Por um acaso

Paulo estava com sua passagem já providenciada quando Vitor, seu irmão, chamou no interfone do apartamento.

- E aí mano, você vai me ajudar com os relatórios? Estou subindo.

- Não sei se vai dar, mas pode subir.

Realmente estava muito comprometido com os preparativos da viagem, mas talvez pudesse ainda ajudar um pouco o irmão. Vitor tocou a campainha e Paulo foi atender.

- Está aqui no meu notebook. Fiz um resumo de tudo, mas não sei se as planilhas estão satisfatórias. E como você entende muito disto, se puder dar uma olhada...

- Tudo bem. Daqui a pouco dou uma conferida em tudo com você. Primeiro me ajude a terminar minhas malas. O que você acha que pode estar faltando?

- Ah, não sei mano, nunca fiz um safári na África...

E os dois ficaram a noite toda organizando as malas e depois verificando os relatórios de Vitor.

Paulo estava muito animado com a viagem. Há muitos anos se preparava para visitar a África do Sul. Era sua viagem dos sonhos e há muito que não tirava folga do trabalho. Além do mais, seria muito bom distrair a mente com outros assuntos depois do fim do romance com Marcela. Tal acontecimento havia lhe consumido a alma.

Manhã de domingo e Paulo acordou cedo para ir para o aeroporto. Já no táxi com sua bagagem sentiu que algo estava faltando, mas não sabia o que era. Quando enfim chegou ao aeroporto descobriu o que faltava: a passagem.

Era inacreditável que havia esquecido. Tantos cuidados pra isso... Ainda bem que havia se adiantado muito e pegou outro táxi de volta pra casa a fim de buscar a passagem esquecida.

Não, não estava acontecendo. De repente o táxi em que estava bateu de frente com um motociclista que entrou num cruzamento sem observar a sinalização. Todos desceram dos veículos, começaram a prestar assistência a vitima, que por sinal se machucara um pouco. Ambulância chegando, curiosos aparecendo e Paulo de olho no relógio. Já estava começando a ficar bem atrasado.

Com muito custo conseguiu se desvencilhar de tudo aquilo e tomou outro táxi. Chegou em casa, procurou o bilhete e nada. Devia ter comprado pela internet, assim ficaria no sistema. No entanto, preferiu deixar tudo a cargo da agência que lhe entregou a passagem em bilhete impresso. Onde estaria? Teria perdido?

Resolveu procurar melhor em sua bagagem e acabou encontrando o bilhete junto a um dos bolsos de sua mochila. Parecia brincadeira. Todo o trajeto fora inútil. Nem precisava ter voltado.

De volta ao aeroporto, após horário de pico e muito trânsito, verificou que perdera o voo. Paulo começou a achar que o destino estava contra ele. Um voo internacional como aquele não era fácil de remarcar. Após burocracia, taxas e muita dificuldade conseguiu um novo embarque para cerca de oito horas depois. Decidiu que permaneceria no aeroporto mesmo, não poderia correr o risco de acontecer algo e perder aquele avião novamente.

Era sua viagem dos sonhos, por que tudo estava dando errado? Não deveria ir? O destino não lhe reservava algo bom naquele país? Começou mentalmente a pedir a Deus, a suplicar que lhe protegesse para que tudo no fim desse certo. Tirou um cochilo ali mesmo entre suas malas. Lanchou, esperou e enfim embarcou rumo a seu destino.

Foi um alívio se acomodar em sua poltrona. Estava cansado, mental e fisicamente. Mas a visualização de pisar logo em solo africano o animava. Queria aproveitar muito o safári, as trilhas, os lugares, os bichos, o resort. Seria maravilhoso, certamente, mesmo não acompanhado. Isso lhe causou certa tristeza. Havia programado uma viagem a dois, mas no fim acabou viajando sozinho depois que terminou o namoro.

Após algumas horas de voo e de cochilo lia algumas páginas de um livro quando sentiu um aperto no coração. Uma sensação ruim, inexplicável. Não gostou nem um pouco desse sentimento. Mas não haveria de ser nada, certamente desgaste emocional por conta de tudo o que acontecera até embarcar no avião.

Entretanto, percebeu uma movimentação estranha entre as comissárias de bordo. Será que havia algo de errado com a aeronave? Os passageiros começaram a ficar curiosos e aos poucos a curiosidade começou a se transformar em pânico.

De repente o piloto avisou que necessitavam realizar um pouso de emergência, mas pedia calma aos passageiros, pois não seria nada grave, apenas uma intercorrência. Contudo, pelo semblante das aeromoças parecia sim ser algo preocupante.

Paulo começou a pensar em tudo o que havia acontecido até o embarque. Pensou que poderia ter sido um sinal de que não deveria ir. Sentiu um nó no estômago. Olhou pela janelinha do avião, estavam em uma altura tal que não dava para perceber se ainda sobrevoavam o oceano. Calculou que já poderiam estar sobre o continente. Mas que diferença faria se o avião caísse? No solo ou no mar provavelmente não teria sobreviventes.

Estaria já desesperado demais? Talvez fosse só um pouso de emergência, como o piloto dissera.

Após um aviso do comandante ouviu um trepidar intenso da aeronave. Realmente havia algo errado. Deu outro aviso segundos depois e dessa vez foram informados que não havia tempo para se chegar à próxima pista de pouso e tentariam pousar de onde estavam mesmo.

