346-O FUGITIVO-Episódio do golpe mlitar de 1964

Não era nem mesmo comunista convicto. Estava mais para livre-pensador, filósofo caipira, com idéias que propalava nas conversas de banco de jardim. Na Praça da Matriz, ns manhãs de domingo, provocava reunião de meia dúzia de admiradores ou adversários, que se compraziam em discutir qualquer assunto, desde a falta de capina das ruas da cidade até as últimas medidas administrativas do governo federal ou a economia mundial. Tudo sem qualquer resultado prático. Era só a discussão pelo prazer de discutir.

Leôncio Canavieira sempre fora radical nas suas atitudes e “exagerado” na suas narrativas, nas quais ele sempre era o personagem principal. Nos estudos, não passou do curso ginasial, terminado a custo. Não que fosse mau aluno. O caso é que era muito questionador, vivia perguntando aos professores coisas completamente fora do currículo, e isto não o ajudava em nada nas salas de aula.

O pai, fazendeiro de café e de gado de engorda, queria que o filho estudasse para “doutor”. Advogado, médico, engenheiro, qualquer estudo que proporcionasse ao filho um diploma, um anel no dedo e o título de doutor. Mas Leôncio não se entusiasmava com estudo. Gostava de discutir pelo simples prazer de discordar da opinião de todos.

As reuniões da praça da matriz, infrutíferas na prática, só podiam dar no que deu: com o golpe de ’64 e a posterior caça a todos elementos considerados “comunistas”, o grupo dispersou. Leôncio se dava muita importância, mais do que realmente tinha. "Se não sumir, estou ferrado. Aqueles udenistas desgraçados de certo já me denunciaram". Assim pensando, tratou de se refugiar na fazenda do pai.

Nos dias agitados que sucederam ao golpe militar, notícias e boatos tinha o mesmo valor, correndo céleres por todos os lados. Tinoco, serviçal de confiança, levou um recado do pai de Leandro:

— O coroné mandou falá que tão esperando um pelotão do exercito, que vai prendê tudo quanto é cumunista. Diz qui é pro senhor ficá bem quietinho aqui, num aparecê na cidade de jeito ninhum.

Pensando, pois, estar na lista dos procurados, imaginou um plano de fuga. Como gostava de peripécias, idealizou num plano mirabolante para escapar dos agentes que, por certo, chegariam a qualquer momento até o seu esconderijo.

Pensou em fugir escondido nos vagões de carga do trem de ferro. Os trilhos da estrada de ferro passavam pela Vargem do Rio Torto, distante cerca de duas léguas da fazenda do coronel Canavieira. Na Curva da Amendoeira é um bom lugar pra esperar o trem da seis e meia.

O trem passava lento na tal curva, em função da acentuada volta que fazia, contornando o rio. Era correr um pouco e agarrar-se nos ganchos dos vagões, alçar-se e entrar num dos vagões de carga, cujas portas nem eram trancadas.

Se pensou melhor fez. Arrumou numa pequena sacola os pertences pessoais, vestiu uma roupa escura e confortável, calçou as botinas de meio cano, cobriu a cabeça com uma boina ao estilo de Che Guevara e se pôs a caminho ao entardecer. A noite desceu depressa, pois tarde estava nublada, ameaçando chover. Como, de fato, choveu antes que Leandro chegasse à gameleira que dava nome ao local.

Enquanto esperava, o fugitivo foi aperfeiçoando seu plano de fuga. Será melhor se eu subir na amendoeira e pular de seus galhos sobre os vagões, quando o trem passar. Assim, ninguém poderá me ver. Subiu, pois, pelos galhos da imensa árvore, que estavam escorregadios pela chuvarada recente. Aguardou com paciência a vinda da composição, que saía da estação de Itamarutaca pontualmente às seis e vinte da noite.

A noite estava escura, a chuvarada passara mas persistia uma garoa fina. Leôncio ouviu ao longe o apito da locomotiva. Alguns minutos depois, do alto da árvore, viu as faíscas lançadas pela chaminé da máquina. A composição vinha devagar. Aguardou, agora com alguma ansiedade, a passagem da composição. Como demora! Parece que está até parando. O trem veio vindo, aproximando-se e Leôncio foi se preparando para o salto. Coisa de pouca monta. Vai ser mais fácil do que saltar no lombo de burro chucro, pensou o aventureiro. Atrás das centelhas da máquina, apareciam os vagões, cujos tetos lisos brilhavam devido à garoa constante.

Aguarda o momento propício. Tem de ser bem no meio de um dos vagões. Lá vem!. Ele pula bem no meio do segundo vagão, num salto seguro, caindo de quatro sobre a parte superior. Tenta agarrar-se com as mãos no teto liso e arredondado. Os pés e joelhos estão firmes, mas não encontra suporte para as mãos. Tudo liso devido à umidade do tempo. O trem joga para a direita, saindo da curva, enquanto que o corpo de Leandro, sem apoio das mãos, inclina-se perigosamente para a esquerda. Consegue agarrar a fina canaleta de metal que corre ao lado do vagão, que não suporta o peso de seu corpo e se quebra. Os destroços de metal cortam a palma da mão. A dor aviva sua atenção. Mas sem qualquer apoio, vai escorregando-se sobre a superfície lisa. Ao chegar na extremidade do vagão, sem nada em que se apoiar, cai no espaço entre os dois vagões. Bate com a cabeça na madeira e nos parafusos. O sangue espirra da testa e tolda o olho direito. Os pés batem na pequena plataforma de metal. Sente um empurrão para fora: uma grossa mangueira, tendo escapado do gancho, bate em seus ombros. Cai pela lateral esquerda, entre dois vagões. O pé esquerdo, num átimo de segundo, fica por sobre o trilho, e é inexoravelmente esmagado pela roda de ferro do vagão que vem a seguir.

Um urro de dor ecoa na noite, pelos campos da grande várzea, abafado pelo clangor das ferragens e engrenagens da maquinaria. Leôncio deixa o corpo rolar por sobre a brita do leito. Desmaia antes de atingir o renque de erva-cidreira que acompanha o leito da ferrovia.

Foi encontrado na manhã seguinte, ainda desmaiado, quase morto. Hospitalizado, não se lembrava (ou fingia não se recordar) dos acontecimentos da véspera. Seu restabelecimento foi lento. Aos poucos a memória daquela trágica noite foi voltando.

Quando finalmente se lembrou totalmente do que acontecera naquela noite, sua frustração foi total. Seu ego ficou profundamente ferido. Pois jamais foi procurado, quer no hospital, quer na casa do pai, onde permaneceu em recuperação, pela polícia ou por qualquer elemento das “forças revolucionárias”.

ANTÔNIO GOBBO =

Belo Horizonte, 26 de maio de 2005

Conto # 346 da série Milistórias –.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/08/2014
Código do texto: T4905981
Classificação de conteúdo: seguro