A DERROTA DE PIRRO

A manhã cedeu lugar à noite de má vontade. A névoa do inverno rigoroso demorava a desmanchar-se sob os raios do sol frio e em algumas grotas persistia até o final da manhã. Os homens resistiam enquanto podiam aos chamados dos chefes para a rotina do dia no acampamento. Levantavam-se estremunhados, esfregando as mãos nos rostos, na tentativa de apagar os últimos vestígios de sono. Os animais ficavam indóceis e só se acalmavam quando a parca ração lhes era oferecida. Cavalos e elefantes mereciam a primeira atenção dos homens encarregados de sua manutenção e já estavam praticamente prontos para encetar a parte mais perigosa da retirada das tropas do exército.

— Eia, homens! Vamos! Preparem-se para partir!

Os chefes de cada grupo de trinta homens tinham recebido as ordens na véspera: a retirada da pequena planície, em direção ao oeste, para o mar, onde embarcações levariam o exército do grande general Pirro para a Sicília.

O bivaque do general e de seus auxiliares imediatos se situava no centro do enorme acampamento. Toda a planície estava ocupada pelo poderoso exército. As extremidades do acampamento atingiam os sopés das colidas adjacentes. Sentinelas vigiavam em posições elevadas, onde ainda eram visíveis as fumaças das fogueiras que haviam ardido durante a noite inteira.

— General, tudo pronto para a partida! — Calipes, um dos cinco auxiliares diretos de Pirro, apresentava-se formalmente ao chefe supremo da tropa.

— Vamos partir! Assuma o comando da marcha. — Pirro era incisivo e direto. Sabia delegar poderes e dar ordens, o que constituía o segredo de suas vitórias.

A marcha tem início. O exército vem de uma grande batalha que teve lugar em Heracles e Asculum. Mesmo vitoriosos, os homens estão cansados, pois foi um combate violento, no qual a maior parte do exército de Pirro foi exterminada pelos romanos. Do alto de seu elefante, Pirro observa o movimento do seu exército. Os soldados obedecem aos comandos, a disciplina militar não diminui um só momento. Alguns batalhões cantam hinos para animar a caminhada. Mas observando o ritmo geral, a cadência dos homens e dos animais, Pirro vê que estão cansados.

— Os homens não agüentam muito mais, estão no limite de suas energias. — Calipes informa ao comandante, em uma das diversas ocasiões em que passa pelo Comandante Supremo.

— Na ilha teremos muito tempo para descansar e reorganizar nossas forças. Permaneceremos tempo bastante para a recuperação da tropa. — Promete Pirro.

Pelo meio da manhã, a coluna avançara bastante na direção do porto de Pólipos, quando chega um mensageiro.

— Os navios já estão no porto, à nossa espera. — Pirro comenta com seu imediato, ao ler a mensagem. — Devemos chegar pela tardinha. Amanhã embarcaremos.

A cadência dos elefantes é monótona. A tarde esquenta, como sói acontecer nas terras meridionais da península itálica. Ao lado de Pirro, segue o elefante que conduz Cinêas, o sábio conselheiro do rei de Épiro. A modorra desperta lembranças que aprazem o sábio em seus momentos de divagações.

Lembrava-se de Pirro, o jovem irrequieto e cheio de planos, que assumira o trono de Épiro aos 23 anos. Em boa hora, o pai de Pirro o nomeara conselheiro do jovem, que sempre ouvira seus conselhos, mas jamais os seguia. A administração de Pirro, que sabia se cercar de bons auxiliares, colocara o reinado em boa situação. As constantes ameaças e pressões dos reinados vizinhos levou Pirro a formar um poderoso exército, constituído de vinte e cinco mil homens, mil e duzentos elefantes e quatro mil cavalos. Uma verdadeira máquina de combate, vigorosamente adestrada por um corpo de fiéis comandantes, corajosos e intrépidos, que sabiam passar à tropa todas essas qualidades necessárias ao espírito guerreiro.

Em função da faixa costeira do reino estar sujeita a incursões vindas da península itálica, pelo Mar Jônico, a frota militar foi ampliada e melhorado o seu poder de combate. As pressões dos vizinhos — Império da Macedônia ao norte, Atenas e Esparta ao sul — forçaram o imperador a estender os domínios de Épiro na direção do leste, até as praias do mar Egeu, onde estabelecimentos do império foram instalados.

