QUATRO BRUACAS DE OURO

Ananias não dormiu direito. Levantou-se pelas duas da madrugada, passou o café que tomou encostado no fogão. Não quis acordar Severina. Arre, diacho, que café ruim. Carece torrá mió, na próxima torrada falo com Severina. Sai do casebre apertando a guaiaca e enfiando as fraldas da grossa camisa no cós das calças. Ainda é cedo para encontrar os companheiros da viagem. O trato é de sair às cinco. Dirige-se para a propriedade de seu Calixto, em cujo curral está reunida a tropa de bestas e mulas. Ao se aproximar, vê a lamparina acesa na cozinha da casa.

— Ô de casa! ´dia, gente!

— Bom dia! Achegue-se, seu Ananias. — O proprietário assoma à porta, recebe o amigo. — O cumpadre levantou cedo!

— É verdade. Carece começar logo a arrear os animais, já-já chegam os outros companheiros.

Escancara a porta do telheiro onde estão os arreios e as arreatas, os sacos de mantimentos e as bruacas com diversos materiais. A carga para sua tropa. Ele mesmo escolhera a dedo a animalada. Vinte e três bestas e mulas, selecionadas a rigor para a importante empreitada. No curral, separa a primeira besta, puxa-a e amarra-a no tronco. O animal é dócil, deixa-se arrear sem dificuldades. Entrementes, chegam Bernardino e Zequinha Breu , ajudantes contratados. Como que tacitamente combinados, também se põem a arrear outros animais.

— Os patrão já tão se reunindo na praça. Temo que apressá, senão vamo atrasá a saída da tropa. — Informa Zequinha Breu. O nome é um gracejo que o negrinho sarará carrega por toda a vida. Pequeno mas esperto, usa sempre um enorme chapéu de couro para proteger-lhe a alvura do rosto, e camisa de manga comprida, para não expor os braços ao sol. A figura é um tanto bizarra: as mãos e o rosto, de brilho fantasmagórico, sobressaem na madrugada escura e fria. Em movimentos destros, o pião vai ajeitando mais uma mula, amarrando-a ao lado de outras, já arreadas. O negrume do horizonte vai sendo atenuado pelas bandas do nascente quando os três peões terminam a tarefa.

— Vamo, gente! — Puxando a madrinha da tropa, Ananias movimenta a fila dos animais, saindo do curral, o cincerro tinindo na cadência do trote.Dirigem-se para a praça da igreja de onde sairão os viajantes.

Os patrões esperam a tropa. Quatro cavalos, magníficas montarias, seguros por um preto velho, aguardam, batendo os cascos nas pedras redondas da pracinha. Os chefes da empreitada estão por perto, despedindo-se das famílias. As mulheres choram, as crianças se agitam, não param um instante, excitadas porque foram acordadas de madrugada. Muitas casas ao redor da pequena praça estão com as janelas iluminadas pelos lampiões e lamparinas. Alguns moradores descem para as despedidas.

A idéia da viagem fora do capitão Mendonça. Conhecido simplesmente por Capitão, comenda honorária concedida pela sua importância como líder na cidade e na região de Jacuí, onde se estabelecera desde jovem. De espírito aventureiro, irrequieto, foi um dos desbravadores da região, quando era só mata sem fim. Abriu picadas na floresta, desbravou o sertão. Caçou onça e bugio e estabeleceu muitas demarcações de posse. Localizou rios em cujos leitos faiscava o ouro. Descobriu locais de mineração, organizou garimpos. Era um aventureiro nato e jamais perdeu o prazer de uma nova exploração. Agora, já curtido pelas intempéries e pelos perigos, organizara a que prometia ser “a última bandeira”. Sua idéia era viajar com uma grande tropa, rumo ao oeste, ultrapassar os contrafortes da Serra do Chapadão, e desvendar o outro lado, até então desconhecido.

Joaquim Murta aderiu de pronto à aventura. Também fazendeiro, sua propriedade estava em decadência. Os garimpos minguaram, o ouro acabou. Estava quebrado, devedor que era de vinte contos de réis a abastado comerciante de Ouro Fino. Por garantia da dívida sua propriedade estava hipotecada. Seguiria o Capitão até o fim-do-mundo, pois acreditava nos conhecimentos do amigo, contanto encontrar minas de ouro e de pedras preciosas. Valente, dado a bravatas, por mais de uma vez desentendera-se com companheiros ou amigos.

