FILÓSOFIAS DO COTIDIANO

O Zé do Barco é um destes filósofos populares que andam por aí sem emprego fixo, sem trabalhar ativamente e levando a vida na maciota. Está sempre liso, mas sempre de humor inalteravelmente bom e sempre pronto para soltar uma de suas tiradas filosóficas sobre a vida e seus aspectos. Tem uma pequena canoa com a qual aventura-se vez por outra, nos remansos do Rio Branco, às margens da serra do mar na pesca de algum surubim ou mesmo tainha que enfastiada da solidão do mar, busca refugio nas águas quentes do Rio, ou ainda de algum bagre esfomeado e descuidado. Mora num pequeno casebre de madeira, a beira do rio, junto a mata. Mora só. Disse que a solidão ensina-o a pensar e diz que gosta de pensar.

Sua maior diversão é freqüentar um barzinho, chamado de”Venda do Nhô” nas redondezas das Vila do Tatu, uma pequena comunidade ribeirinha pobre que vive da pesca artesanal, caça e coleta extrativista de palmitos, Xaxins e frutos da mata.

O apelido de Zé do Barco, vem da “canôa”toda enfeitada, que ele chama, meio indevidamente, de barco. Mas vá lá. O fato é que a canoinha do Zé está sempre indo e vindo e vez por outras com algum peixe à bordo.

Outro dia, no caminho do sitio, encontro o Zé, sentado num banquinho, costurando uma rede de pesca, debaixo de um sol de 35 graus, sol a pino, sem camisa com ares de satisfação e um palito na boca, revirando-se enquanto ele falava com o seu Nhô.

Como de hábito, cheguei da cidade grande com o humor pesado e rarefeito, reclamando da crise, das dificuldades da vida, do transito, do stress ou de alguma outra coisa.

O Zé me olhou com uma profundidade que diria, superior, quase professoral, de quem fita alguém que está bem abaixo de seu nariz. Mas não era superioridade, não, não, nem era presunção, muito menos era um olhar de pena ou escárnio, mas um olhar fixo e denso. Um pouco enigmático sim, mas sem julgamentos. Depois, sua vista abrandou com um sorriso, que veio-lhe na cara sulcada de rugas e sol. Tava ali a oportunidade que esperava, para dar uma de suas pitadas de filosofia. Eu acho que eu havia dito aquilo, para exatamente provocá-lo e o resultado foi o que eu exatamente esperava.

O Zé falou... então :

- É moço, a vida é isso ...é assim mesmo.. e arrematou agora com tom apocalíptico:

-A vida é uma estrada...! Para completar absorto em suas palavras:

- O painel desta estrada não marca os quilômetros, marca os dias que faltam para se chegar ao destino.

- “Faltam X dias para sua chegada”

-No outro dia a mesma coisa

- “Faltam x dias para sua chegada”

- Sempre um dia a menos...! Agora o Zé tinha um olhar distante.

Chegada? disse eu. Eu pensava que era partida

O Zé imperturbável com a aparente contradição em que se metera e arrematou :

- É...é assim e assim a coisa vai

- A estrada é monótona, continuava..

- A não ser que você tenha alguém

- Uma mulher torna a viagem mais interessante, mas não mais mansa

E ratificou, cuspindo o palito:

- Mesmo assim, todo dia será um dia a menos. É assim e assim a coisa vai...!

Ao que redargúi em tom de brincadeira:

Se eu correr mais chegaria mais depressa?

O Zé impoluto:

- Não, já disse, o painel conta os dias não os quilômetros e concluiu:

-Depois, se tu corres não consegues ver as belezas do caminho e sem ver as belezas a vida perde a graça, a alma enrijece.

Reafirmei:

-Às vezes é preciso ter a alma dura, Zé para aguentar as pancadas.

Ele me corrigiu, com a voz ligeiramente mais grave:

-Não moço, a alma dura só faz aumentar a dor, nao melhora nada

Mudei o tom e o rumo da conversa:

Quantos dias estariam indicando no meu painel hoje, Zé?

-Melhor não olhar, disse ele.

Eu não me dando por vencido:

- E se houver um acidente no caminho?

O Zé mais filosófico que nunca:

-Aí o painel pode zerar e sua viagem termina.

Arrematando os argumentos disse:

-Quem pede pressa é a distância. O tempo não pede pressa, nem precisa, porque ele é eterno.

Ao que conclui ainda não vencido:

-É Zé, mas o tempo nos enterra !

Ele discordando e terminando a discussão:

-São sempre os amigos que nos enterram. Os inimigos é que não haveriam de nos assistir, nesta hora.

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 15/03/2009
Reeditado em 15/03/2009
Código do texto: T1487421
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