O CENTAURO NEGRO

Negão já fora um cavalo importante. Criado meio selvagem numa fazenda do Mato Grosso, campeara solitário e livre pelos imensos rincões do Pantanal, sem brida nem arreata, até a idade adulta. Arredio, preferia pastar afastado da manada, errando pelas moitas mais altas. Dera muito trabalho para ser agregado à tropa, quando éguas e potros, cavalos adultos e o garanhão foram cercados, laçados, corridos em direção do curral da grande fazenda.

— Maneco, vamos trazer aquela manada que tá solta lá naquele cantão do Espraiado. — A ordem, vinda do proprietário daquelas pastagens sem fim, pôs fim à liberdade não só do solitário cavalo negro, como de todo o grupo de mais de cinqüenta animais.

Veio então a marcação, o ferro em brasa queimando os pêlos e deixando a marca indelével sobre o couro, na anca esquerda, dois SS entrelaçados, marca indefectível de seu dono, que carregaria de então para sempre. Sua sina estava apenas no começo. Logo vieram uns peões que tentaram cavalgá-lo. Sua resistência em ser somado, em submeter-se aos arreios, à barrigueira, à barbicha em torno do rabo, tornou o imponente animal uma lenda para todos os peões da fazenda e da redondeza. Não havia quem conseguisse montá-lo, muito menos permanecer em seu lombo por mais de alguns segundos.

— Capitão Sandoval. , o animal tem o diabo no corpo. Mais parece um demônio da noite. Esse eu desisto de montar. — Demétrio, domador exímio e de longa experiência, desistira de domar o imponente cavalo preto.

A cor negra profunda dera-lhe o nome. Negão ficou famoso. Muitos cavaleiros audazes, afeitos em tirar a teima de cavalos até mais fortes e mais resistentes, foram ao chão, lançados além da cerca, com escoriações e pisaduras. Negão era rebelde mas não era de mau caráter. Assim que conseguia se aliviar da incômoda carga no lombo, corria para longe do pião, estatelado no chão. Jamais pisoteara um montador.

Por toda essa capacidade de se livrar dos melhores peões, Negão acabou sendo astro dos rodeios. Levado para as festas mais importantes do Triângulo Mineiro e do interior de São Paulo, não demorou muito para ser o mais famoso cavalo dos espetáculos de montaria. Quanto mais tentavam montá-lo, mais resistência opunha. Não tolerava a esporeada do acicate nem a tortura do rabicho. O porte ereto e a maneira com que se livrava da montaria em dois ou três pinotes, tornaram-no um campeão.

Durante muitos anos era sucesso em quanta festa de peão comparecesse. Até que a tragédia se apresentou para dar sossego à animália. Uma corcoveada mais elevada, as quatro patas no ar e o peão voando acima da cerca. A multidão delira com as arremetidas para o alto do poderoso animal. Mas. ao tocar o chão, a pata dianteira resvala, o cavalo perde o equilíbrio e cai com todo seu peso de quinze arrobas sobre a pata, quebrando-a em diversos locais.

— Dê o tratamento que for necessário, quero esse cavalo sarado e inteiro no próximo ano. — O atual proprietário, que havia pago pelo Negão muitos milhares de dólares, queria sem tardança o seu retorno às arenas dos rodeios.

— Sei não, Dr. Chico. Vamos fazer o possível e o impossível. A queda foi feia. Um desastre. — O chefe das baias, veterinário famoso, não teve como recuperar Negão. Das baias do famoso haras foi levado para uma das fazendas do grande proprietário. O cavalo estranhou aquelas paragens, montanhosas, cheias de grotas, de irregularidades. Foi deixado à sua própria sorte, pastando. Manquitolando.

Suas agruras não pararam aí. As dores lancinantes acompanhavam-no até mesmo quando repousava à sombra das enormes árvores. Não caminhava muito. O pouco que andava era com dificuldade. E devido a essa dificuldade em andar, numa tarde de chuva, ao voltar para o estábulo, resvalou por uma ribanceira e caiu dentro de um buraco. Um buraco de dois metros de fundo, largo o suficiente apenas para o cavalo ficar em pé. Não havia como sair.Foi encontrado no dia seguinte, esgotado, pela noite toda passada na estreita cava, onde não tinha sequer como se sentar.

— Dr. Chico, vamos ter de sacrificar o Negão. Está metido num buraco do qual não temos como tirá-lo.

A ordem de sacrifício veio pelo mesmo telefonema. E em seguida passada para o Marcionilio. Contudo, ninguém tinha coragem de matar o indefeso animal, por mais certa que seria sua morte, metido dentro da cova.

A sugestão foi feita por um dos mais novos peões, Zelito, um moleque ainda, negro retinto, dedicado por demais aos animais da fazenda.

— Vamos colocar terra na cova. Aos poucos. O cavalo vai pisotear a terra e devagarzinho irá diminuindo o buraco, até conseguir sair.

Dito e feito. À medida que a terra era derramada, do alto do barranco, no buraco, Negão, no afã de não ser enterrado vivo, ia pisoteando a terra, o que elevava o piso do buraco.

— Vamos, Negão, força! Vem, não desanima! — Zelito animou o animal durante todo o processo. Com algumas viagens da camioneta, carregada de terra, conseguiram que o cavalo chegasse a ponto de sair do buraco.

— Viva, cê conseguiu! — Zelito passava as mãos pelas pernas e pelos pés de Negão, limpando a terra vermelha. Afagava o animal, coçava-lhe as orelhas e passava a mão pela crina, como se pente fosse.

O sofrido animal, sem dúvida reconheceu no jovem negro o seu salvador, aquele que conseguira safá-lo do buraco maldito e evitara sua morte. Pois, desde então, Negão deixou-se montar docilmente por Zelito — e só por ele — percorrendo os descampados, os montes e os vales da região, formando os dois um centauro negro.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 7 de maio de 2002

CONTO 157 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/04/2014
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