Rafael Medeiros foi procurado pelo Capitão e só a muito custo aderiu à aventura. Não tinha profissão nem atividade definidas. Chegara à vila como tropeiro, tinha quarenta animais na sua tropa, e fazia viagens por toda a região. Estabeleceu-se em Jacuí ao comprar uma lavra de Matias Serra, a qual explorara por muitos anos. Esgotada a lavra, eis de novo Rafael com uma mão adiante e outra atrás. Contudo, não queria sair da vila, acostumara-se aos chamegos e à comida de Martinha Lustrosa, que ele tirara da zona e para quem comprara uma pequena casa. Mas, por força dos argumentos do Capitão, e pela possibilidade de vir a ser dono de novas lavras, concordou em acompanhar a bandeira.

O quarto companheiro era Mizael Brandão. Calado. Sisudo. Misterioso. Grandalhão, forte e entendido em armas. Ficou encarregado da proteção contra feras e, talvez, contra índios que pudessem aparecer no percurso. Armeiro por profissão, também estava mal de vida, pois as poucas armas do lugarejo eram usadas muito raramente, principalmente em caçadas, e o serviço de conserto de armas não lhe fornecia mais sustento. Tentara o garimpo, mas o ouro acabou, e perdeu as economias que investiu na empreitada.

— Eia, gente ! Vamo embora! — Capitão Mendonça, montado em seu cavalo alazão, conclamou os companheiros à partida. — Tá na hora, vamo logo!

Montados, os quatro cavaleiros partiram em marcha lenta, seguidos pela tropa. Ananias, o capataz da tropa, Bernardino e Zequinha, seus auxiliares, também seguiam montados em cavalos e éguas. Zequinha Breu puxava, por uma arriata, uma égua de sua propriedade, da qual jamais se separara. Era como seu animal de estimação, e eventualmente, montaria sua dócil Aurora.

A pequena multidão ficou na praça, acenando e bradando “adeuses”, “boa viagem”, ou “voltem logo”. Já amanhecia quando os cavaleiros e a tropa saíram da vila e tomaram a estrada, rumo à até então inescrutável Serra do Chapadão.

— Ara, Culano, deixa de coisa! Sair assim, de repente. Vai pra onde? — Zulmira não acreditava que o marido estivesse mesmo intencionado em viajar. — Afinal, pra que essa viagem, assim tão depressa? Acho que você vai mas é bater bruacas por aí.

— Quieta, mulher! Não quero que ninguém saiba, fica só entre nós. Caluda, hein? — Herculano queria e não queria que a mulher soubesse de sua saída da cidade. — Prometo a vosmecê que dentro de mês, mês e meio tou de volta. Mas o resto é segredo. Negócio de muito valor. Na volta, conto tudo.

Herculano Barbosa resolvera fazer a viagem num repente. Parece que ficou com inveja do Coronel e seus companheiros. Como não fora cogitado para seguir com a bandeira, iria fazer a viagem por conta e risco. Era o que queria que todos pensassem, porque ninguém saía ou entrava na vila sem ser notado. Ainda mais sendo morador antigo, garimpeiro que tivera seus dias de sorte e que – segundo diziam – tinha escondido o ouro que garimpara.

A prática fora usual na época das vacas gordas. O imposto real era grande, levava a maior parte do ouro garimpado. Todos os garimpeiros sonegavam algumas pepitas, as menores, e todo ouro em pó, que escondiam dentro de embornais de couro macio.

— Isto não é imposto, é confisco! — Herculano muitas vezes manifestara de público sua idéia, e por mais de uma vez fora admoestado pelo intendente da vila.

Mesmo porque ele não pagava tanto imposto assim, o seu garimpo nunca fora importante. Anos e anos mourejando, sozinho, na sua lavra, e pouco conseguia. Era o que todos pensavam. Até sua mulher tinha essa idéia. Mas, num buraco cavado a propósito no fundo da casinha desengonçada, depósito de ferramentas e abrigo temporário contra o mau tempo, que erguera nas proximidades da lavra, Herculano escondia seu tesouro.

