Cadeia

Nunca fui uma criminosa. Pelo contrário, além de cumprir rigidamente o que determina a lei, sempre cumpri de forma exemplar minhas atividades de dona-de-casa, mãe, estudante, além de trabalhar fora e ser considerada pelas pessoas que me cercam alguém que se enquadra no que chamam de gente boa.

Meu único crime foi fazer do meu amor o centro do mundo, ignorando todo o resto, não separando o certo do errado. Amar com tudo que sou, inclusive de ruim. Não sou de fazer ou sentir as coisas pela metade. É isso, não sou metade, sou inteira e por isso me doei por inteiro, a ponto de me trair. No fundo, eu tinha consciência de que estava indo além do que deveria, que estava a ponto de trair meus escrúpulos, mas saber disso não me dava controle sobre a situação.

Como toda paixão, a minha começou proporcionando as melhores sensações, aquelas que nos prende, que nos faz não aceitar o fim quando ele chega e fazer de tudo para manter o que já não existe. E travamos uma guerra contra a lógica. Tudo que acontece de ruim, que achamos que não damos conta, num primeiro momento, tendemos a não aceitar, a bater o pé. Somente com o tempo, na fase seguinte é que nos resignamos, mas antes disso muita lágrima já rolou, muita coisa foi quebrada, muita coisa já foi perdida, inclusive a liberdade.

Deixe-me voltar: eu, apesar de nunca ter sido uma criminosa, de nunca ter desafiado a lei, quer dizer... Quase. Cometi, em nome de uma paixão, um deslize, que aparentemente não daria em nada. Foi algo tão bobo que como eu poderia imaginar que terminaria em tragédia?

O fato é que eu fui chamada para depor e lá mesmo na delegacia foi decretada a minha prisão. Na hora, tamanho foi meu desespero que tentei correr. E corri, saí daquele lugar desesperada, sem conseguir raciocinar direito. Mas obviamente fui pêga. E levada algemada de volta à delegacia. Fui aos prantos o caminho todo. Lá chegando fui levada à cela, ainda aos prantos. Na cela as outras presas me olhavam, contemplavam aquela cena – já deviam está acostumadas- sem dizer nada.

Quando finalmente, depois de horas, parei de chorar, perguntei, nem sei direito porque, se a gente tinha hora pra acordar e uma delas me respondeu que sim, que tinha que acordar entre 7 e 9 da manhã, porque além do horário do café da manhã, tinha outra questão: se não acordasse por livre e espontânea vontade vinha alguém e acordava na base da pancada. Não porque éramos obrigadas a comer, mas porque éramos obrigadas a acordar. Não que houvesse uma regra que determinasse isso, era só porque tinham prazer em bater. Meu primeiro diálogo com minhas colegas de cela não passou disso. Fiquei ali perdida, sem saber o que fazer, sem saber a quem recorrer, morrendo de medo. Não sei se consigo descrever o medo que senti: Pela primeira vez, tive a sensação de que não tinha mais jeito, de que eu tinha conseguido finalmente estragar minha vida, que ninguém mais poderia nem quereria me ajudar, que eu nunca mais poderia fazer nada pelos meus filhos ou por quem quer que seja. Que me restava apenas esperar a morte chegar para me buscar. Mas sabia que isso demoraria porque logo na primeira noite percebi que ali o tempo se arrastava. Que não importava o que fizesse, cada segundo equivaleria a um minuto. E percebi que era essa a essência do castigo. Ficar ali, presa, vendo a vida passar, saber que ali fora havia um sol, um corre-corre de pessoas levando suas vidas, comemorando suas conquistas e chorando livremente suas dores. Nesse momento então eu percebi algo que dificilmente alguém que nunca passou por isso vai entender: a importância de poder chorar livremente suas dores, por mais que às vezes pareça que essas são insuportáveis. E passou um filme pela minha cabeça. O filme da minha vida, que havia acabado. Despertador tocando, eu indo tomar banho praticamente dormindo ainda, escolhendo apressadamente a roupa que usaria, tomando café, brigando ou brincando com as crianças, indo às aulas, jogando sinuca com o pessoal do trabalho, preparando almoço, dando faxina na casa no sábado com o som ligado no volume máximo, fazendo compras de supermercado, indo à igreja, à academia, tomando cerveja, namorando, conversando inutilidades com os amigos e morrendo de rir, conversando coisas sérias com eles e abraçando-os ao final da conversa, beijo de boa noite nas crianças, verificar o uniforme deles, material e dever de casa para ver se está tudo certo para o dia seguinte, vendo bobagens na internet, das tardes no parque fazendo piquenique, televisão ligada passando porcaria, domingos tediosos...