Quinze anos após ter-se tornado imperador de Épiro, Pirro tinha consolidado seu poder e prestígio na região. Seu exército invencível impunha respeito a todos os imperadores e governantes na região, em todo o mundo helênico e mais além, chegando à península itálica. Os romanos e seus adversários conheciam o poder do seu exército.

O espírito de conquista dos romanos incomodava a todos os povos vizinhos. Pirro sentia-se ameaçado pelos constantes entreveros de sua frota com as trirremes romanas. E mesmo na península, os romanos eram combatidos pelas cidades ao sul e ao norte de Roma. Pirro estava com trinta e oito anos quando recebeu embaixadores da cidade-estado de Taranto, importante porto no golfo do mesmo nome, ao sul da península.

Entusiasmou-se com a proposta dos taranteses: desejavam a sua intervenção de Pirro e seu famoso exército na região, a fim de evitar os contínuos ataques do exército romano.

— Não acho prudente nem oportuna esta expedição à península. — Cinêas recorda-se de como havia admoestado insistentemente a Pirro, sem demovê-lo do propósito.

Alguns meses foram suficientes para colocar seu exército e sua armada prontos para a luta. Partindo do porto de Nicópolis, navios, soldados, cavalos e elefantes, e respectivos armamentos foram transportados por cento e dez trirremes, em diversas viagens. Em apenas quatro dias chegaram ao porto de Taranto, e numa vasta área entre a cidade e os montes a leste, a tropa montou seu acampamento.

Pirro não demorou no apronto de seu formidável exército para entrar em combate com os romanos. Graças à surpresa do ataque, e ao uso de elefantes nas batalhas, assumiu logo controle da situação sobre os romanos, que foram facilmente batidos em Heráclea. Entretanto, em Asculum, um pouco mais ao norte, Pirro encontra feroz resistência. Os romanos recebem reforços de Roma e enfrentam corajosamente as tropas do Rei de Épiro, a serviço dos taranteses. Nem por isso diminui o vigor do imbatível exército.

Os combates são selvagens. Cada palmo de terra, cada casa, cada esconderijo e cada posição de defesa era conquistado com grandes perdas para ambos os lados. Os romanos não fugiam, preferiam a morte gloriosa em batalha, o que fazia deles um inimigo de valor e respeito. Finalmente, após quatro semanas de duros encontros, são mais uma vez vencidos por Pirro. As perdas de seu exército são grandes e sua força militar foi reduzida pela metade. Graças aos ardis militares, foram feitos muitos prisioneiros, dentre eles famosos generais que foram passados ao fio da espada. Quanto aos simples soldados, foram liberados e autorizados e voltarem a Roma.

— Congratulações, Rei Pirro! A vitória foi difícil, mas depois desta derrota, os romanos abandonarão definitivamente o sul da península. — Coberto de glória e usando as vestes de sua real posição, Pirro recebe num grande banquete, os dirigentes de Taranto. Ao seu lado estão seus generais e conselheiros. Uma tropa de mais de cinqüenta mulas chegou o pagamento pela intervenção feliz contra os romanos. Cinêas recorda-se com detalhes a resposta do seu querido pupilo, agora, mais do que nunca, um estrategista perspicaz, um guerreiro imbatível e um monarca poderoso:

— Mais uma vitória como esta e estou perdido!

Vencidos os romanos, agora o exército se dirige para o oeste: a frota os espera em Agropolis, onde deveria embarcar para a ilha de Sicília, ao sul. Na pequena angra, onde a armada estacionara, algumas embarcações com a bandeira de Napoli estão também ancoradas. Uma comissão de mais de vinte ilustres napolitanos aguarda a chegada de Pirro.

— Ave, grande general! Tivemos notícias de suas vitórias contra os romanos. Desejamos que seja um dos guardiães de nossa região. — A proposta soa como uma suave música aos ouvidos do rei-guerreiro.

— Reconheço que vocês precisam de uma guarda efetiva, a qual não posso lhes proporcionar. Mas meu exército está à sua disposição.