Paulo já apelava para os céus, assim como os outros passageiros. Como assim? Teriam que pousar de qualquer jeito? Pousar não, a aeronave cairia de qualquer maneira em algum lugar e sabe-se lá o que aconteceria. Um pouso forçado e uma queda não pareciam ser muitos diferentes.

Durante a tentativa de pouso soube que sobrevoavam o Zimbábue. Começaram a tentar a aterrisagem. Os passageiros em pânico. As aeromoças confusas. Máscaras caindo do teto. Uma turbulência fenomenal. Um ruído pavoroso saindo das turbinas. Paulo pensou logo que era o fim.

O solo se aproximava e começaram a perceber o avião batendo em coisas, provavelmente árvores e rochas. Estavam no meio de uma floresta e incrivelmente o piloto foi controlando o avião durante o pouso, no entanto, a movimentação constante e as batidas fizeram com que muitos passageiros se machucassem, colidindo com objetos e assentos.

Enfim a aeronave parou. Ninguém acreditava, pareciam estar todos vivos. Apesar de muitos da tripulação aparentarem ferimentos, tentaram auxiliar os passageiros. Aos poucos todos foram saindo. Contudo, perceberam que algumas pessoas estavam desmaiadas e algumas bem machucadas.

Paulo percebeu que uma de suas pernas doía muito. Parecia ter um corte.

Com todos do lado de fora do avião e um pouco distante a fim de evitarem problemas com alguma explosão começaram a ajudar os mais necessitados. As aeromoças ficaram felizes ao perceber que apesar de estarem no meio de um matagal, não muito distante dava para avistar um vilarejo.

Aos poucos foram chegando várias pessoas deste povoado e de repente Paulo avistou uma moça junto aos moradores do local, no entanto, não parecia ser de lá. Talvez fosse estrangeira. Estava com um jaleco branco. Parecia ser médica ou enfermeira. Ela chegou próximo a ele e começou a avaliar uma senhora desmaiada ao seu lado.

Paulo tentou falar em inglês com ela. Perguntou se era médica e se era de lá. Ela respondeu que era médica sim e estava por um acaso passando pela região, participando de um projeto de saúde. Disse que era brasileira.

- Ah, então é brasileira? Que bom! Neste voo a maioria também é de brasileiros. Saímos de Brasília com destino a Cidade do Cabo.

- Pois é, sou de Curitiba. Estou em uma missão médica por aqui. De onde é?

- De Brasília mesmo. E qual é o seu nome doutora?

- Camila. Mas esquece o “doutora”. E o seu?

- Paulo. E então, será que ela vai sobreviver?

- Vai sim. Está desacordada, mas provavelmente apenas em choque. A respiração e os sinais vitais estão normais. Mas há muito trabalho por aqui. Posso perceber muita gente machucada. Vou chamar reforço. Estamos com uma tenda de atendimento. Não temos tanto recurso, mas deve ajudar em um primeiro momento. E você, tudo bem?

- Acho que sim. Minha perna dói um pouco.

- Deixa dar uma olhada. Nossa! Você está com um corte profundo! Precisa de cuidados urgentemente.

Paulo sentia uma dor imensa na perna, mas incrivelmente sentiu-se muito reconfortado com a presença de Camila. Estava feliz também, afinal, ele não morrera como havia pensado e parece que nenhum passageiro também não teve esse fim.

Após algumas horas, Paulo já estava com pontos na perna e repousando em uma cama. Avistou Camila atendendo outro passageiro. Ela parecia um anjo. Simplesmente muito bonita. Ou aquela situação a fazia parecer mais linda ainda. E de repente tudo fazia sentido. Seu coração parecia sorrir naquele momento. Achou que seu destino estava na África do Sul, mas errou por algumas milhas, estava no Zimbábue.

Ela vinha em sua direção com um sorriso doce, o cabelo preso em um coque e o jaleco sujo, coberto de manchas de sangue e mesmo assim uma visão mais do que angelical.

- Será que teria um hotelzinho por aqui Camila? Acho que vou ter que passar minhas férias por aqui mesmo... Com essa perna...

- A próxima cidade com hotéis fica a uns cem quilômetros. Mas acho melhor ficar por aqui mesmo, pra podermos cuidar de seu ferimento. A alguns metros daqui tem umas cabanas dos moradores que alugam pra visitantes. Você pode fazer de conta que são bangalôs – falou com um sorriso maroto nos lábios.

- Nada mais exótico... Meus amigos irão achar o máximo.

- Com certeza. Você vai gostar. E vai poder me ajudar também. Tem muito trabalho por aqui por esses dias... Nada de moleza!

- Vai ser um prazer!

Paulo gostava de relembrar essa história. Várias e várias vezes. Sempre contava pros amigos e parentes. Foi há cinco anos. Nem parecia. A grande história da sua vida.

Neste momento a contava para o seu filhinho de um ano. Ele não entendia muita coisa ainda, mas não importava. Acenava para a mãe. Ela vinha caminhando com uma tigelinha de papinha de frutas na mão, sempre linda, com seu cabelo esvoaçante.

Paulo e Camila casaram-se há quatro anos.