258-ELEFANTES ASSALTANTES- Viagens

— Gente, corre no pomar, tem uma cobra na mangueira. — Esbaforido, Zé Pina entrou pela sala, assustando todo mundo.

— Onde? Onde? — Perguntaram. Tio Alfredo, caçador experiente, correu ao seu quarto e veio com a cartucheira na mão:

— Me mostra que eu acabo com a raça.

— Cuidado, ela quer pegar o Miauzim.

Correram para o pomar. Zé Pina ia à frente, como desbravador, avisando:

— Cuidado que ela pode ter descido da mangueira.

Tio Alfredo segue, já com a arma de caça preparada para o disparo. Era bom na mira e não iria perder a oportunidade de acabar com a ameaça e ao mesmo tempo, mostrar sua perícia.

— Lá tá ela! Lá naquele galho, tá vendo?

Todos puderam ver, através da galharia nua de folhas. Uma cobra vermelha e preta, rodilhada num galho dos mais finos, preparando-se para abocanhar o gatinho que, hipnotizado, estava na ponta do galho, o rabo levantado, os pêlos ouriçados. Imóvel. Esperando o bote.

Tio Alfredo levantou a arma, firmou no ombro. Nem mirou direito. A curta distância dispensava maiores cuidados.

P U M !

A cabeça da cobra desapareceu, substituída por uma mancha vermelha. No mesmo instante, afrouxou a rodilha que a mantinha presa no galho e caiu. Zé Pina saltou de lado, pegando um pedaço de pau, disposto a acabar de vez com o réptil.

— Pode deixar Zé, essa aí tá liquidada. — Tio Alfredo tinha certeza de sua pontaria. Os demais assistentes, assustados, aproximaram-se para ver o que restara da coral: metro e meio de corda grossa coberta pelas cores negra e vermelha, sem cabeça, a cauda ainda se agitando nos últimos estertores.

— Deixa por minha conta, eu enterro ela. — Zé Pina falou, sem se dirigir a ninguém.

Passado o susto, algumas das pessoas voltaram à sala, retomaram seus assuntos, outros ficaram zanzando pelo pomar.

Era domingo de tarde no sítio de Tio Alfredo. Situado a cerca de meia légua da cidade, era visitado semanalmente pelos parentes: irmãos e irmãs, cunhadas (as irmãs eram solteironas) e a chusma de sobrinhos. Enquanto os adultos conversavam na varanda ou na sala de visitas, a garotada se espalhava pelo pomar, iam até o moinho de fubá, e os mais afoitos aventuravam-se a entrar no pocinho, formado por pequena represa.

— Zé Pina, dá uma olhada nas crianças, vê o que elas tão aprontando por aí. — Tia Rosa determinava. Zé Pina era um agregado do sítio. Meio retardado, muito serviçal, de boa índole, estava sempre de olho em tudo o que acontecia.

O episódio da morte da cobra coral não terminou com o “enterro”, do qual se encarregara Zé Pina, assistido pelas crianças. Tio Ramiro, um dos mais assíduos visitadores do irmão, era um amante dos animais. Gostava tanto que tinha em casa, na cidade, quatro cachorros, além de diversos passarinhos e um papagaio proseador. Enquanto Zé Pina fazia a cova, ali mesmo no pomar, para enterrar a coral, ele ficou observando o Miauzim no alto da árvore.

— Vem bichano, desce daí. — Conversava com o gato. — O perigo já passou. Vem, bichano. Miau, miau. Bichaninho, vem.

O gato, um filhote bem nutrido, ainda estava assustado. O pêlo já assentara, mas não queria descer do galho onde se encontrava. Talvez o odor da cobra, ou qualquer outro medo atávico, o impedia de descer.

— Vem, bichano. — Tio Ramiro insistia. E vendo que o gatinho não descia, foi, ele mesmo, tirá-lo do galho.

Homem da cidade, alfaiate acomodado à sua máquina de costura ou aos seus caseados à mão, sempre sentado, revelou-se um desajeitado quando começou a subir na mangueira.

— Deixa comigo, tio, que eu trago o Miauzim de volta. — Carlinhos se prontificou.

— Que nada, já tou aqui em cima, vou pegar o bichano.

Subindo com dificuldade pelos primeiros galhos da gigantesca mangueira, foi se emaranhando pela galharia acima. Logo ficou entalado entre os galhos, o corpanzil não ia nem para cima, nem para um lado nem para o outro. Miauzim assistia, impávido, à tentativa de resgate. Tio Ramiro, paralisado pela galharia, não alcançava o gato, por mais que estendesse o braço. Zé Pina, cumprida a missão de enterrar a cobra, chegou para ver o alfaiate encalacrado na ramagem.

— Desce daí, seu Ramiro. O gato logo vai descer. Não carece de pegar ele.

Ramiro se deu conta que não podia sair de onde estava.

— Num posso, Zé. Tou entalado.

Zé Pina, expedito, logo estava de novo na sala de visitas:

— Gente, corre no pomar. Seu Ramiro tá entalado na mangueira.

De volta correram os visitantes às árvores. Desta vez, para apreciar um espetáculo hilário: tio Ramiro entalado nos galhos da mangueira. Mais uma vez, tio Alfredo já vem munido com o necessário para tirar o cunhado daquela triste situação. Traz uma escada que vai encostando na árvore. Sobe os degraus e chega perto do alfaiate.

— Zé Pina, busca o serrote — Grita, ao ver que tem de cortar alguns galhos.

Zé Pina chega com o serrote. A turma se afasta, pois começa a cair serragem na cabeça do pessoal.

— Zé Pina, traz o rolo de corda. — De novo parte o Zé, que vem em seguida com a corda.

— Vamos ter de amarrar o compadre Ramiro, senão ele acaba caindo. Sobe aqui, Zé, me dá uma mão.

O resgate do amante dos animais durou mais de hora. Todos davam palpites. A criançada fazendo gozação da situação. O circo estava montado. Nesse meio tempo, Miauzim desceu da árvore, por iniciativa própria, e ficou por ali, como que apreciando o espetáculo. Por vezes lambia as patas. Os garotos quiseram pegá-lo, mas ele se esquivou.

Finalmente, eis Tio Ramiro, são e salvo, ao pé da ponderosa árvore. Sem se dar conta da situação ridícula pela qual passara, dirigiu-se ao bichano:

— Vem com o titio, vem, bichaninho...

De um salto, Miauzim pulou por sobre os galhos serrados, trepou pelo tronco da mangueira e se colocou na ponta do fino galho, exatamente onde estava quando a história começou.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 18 DE DEZEMBRO DE 2003

CONTO # 257 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/06/2014
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