— Majestade, o exército está desfalcado, os homens estão cansados. Precisam recompor as energias. — Mais uma vez Cinêas tenta demover Pirro de sua intenção de guerrear. Desta vez, com algum sucesso, pois os generais, Calipes entre eles, endossam a opinião do sábio conselheiro.

— Está bem, vamos para a Sicília. Mas prometo ajudá-los em breve. — Foi a promessa de Pirro aos embaixadores de Nápoles.

Durante seis meses o exército de Pirro permaneceu na ilha de Sicília. Estacionado em Siracusa, por onde saíam e chegavam os barcos da frota de Épiro, a tropa não deixava de se exercitar e foi engrossada por reforços de homens, animais e armas, vindos de Épiro. Milhares de soldados foram recrutados na ilha e na península, pois fazer parte de tal exército era glorioso e pecuniariamente vantajoso.

Enquanto Pirro e seus homens encontravam-se bivacados na ilha, a frota cartaginesa atacou algumas cidades: Agrigentum e Licatania foram severamente castigadas e Gelas saqueada e incendiada. Pirro, que não tolerava agressões e cujo espírito guerreiro era alimentado por provocações de tal tipo, partiu incontinenti, com suas embarcações, para vingar as populações agredidas. Num encontro com a frota e soldados, estacionados em Modicae, Pirro infligiu aos cartaginenses uma derrota exemplar: destruiu a frota ainda no porto e exterminou, até o último soldado, o exército de Cartago.

A vitória, sem perdas significativas para o exército de Pirro, entusiasmou os generais. Foi a hora de voltarem suas atenções para o convite dos napolitanos.

— Você está se deixando levar pelo entusiasmo, meu caro Pirro. — Como sempre, Cinêas avisa o grande guerreiro da necessidade de moderação em suas expedições. Inutilmente.

Sem mais delongas, Pirro e sua força de guerra voltaram à península e dirigiu-se à região onde o exército romano insistia em fustigar os povos do sul. Preferiram desembarcar em Sorrentum, de onde se dirigiram para o norte. Em Beneventum, encontraram o exército romano fortemente armado e estacionado às margens do Rio Volturnia.

A batalha foi terrível. Durante oito semanas os entreveros constantes, encontros, emboscadas e armadilhas, de ambas as partes, dizimaram as forças de todos os lados. Os romanos, todavia, lutando em terreno conhecido, sustentados e fortalecidos por uma estratégica rede de estradas e fornecimento constante de suprimentos, homens e armas, não só resistiram ao exército de Pirro, como, finalmente, impuseram-lhe vergonhosa derrota. Nesse encontro com os romanos, Pirro viu seu poderoso exército de mais de vinte mil soldados ser reduzido a cerca de oito mil homens. Antes de ser totalmente dizimado pelas forças de Roma, resolve, agora sim, aceitando os conselhos de Cinêas, a retirar-se.

Sem pressa, sempre oferecendo resistência ao inimigo, a antes grande máquina de guerra de Épiro vai retirando-se para o sudeste, na direção da cidade-porto de Monopolis, onde a frota já a aguardava, para levar o que restava de volta ao reino de Épiro, onde o rei é recebido como herói invicto. Pirro está então com 45 anos de idade e passara sete anos em batalhas contra romanos e cartaginenses, em terras da península itálica.

Nem a idade, nem o cansaço das batalhas, nem os conselhos de Cinêas e outros sábios conseguem suavizar o espírito indômito do rei guerreiro. De volta ao reino, sente-se ameaçado pelo rei da Macedônia, cujas hostes incursionavam periodicamente pelo norte de Épiro. Com eficiência, seu exército malbaratou as forças do rei Alexandre e impôs a paz e ordem nas fronteiras setentrionais, bem a tempo de liberar seu exército para uma incursão ao sul, desta vez à península de Peloponeso, para combater Esparta, cidade-estado que surgia como potência e ameaçava a hegemonia de Pirro.

— Vamos desembarcar no porto de Petras e de lá, passando por Corinto e Argos, chegaremos ao centro, rumo a Esparta. — Na reunião com seus generais, Pirro coordenou toda a ação. — A estratégia é evitar as cidades fortificadas do oeste.