Não tinha sócios nem agregados, nem escravos nem empregados para ajudá-lo no garimpo que instalara às margens do rio, numa curva apertada, local secreto. Pegara muito ouro, sim. Mas a maior parte deixara lá na cova, colocado em bruacas de couro forte, enterradas no solo pedregoso. Sobre a cova tinha o cuidado de esparramar pedras, calhaus, lixo, peneiras, bateias e outras ferramentas usadas, transformando o local numa verdadeira mixórdia de entulho e coisas velhas. Pequena parte levava para a vila, registrava, pagava o imposto – e reclamava. Vivia modestamente dessa parcela ínfima do tesouro que amealhava sistematicamente. Com o passar do tempo, por força de trabalhar sozinho , esconder o garimpado e manter-se sempre em estado de alerta contra possíveis indícios de sua fortuna, começou a se preocupar. Mais do que a preocupação, criou uma suspeita de que muita gente estaria de olho no seu ouro amealhado tão sigilosamente, com tanto sacrifício.

Ultimamente, pensava seriamente em retirar seu tesouro e levá-lo para outro local, tanto ou mais secreto do que a simples cova atrás do casebre de ferramentas. Mas não consigo fazer sozinho, tenho de contratar alguém para me ajudar. Mas, quem? Como vou tirar meu tesouro sem revelar meu segredo? Por mais que pensasse a respeito, não atinava como fazer. Além disso, pra onde vou levar as bruacas com o ouro? Tem de ser um lugar bem longe daqui, e que somente eu saiba qual seja.

A notícia da organização da bandeira do Capitão acendeu-lhe uma luz. Sim, quem sabe, fazendo parte da caravana, poderei incluir duas mulas com as bruacas de ouro, disfarçadas em comida e roupas e material para garimpar. Contudo, não teve como fazer parte da comitiva do Capitão. A preocupação, tal qual o cupim, roía-lhe a cabeça, deixando Herculano cada vez mais atanazado com a idéia de ter seu segredo revelado.

Os viajantes se organizaram logo nas primeiras léguas de caminhada. Capitão Mendonça, chefe auto-nomeado, exercia a liderança e dava as ordens, acatadas por todos.

— Vou com Joaquim Murta na frente, abrindo a picada, explorando o caminho. A tropa fica sob a responsabilidade de Mizael e Rafael. Não vamos distanciar muito, questão de dois, três dias. Vocês seguem nossas marcas. No terceiro dia, vamos acampar e esperamos vocês.

A tropa caminhava lentamente, subindo e descendo pela morraria sem fim, rumo aos corumbás da Serra da Canastra. A carga estava distribuída com justiça entre todos os animais. As bruacas iam cheias de todo o necessário para uma longa caminhada: carne seca , farinha de mandioca e rapadura, principalmente, para sustento dos homens. Armas e munições. Tralha de acampamento e de garimpo. Redes e pesadas lonas de algodão, para abrigos noturnos. Roupas sobressalentes para os patrões e também para os peões. O eficiente Capitão Mendonça tinha espírito de organização. Uma das bestas, por exemplo, estava carregada com um teodolito, um grosso livro em branco para registro da expedição, e material acessório: mapas, rústicos traçados da região, tudo que pudera ser coletado na vila. Num embornal, cuidadosamente embrulhadas em panos, canetas e penas, um recipiente de metal com tinta de escrever.

As mulas e bestas eram bons animais para caminhadas em tempo claro. Por isso, ao entardecer, quando as sombras já começavam a se alongar, a tropa fazia alto e os homens preparavam-se para a noite. Mizael, quando sentia o cheiro de caça por perto, deixava a coluna por algumas horas, enveredava por beiras de rios e, geralmente, voltava com uma carcaça: anta, caititu, tatu-canastra eram assados à noitinha. Zequinha Breu era bom no preparo das carnes e, portanto, ficara encarregado do serviço de cozinhar, fazer o café, lavar a tralha, coisas que tais. Enquanto Bernardino e Ananias livravam a tropa das bruacas e dos arreios, a comida era preparada com satisfação pelo nego-aço.

— Arre, que esse café tá mais grosso que caldo de mocotó! — Ananias gostava de café, mas reclamava de qualquer tipo, mesmo do que ele próprio fazia.

Rafael, experiente em lidar com tropa, seguia tranqüilo. A picada estava bem marcada, era só seguir os sinais deixados pelo Capitão. Num de seus alforjes trazia o violão, que tocava com gosto, quebrando a monotonia das noites do sertão.

Na tarde do quarto dia encontraram-se a tropa e Capitão Mendonça mais Joaquim Murta.

— Home, nessa toada atravessaremos logo a serra do Chapadão. — O Capitão estava ansioso, mas reconhecia o esforço dos companheiros e o rendimento da tropa. — Já caminhamos mais de vinte léguas.

