o espírito. Prometeu não chorar. Espremeu a maçã do rosto no ombro, travando a boca e cerrando os dentes, sufocando um gemido. Promessa é promessa!

Respirou fundo e fechou os olhos, já de cabeça erguida. Soprou o ar fazendo um bico com os lábios, como quem sopra uma vela de aniversário, uma haste de dente-de-leão. O lado direito do maxilar superior ainda estava dolorido. Não queria abrir os olhos. Bom seria se não precisasse.

Inúmeros receios povoavam sua mente. Temia olhar o espelho e perceber os olhos de Ivan impressos no fundo da própria retina, como um fantasma pairando no ar diante de si. Temia ouvir a própria voz e perceber-se imitando os trejeitos de seu sotaque, assimilados após tantos momentos, tanta entrega, tanta resignação.

Temia as marcas. Não os hematomas, que mais dia, menos dia, sumiriam. As marcas na alma, a perseguindo a cada segundo, a cada passo dentro daquela casa, daquele banheiro-confessionário.

Uma última vez antes de encarar seu destino, sorveu o ar pelas narinas.

Devagar.

Enchendo os pulmões, buscando concentrar-se no que a aguardava do lado de fora daquele banheiro. Abriu os olhos. As pupilas azuis estavam ali, firmes e fixas. Não registrou aquela imagem de olhos borrados de tristeza. Quis certificar-se antes de mais nada, de haver uma decisão suficientemente capaz de executar o necessário para aquele momento.

Não havia umidade retesada nas pálpebras inferiores. Se as registrasse, entregaria os pontos e desabaria em um choro mesclado com todas as emoções enclausuradas. Não se arriscara a postergar isso, para não se atrapalhar no ponto final.

Uma pequena mancha restara, entre a pálpebra do olho esquerdo e o alto do nariz. Não doía mais. Era mais fácil de desconsiderar. A atenção poderia se desviar para a mancha roxa no canto da boca, onde ainda pairava uma dorzinha.

O que importava agora, era a certeza no fundo de seus olhos azuis: vida nova. Outro sopro de ar saiu da boca. Outro jato de ar invadiu as narinas. Piscou os olhos. Buscou no cofre de sua vitória a frase triunfante construída num passado cheio de esperança daquela mulher diminuída e quase sem esperança.

— Está feito, Dona Elvira! Bola para a frente!

A fez ressoar na mente. Selava todo o passado, enterrando-o de vez num canto escuro e frio. Onde outrora, seu coração fora aprisionado pelo relacionamento dos sonhos, transformado num pesadelo com o correr dos dias.

Por que aconteceu? Não interessava mais.

Girou a alavanca da torneira e lavou a faca suja de sangue.

Estava quase feliz.