Estava certo o rei-guerreiro a encetar a invasão de Peloponeso. A resistência das cidades escolhidas foi pequena. Em poucos dias entraram em Corinto, e seguiram direto para Argos, cidade mais ao sul.

— Argos é uma cidade tranqüila, não tem sequer guarnições militares. Sua população é pacífica, são ceramistas na sua maioria. — Os mensageiros chegavam com notícias favoráveis, que orientavam a ação militar de Pirro e seus generais.

Nem sempre o que parece ser é a realidade. Na região de Peloponeso, cuja campanha começara fácil para Pirro, o destino lhe reservava um momento crucial, longe dos campos de batalha e quando o grande general estaria celebrando, com pompa, a tomada de toda a região.

Na pacífica Argos residira o jovem Menelon, filho de Linos e Circeia. Menelon fora seduzido pelo canto da sereia do exército de Esparta e ingressara nas suas fileiras, como soldado de infantaria. Fora morto em Petras, quando as forças espartanas enfrentaram o exército de Épiro. Circeia, ainda sob o impacto da informação da morte de seu filho, viu seu marido ser covardemente trucidado por uma patrulha do exército invasor. A dor era quase insuportável. Desesperada, refugiou-se na casa onde por tantos anos fora feliz, ao lado do marido e do filho, seus queridos entes.

Agora, nada mais existia, nada mais importava. Sentada na laje da casa, a velha passava horas e horas, chorando silenciosamente. Ao sol ameno da manhã ou à sombra, sob um pequeno telheiro, observava, por entre as lágrimas e a dor, as idas e vindas da soldadesca pelas estreitas ruas. Grupos de quatro ou cinco, em patrulhas aleatórias.

De tarde, uma movimentação diferente chamou sua atenção. Um grupo numeroso de soldados precedia, ao longo da rua, um cortejo que pareceu a Circeia ser de gente muito importante. Atinou logo do que se tratava: os comandantes invasores caminhavam em conjunto. No centro do numeroso grupo, um homem se destacava: roupas brilhantes, as peças que cobriam seus ombros, tórax, costas, refulgindo como ouro. O elmo sobre a cabeça ostentava marcas e cores de um grande chefe.

— É ele o maior dos criminosos. Deve ser o chefe supremo de todos esses bandidos. Deixando a ira tomar conta de sua alma dilacerada pela dor, a mulher se aproxima da borda da laje da casa. Não é vista pelos soldados, que passam marchando, abaixo de si, escoltando a ilustre figura. Na sua mente, ocorre logo um pensamento de vingança. Olha ao redor, à procura de um objeto, uma arma, algo com que possa ferir, machucar, matar. Seu olhar passa pelo telheiro.

— Uma telha! Vou jogar uma telha em cima desse bandido!

Do pensamento à ação não demora um átimo. Retira uma telha do telheiro e espera, agora maliciosamente agachada, oculta da visão dos que passavam embaixo pela amurada da laje.

O cortejo vem, em cadência militar. O grande conquistador Pirro marcha, juntamente com seus generais e enorme escolta. É uma marcha de triunfo, a posse da pequena cidade já tendo sido assegurada na véspera. A rua está deserta, nenhum habitante se atreve a mostrar o rosto, o medo é como uma névoa invisível, que entranha todos os lugares, toma conta de todas as pessoas do lugar.

— Vem, vem, desgraçado. Chega mais perto.

No momento em que Pirro está sob a mira da mulher, ela se levanta do esconderijo e lança, com as forças multiplicadas pela ira e pelo desejo de vingança, a telha, que voa em pontaria certeira.

— Toma o que você merece, miserável!

Tarde demais os que cercam o magno chefe vêm quando a peça de cerâmica o atinge na cabeça. A telha se despedaça de encontro ao capacete de metal, que é fendido numa larga brecha. O grande general tomba de seu cavalo, não havendo tempo sequer para seus auxiliares mais próximos evitarem a queda. Calipes olha para o alto, na direção de onde veio o estranho projétil, e nada vê: a velha já tinha desaparecido da laje.

Quando os homens da escolta conseguem erguê-lo, Pirro não apresentava mais sinais de vida.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte, 16 de abril de 2002.

CONTO # 154 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/04/2014
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