— Daqui deste alto já podemos ver a serra lá no horizonte. — Rafael tinha boa orientação. — O diacho é que temos ainda muito mato pra bater. Pelo menos uma semana.

— Mais de quinze dias, cumpadre. Esse ar claro das serras engana muito, a gente pensa que tá perto, vai ver, tá muito distante.

— Sem contar os rios que vamos ter de atravessar. Tenho notícia de pelo menos três rios bem largos. — Ananias, que também tinha informações sobre a ignota região, intrometia-se na conversa dos patrões. — Vamos ter muito trabalho, procurando os lugares mais rasos, onde dá vau. Não dá para meter a tropa nos vaus de orelha, as bestas não agüentam.

O Capitão aproveitou para fazer suas anotações e registrar as observações dos viajantes no livro grosso. Pretendia anotar tudo para requisitar a posse dos locais, para si e para os companheiros da expedição.

No dia seguinte, puseram-se novamente em marcha. O esquema foi mantido: Capitão Medeiros e Joaquim Murta adiantaram-se e a tropa seguia a passo-medido.

O cupim da preocupação foi roendo a cabeça de Herculano Barbosa. A suspeita de que seu tesouro poderia ser descoberto e o temor de ser roubado levaram o garimpeiro aos subterrâneos da lucidez, onde a razão mistura-se com a loucura, o bom-senso desaparece e a obsessão toma conta da mente. Não confiava mais em ninguém, nem mesmo na esposa. À procura de uma solução, teve notícia de Donga-Mudo, escravo na senzala do senhor Altamirando Fortes. É o camarada que vai me ajudar a levar meu ouro pra longe daqui. Sendo mudo, jamais terá condição de contar o que sabe.

Por ser mudo, mesmo sendo bom serviçal, foi fácil e barata a sua aquisição. Por quinhentos mil réis, Herculano Barbosa levou consigo o escravo. Por ser mudo, não era menos inteligente. Pelo contrário, era atilado, e não foi preciso muita explicação para comunicar-lhe o fato de que passara a ser propriedade do garimpeiro.

— Mas que lhe deu na telha, homem ? Comprar um escravo mudo! Onde já se viu? — A censura vinha de Zulmira. O comportamento do marido vinha mudando muito, ultimamente. De calado passara a falar sozinho, vivia ensimesmado. O homem tá parecendo meio biruta. Pensou mas não falou.

Em seguida, Herculano Barbosa comprou um par de bestas, mais um cavalo e uma égua. Com essa tropilha consigo levar o ouro pra onde bem desejar. E com um escravo mudo, nunca ninguém jamais saberá de nada. Preparou-se com calma e sem despertar suspeição na vila. No seu pequeno território de garimpo foi armazenando o necessário, devagar: gêneros de subsistência, duas escopetas, um trabuco e munição bastante; arreios, bruacas novas, roupas, redes. Explicou ao escravo, da melhor maneira possível, o que estava por vir: a viagem daria em rumo desconhecido e seria encetada apenas pelos dois. Somente na véspera da partida mostrou ao preto o conteúdo das quatro bruacas: estavam cheias até à boca de pesadas de pepitas de ouro. Ao mesmo tempo, o ameaçou de morte, caso não guardasse segredo.

— Amanhã de madrugadinha, saio de viagem. — Avisou à mulher, sem mais palavras, que já estava falando demais.

E saíram bem de madrugada, a noite ainda escura. Partindo do terreno do garimpo, passaram por fora da vila, de forma que ninguém ficou sabendo da viagem misteriosa de Herculano Barbosa e seu escravo Donga-Mudo. Os dois homens montados, as bestas arcadas sobre o peso da carga, tomaram o caminho seguido pela expedição do Capitão Mendonça, cuja dianteira datava já de duas semanas. Silenciosamente, ouvindo-se apenas o tropel dos animais, andaram no primeiro dia o bastante para estabelecer razoável distância entre a vila e os viajantes.

Na sua preocupação insana, o garimpeiro não titubeara um só momento em seguir a trilha deixada pelo Capitão e sua tropa. Sabia que eles se dirigiam para a misteriosa serra do Chapadão. Se o lugar é desconhecido, misterioso, serve para esconder meu tesouro. Procurarei um local propício, uma gruta, um penhasco, qualquer coisa de difícil acesso. Um lugar onde só eu saberei chegar. Um cambará qualquer. Eu e o Donga-Mudo. Como é mudo, jamais terá condições de revelar o esconderijo.