Nesse vai e vem de sentimentos, acabei pegando no sono. Uma noite tumultuada, tive vários pesadelos e fiquei oscilando entre estar dormindo e estar acordada. Diante do que me foi informado por uma das colegas na noite anterior, acordei sozinha mesmo. Levei um susto ao acordar por perceber que não havia sido um sonho, que eu estava mesmo ali. Fiquei na minha, não interagi ainda com as outras presas. Logo uma delas avisou que o café seria servido, então as segui até o refeitório. A comida era só pra encher. Tinha seus valores nutricionais para nos manter vivas, afinal, a ideia não era nos matar, mas sim, nos fazer amargar cada segundo de nossa existência, contudo, isentas de qualquer tipo de prazer, por isso a comida não tinha qualquer sabor. Sequer era ruim, simplesmente desprovida de sabor.

Tudo ali era semelhante à condição de vida de um animal. Era definitivamente para nos tirar a humanidade. O banho era só para tirar grosseiramente a sujeira, somente cinco minutos. A roupa que vestíamos depois objetivava simplesmente cumprir a função de tampar nossos corpos e protegê-los do frio. Havia também os banhos de sol, os famosos banhos de sol matinais.

E foi assim no meu primeiro dia: Eu alternava entre chorar e ir seguindo com o fluxo, cumprindo junto com as colegas, minha rotina de presa. Para quem acha que está numa espécie de prisão, eu tenho a dizer que essas metáforas caracterizam uma enorme fraqueza. E que metáforas são uma forma bela, porém tola de descrever a vida. E que a vida não é para ser descrita, mas sim, vivida. E digo que para se estar preso, necessariamente tem que estar entre grades e que ninguém pode se dizer sem escolhas se de alguma forma as tiver. Ou melhor, pode. Mas não deve.

Ao final do primeiro dia, fiquei ali, ainda pensando numa possível solução, numa forma de, ao menos amenizar, aquele enorme caos que minha vida havia se tornado. Pensei em ligar pro meu pai, que era a pessoa mais apta a resolver esse tipo de problema. A questão era se ele iria querer. Se ele, diante daquilo tudo, não me renegaria. E de onde eu tiraria coragem para contar que estava presa, e ainda, se seria justo da minha parte, ferir meu pai de morte daquele jeito, logo eu, que também tinha filhos. E como poupar meus filhos daquele péssimo exemplo que me tornei? Como poupá-los daquele sofrimento que eu lhes daria? Pensei neles, no sofrimento que passariam, sem sequer entender direito por não ter ainda o discernimento necessário para tal. E cheguei ao auge da minha dor e culpa.

E minha mãe? Como reagiria? Ela, que era fraca, e que sequer tinha a escolha de me ajudar ou não, já que era desprovida de meios para isso. Pensei nos meus amigos, que não mais teria nenhum deles se algum dia saísse daquele lugar.

Não tive coragem de procurar ninguém. Optei por deixar todos sem saber onde eu estava. Não sei se de fato não souberam ou se souberam e ignoraram. Mas para mim foi mais fácil assim. Encarar as pessoas que eu amava, ver estampado na cara delas a vergonha de quem até outrora me respeitava e admirava, ver que devastei tantas vidas, que excedi meus direitos... Não, eu não suportaria. Já bastava o castigo de ter detonado minha própria vida. Quis preservar as pessoas que eu amava. Feita essa opção, não mais recuei. Fiquei ali durante alguns meses ainda a espera de julgamento. Eu não tinha advogado, então peguei pena máxima, para o meu crime, (Não cabe mencioná-lo) cinco anos de reclusão. Fui então encaminhada ao presídio. Cumpri minha pena, ‘vivi’ ali dentro de maneira inacreditavelmente apática. Sequer me aproximei das outras presas. Mal conversava com elas, me limitava a responder uma ou outra coisa sempre utilizando monossílabos. Eu não estava mais ali residindo naquele corpo já tão magro e sem cor. Não havia ninguém ali, nem explicação alguma para ele continuar a se mover. Devia ser algum tipo de força que eu desconhecia a origem.

Quando saí não mais me reconheci, não sabia mais quem eu era e muito menos para onde ir. Por não saber, não fui. E continuei presa, mas dessa vez, não literalmente, mas da forma que critiquei anteriormente. Entendi então que me encaixo naquilo que eu classifiquei e classifico como fraqueza. Entendi também que eu havia perdido a capacidade de amar e pior, de ter qualquer outro tipo de sentimento. Entendi com isso tudo, bem mais do que eu gostaria de ter entendido. Mas entendi mesmo assim.

E dentre tantas capacidades que perdi, depois de ter vivido aquele pesadelo, uma delas foi a de dormir, ou pelo menos de dormir de forma tranquila, pesada, como um bom sono deve ser.

Luciana Caroli
Enviado por Luciana Caroli em 14/02/2014
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