Três semanas de caminhar a trote de mula e a expedição de Capitão Mendonça chegou ao sopé da serra do Chapadão.

— Eta, que serra braba! Vamo comer fogo pra atravessar essa muralha. — A fala foi de Zequinha Breu , extasiado perante a montanha que corria de norte a sul, destacando-se sobre a morraria da vizinhança.

A jornada até ali tinha sido cheia de perigos. Dos registros do Capitão, no seu livro de capa escura, constavam as difíceis travessias de três rios, que foram nominados: Santana, São João e São Miguel. Todos os cursos perigosos, encachoeirados e correndo por entre precipícios, tiveram de ser contornados. A muito custo e depois de muitas léguas de caminhadas, passagens menos difíceis foram localizadas e a tropa passou incólume. Além dos rios, o relevo da região não ajudava em nada: a morraria se sucedia, era uma seqüência de subidas e descidas. Nenhum vale ameno, nenhum espraiado de águas mansas ou vargens de terrenos planos. As distâncias se multiplicavam: o que parecia estar perto estava longe e o horizonte desdobrava-se a cada morro galgado. Enfim, eis a serra da Canastra, impassível, desafiando os caravaneiros.

— Hai que encontrar uma passagem. Não temos condições de subir por essa rampa. — Ananias mostrava-se preocupado, e com ele concordava Rafael:

— A subida é mesmo impossível para a tropa.

Coronel Mendonça convocou Rafael para seguirem juntos na direção ao norte. Agora, a experiência do antigo tropeiro seria necessária para escolherem uma passagem entre a montanha, que se apresentava compacta e sem sinais de um desfiladeiro através do qual poderiam chegar ao outro lado. A tropa acampou no local, e esperaria a volta dos dois batedores. Por se tratar de uma pequena planície, com pasto bom para os animais, batizaram o local de Campo Largo.

Na sua mudez, Donga-Mudo ia percebendo que o patrão não estava bem. A intuição bem desenvolvida, que substituía sua deficiência em falar, lhe dizia que alguma coisa perturbava seu dono. Olhava amiúde para todos os lados, assustava-se com qualquer pio de ave ou barulho no mato. Ao acamparem, ao entardecer, a intranqüilidade do patrão aumentava. Exigia uma fogueira enorme, e quando as chamas diminuíam, o homem branco achegava-se para bem perto do fogo, os olhos arregalados, olhando para todas as bandas.

À medida que a tropilha avançava, seguindo a trilha batida, Herculano Barbosa se transformava. A confiança com que encetou a viagem desapareceu por completo. Exigia que a tropa caminhasse a passo lépido, esfalfando suas bestas. Ao mesmo tempo, tinha medo de alcançar a expedição do Capitão, que poderia se deter por qualquer motivo. Sabia, de antemão, que o Coronel dirigia-se diretamente para a Serra do Chapadão, rota que também seria a sua. Na serra, acho um lugar para esconder o tesouro. A idéia virou obsessão. E na obsessão que chegava à paranóia, passou a ver o bom ajudante negro com desconfiança. E se o negro foge? E se ele me mata enquanto estou dormindo? E se...? As perguntas irrespondíveis foram minando seu espírito. Não dormia direito, não descansava. Tenho de vigiar este preto desgraçado.

Foi neste estado de espírito que chegou, de repente, às bordas da pequena planície onde estava acampada a expedição do Coronel Mendonça. Estacou de súbito, ainda sob o dossel de verdura da mata sombria, a tempo de evitar ser visto. Era por volta do meio-dia e ainda tinha muitas horas de sol para caminhar. Sem pensar duas vezes, puxou as rédeas de seu cavalo e embrenhou-se de volta no mato. Na direção do sul. Por São Damião! Por pouco não caio em cima da tropa do Coronel. E agora? A trilha acabou, tenho eu mesmo que abrir o meu caminho. Ordenou ao escravo que fosse na frente, abrindo a picada com o facão e a machadinha.

Ao entardecer, estava a algumas léguas ao sul. Como não tinha instrumentos nem mapas, não sabia quanto caminhara, podia apenas avaliar. Naquela noite, pouco dormiu, tamanho era seu medo e sua ansiedade. Na manhã seguinte, seguiu novamente caminho, para o sul, sempre para o sul, ao longo da muralha de granito. Mais ou menos ao meio-dia, observou uma fissura na parede da serra, e foi explorá-la. Não passava de uma reentrância, com pedras soltas e uma gruta rasa. Na frente dessa pequena alteração no relevo, duas copadas árvores-de-óleo espalhavam sombra e postavam-se como sentinelas. O local impressionou Herculano. Sim, ali estava o seu esconderijo. Não só secreto, mas com duas árvores notáveis, referência fácil para a localização do sítio.

Tinham de trabalhar ligeiro para colocar na gruta as bruacas com tesouro antes do anoitecer. O chão era inexplicavelmente macio e Herculano Barbosa determinou ao escravo que cavasse um buraco, no qual colocou as pesadas bruacas, que foram em seguida cobertas pela terra e pedras, disfarçando a escavação. Só depois de concluído o trabalho, a noite chegando, é que trataram de acampar, de aliviar os animais dos arreios e preparar uma refeição.

O preto era, também, o cozinheiro. Enquanto lidava com a panela sobre a fogueira, com água a ferver, e depois acrescentando os parcos gêneros de que dispunha, Herculano Barbosa se agitava em pensamentos. Ao contrário de se aquietar, agora que o tesouro estava enterrado e o local marcado, ele se inquietava mais e mais. Observava o escravo com olhos febris, a desconfiança com relação ao preto atingindo o clímax. Esse vagabundo sabe das coisas. Não fala nada, o desgraçado, mas sabe de tudo. Sabe que meu tesouro está enterrado ali. Tenho de dar um jeito nele.

O silêncio se torna opressivo. Os animais pastam e de vez em quando batem com os cascos no chão. O barulho da mata é quase que imperceptível. Herculano olha, desvairado, ao seu redor, enquanto come a paçoca de carne e um pouco de arroz. Eventualmente, cruza seu olhar com o de Donga-Mudo. O patrão num tá bão. Esse jeito de olhar num tá bão. Parece que tá louco de medo.. Esse lugar é do demo. Quando ele descuidá, fujo daqui. Mutuamente desconfiados, nenhum dos dois dorme direito. Cada qual procura manter-se alerta, de tal forma que o dia amanheceu e ambos se puseram de pé antes do sol nascer.

Ao arrearem os animais de montaria, Herculano Barbosa consegue, disfarçadamente, preparar sua pequena escopeta, enfiando-a no cós atrás das calças e vestindo ligeiro o pesado gibão. O escravo não percebe, entretido que está em ajuntar as mantas que usaram durante a noite. Colocando-as de volta às bruacas, as quais foram adrede colocadas sobre uma das bestas. Levantando os braços, Donga procurar acamar os panos. Num gesto rápido Herculano puxa a escopeta e dispara á queima-roupa, atingindo o negro no meio das costas.

No acampamento de Campo Largo o tempo de espera é aproveitado na verificação dos arreios, na substituição de ferraduras dos animais, na seca de carne cujas mantas são postas ao sol. Enfim, nessas diversas atividades próprias de uma parada de tropa. O dia passa sereno, tranqüilo. À tardinha, entretanto, a chegada de um cavaleiro coloca os cinco homens de prontidão. Procuram suas armas, enquanto gritam para o estranho que se avizinha:

— Quem vem lá?

— Sou de paz, gente! — grita, em resposta, o estranho. E chega até ao acampamento.

É uma figura terrível: arqueado na sela, o chapéu esconde o rosto escuro no qual brilham duas brasas: são os olhos, vermelhos, enormes, que não cessam um só minuto de girar de um lado para o outro. A medida que se aproxima, olha seguidamente para trás, como que temendo uma perseguição. As roupas estão sujas e amassadas. O cavalo também parece cansado. Ao apear do cavalo, o homem bambeia as pernas, quase desfalece. É ajudado por Zequinha Breu , que o ampara e ajuda a chegar até no centro do grupo.

Nada diz. Olha para todos como se não visse ninguém. Acocora-se ao lado da fogueira, parece estar com frio na tarde ainda plena de sol. O silêncio é quebrado pelo armeiro Mizael:

— Virgem Maria, é seu Herculano Barbosa!

Ao ouvir o próprio nome, Herculano olha para Mizael. Tenta lembrar-se, mas a cabeça parece oca. Os acontecimentos das últimas horas e a exaustão pela caminhada forçada apagaram suas lembranças. Não mais reconhece os conhecidos da vila, não sabe onde está, o que faz ali. Apenas o terror habita sua mente. Esqueceu-se de tudo: do preto estertorando no chão, nos animais espantados com o tiro que matou o negro, da fuga do lugar maldito. Não se lembra nem mesmo do local onde enterrara seu tesouro. Sua mente é um branco total.

Os tropeiros aventam mil e umas explicações para a chegada de Herculano Barbosa ao acampamento. Dão-lhe alimento e água, que o homem aceita sem nada dizer.

— Pra mim, ele tá abirolado. Óia só o jeitão dele.

— Tá fugindo de alguma coisa. E parece que não quer falar nada pra gente.

— Vamos ficar atentos, se vier alguém na perseguição de Herculano, precisamos estar preparados.

Montaram guarda, revezando-se. Um olho na orla da mata, outro em Herculano, que não inspirava nenhuma confiança. Um louco-manso, mudo e aterrorizado.

No final do segundo dia de espera, Capitão Mendonça e Ananias chegaram. De volta de sua expedição exploratória, traziam boas notícias.

—Tem um desfiladeiro a umas dez léguas mais pra cima. Amanhã podemos levantar o rancho.

— E Herculano? O que a gente faz com ele?

— Vai com a gente, ora essa! — A ordem é do Capitão — Haveria a gente de deixar o louco abandonado por aqui? Enquanto tiver manso, segue no seu cavalo.

A expedição prosseguiu, acrescida de mais um cavaleiro, que nem perguntou para onde se dirigiam. Iam subindo rumo ao norte, ao desfiladeiro pelo qual ultrapassariam a Serra da Canastra. A caminhada foi tranqüila, os animais descansados renderam na marcha e logo atingiram a passagem.

O Capitão foi na frente, já tinha explorado bem a trilha estreita, seguido por Ananias e pelos demais, em fila indiana. Ao saírem do outro lado da fenda, agruparam-se no platô, do qual puderam avistar a serraria sem fim que se perdia no horizonte. A vista não conseguia abranger em um só olhar a amplitude da paisagem. A verdura das matas, que cobria toda a extensão divisada, era de uma beleza incomparável.

Entusiasmados com a perspectiva de encontrarem ouro, pedras preciosas e o que mais desejassem, os tropeiros seguiram a liderança do chefe. Dentre a morraria, diretamente na direção do nascente, destacava-se, bem no fundo da paisagem, um morro peculiar: seu topo, diferente dos demais circundantes, era achatado e completamente plano.

— Vamos na direção daquela “mesa” lá no leste. — Determinado, Capitão Mendonça puxou a caravana, que se embrenhou pela mata. E daí pra frente, só se falava no tal morro da mesa, como ficou batizada a estranha elevação.

Treze dias de caminhada. Subiam e desciam morros, atravessando rios, abrindo as picadas, identificando e dando nomes à topografia. Chegaram ao sopé do Morro da Mesa, onde acamparam. Paredões íngremes por todos os lados. A muito custo encontraram uma ravina que descia do topo, e pela qual subiram, todos homens, menos Zequinha Breu , que ficou vigiando o desmemoriado. Escorregando, agarrando-se nos arbustos, lá foram os seis exploradores.

Reunidos no topo do morro, conferiram a planura do local. A superfície completamente lisa se estendia por uma área de um alqueire, sem qualquer tipo de vegetação importante, apenas touceiras de capim rasteiro aqui e ali. O vento varria a superfície, em rajadas constantes, levantando pequenos redemoinhos. Varrendo a fina areia vermelha, uma poeira que obrigava os homens a proteger os olhos e a boca.

— Que lugar interessante! Parece ter sido aplainado. Mas não é serviço de gente, não. — Com sua experiência de desbravador, o Capitão jamais se deparara com uma formação tão peculiar.

— Veja, Capitão, aquele vale lá em baixo. — Joaquim Murta chama a atenção para a paisagem a oeste do Morro da mesa: terras planas, de campos e matas intercalados. Em contraste com os morros adjacentes, o vale se estende por léguas e léguas. Um rio sinuoso reflete o sol em suas águas de prata. Dezenas, centenas de ipês floridos dão um tom de ouro, que predomina sobre o verde das matas. Impressionado com tamanha beleza, o Capitão não se contém. Empolgado, exclama:

— Mas, isto aqui... é o Paraíso !

Naquela noite, à luz da lamparina, o Capitão registrou a subida no Morro da Mesa e o achado do vale abaixo, local que batizou, simplesmente, de Paraíso. O rio divisado de cima do morro foi denominado de Rio Liso e o contraforte de uma elevação no outro extremo do vale, por sua cor rosada ao entardecer, foi chamada de Morro Vermelho.

Exploraram, a partir do sopé do Morro da Mesa, a região ao redor. Foi confirmada a boa qualidade das terras, pela abundância da árvore conhecida como pau-d´óleo, indício seguro de solo fértil. O terreno era virgem, não descobriram qualquer vestígio de trilhas ou caminhos, nem mesmo sinais de índios. Havia muita caça miúda e rastros de onça, principalmente às margens do rio Liso. Mizael Brandão trouxe, de suas incursões, pacas, tatus, antas e um caititu, caçados com facilidade, pois os animais não se mostravam ariscos, não conheciam ainda o perigo do homem branco.

Mas de ouro e pedras preciosas, nenhum sinal.

Levantaram acampamento do sopé do Morro da Mesa, voltando à vila de Jacuí. Os víveres estavam quase esgotados, e dependeram, durante todo o regresso, das caçadas de Mizael Brandão. Não passaram privações, pois o antigo armeiro era bom caçador, tinha faro e sabia ver os sinais no chão e nos troncos das árvores. Acamparam novamente no local Campo Largo, para pernoite e para mais uma incursão de Mizael, à procura de caça. Mizael e Bernardino, um dos ajudantes, seguiram a trilha pela qual chegara Herculano, o maluco-manso.

— Vamos ver de onde veio o Herculano. Fica atento, Bernardino, a gente pode topar com perigo pela frente.

Os animais seguiam com dificuldade, a trilha era muito ruim, no rumo do sul. Entre paradas e tocais, os dois prosseguiram com cuidado. Ao acercarem-se de um local meio descampado, marcado por duas árvores semelhantes, uma matilha de guarás fugiu, embrenhando-se na mata. Deixaram à vista alguns ossos esparramados pelo chão, roídos à brancura.

— Mas que fedentina! — Bernardino, afoito, açodou sua montaria. — Cruz-credo, patrão! Tem ossada de gente aqui !

Apeando-se, verificaram que alguém acampara ali. Os restos eram visíveis: panelas e tralha de cozinha, cobertas rasgadas, arreios, bruacas vazias, tudo revirado. E a ossada, também se esparramava pela área.

— Os bichos fuçaram em tudo. Mas é claro que aqui teve gente, e alguma coisa trágica aconteceu.

— Será que o acampamento foi atacado por onça, patrão?

— Se fosse onça, ela teria arrastado o corpo pro meio do mato.

— Coisa de índio, patrão? — Bernardino sentiu um arrepio, olhou ao redor, já temeroso.

— Não parece. Nenhuma flecha, nenhum sinal deles. Se fosse ataque de índio, teriam levado as mantas e as panelas, eles gostam dessas coisas de homem branco.

Por mais que investigassem, não chegaram a uma conclusão. Ajuntaram a caveira e os ossos. Acharam uma pá que já começava a enferrujar, com a qual abriram uma cova e, respeitosamente, enterraram os restos do homem ou da mulher.

— Com certeza, este foi o acampamento do Herculano. Alguma coisa pavorosa aconteceu. O medo dele foi tanto que perdeu o juízo, ficou desmemoriado.

Voltaram com a caça abatida e com a notícia do acampamento destruído, da ossada encontrada e devidamente enterrada.

O que ninguém notou, pois a vigilância sobre o desmemoriado era quase nenhuma, foi o brilho dos olhos de Herculano, quando escutou, à socapa, a narrativa de Mizael e Bernardino. Teria se lembrado de alguma coisa? Impossível dizer.

Dia seguinte, antes de amanhecer, madrugada escura, a azáfama da partida. Foi Zequinha Breu quem notou e deu notícia da ausência.

— Gente, cadê o Herculano?

Não estava no acampamento. Nem ele nem seu cavalo.

— Sumiu. Ou fugiu! Quem sabe dizer o que se passa na cabeça de um maluco sem memória?

— Vamos procurar, Capitão?

— Não carece. Se ele saiu escondido, é porque tem seus motivos. Ademais, temos pressa em voltar. Vamo embora.

Montando seu magnífico alazão, puxa a comitiva.

Nunca mais ninguém teve notícias de Herculano Barbosa.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 12 de junho de 2001.

CONTO # 95 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/03/2014
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