374-A PRINCESA IMORTAL - 1a. parte

— Agora temos certeza, professor. Todos um homem os habitantes da vila estão contaminados. — Descendo do jipe com vigor, o médico tem pressa em relatar o resultado de sua visita à pequena vila mexicana.

— O pior é que muitos fugiram. Foram para outras vilas, para cidades maiores e até para a capital. Com certeza levando o vírus da peste. — Acrescenta a doutora Berenice, descendo pelo outro lado do veículo.

O tom de desânimo evidencia não só cansaço mas também a sensação de impotência em toda a equipe de cientistas. .

— Bem, doutor Mílton, estamos fazendo o possível e o impossível. — Responde o professor Medeiros, o chefe da equipe. — O caso é que as autoridades aqui são muito desorganizadas. Deviam ter estabelecido um cordão sanitário, isolando toda esta região do resto do país. Conforme nós fizemos no nosso acampamento e no sítio arqueológico.

Enquanto conversam, Medeiros, o chefe da equipe, o médico Milton e a doutora Berenice entram na enorme barraca montada para abrigar o laboratório e o material de pesquisa. Estão acampados a leste da cidade de Chatumal, em uma área usada em tempos normais como campo de futebol. Devido ao virulento surto da estranha doença que grassa a região, o campo não é usado pelos jogadores e agora serve como base para a equipe de médicos, enfermeiras, laboratoristas e auxiliares que estudam a epidemia.

Chatumal é uma pequena cidade situada na península do Iucatã, no México. Tornou-se tristemente famosa por ser o local onde se registraram os primeiros casos da estranha doença que se espalha rapidamente por todo o México. As primeiras notícias da ocorrência de uma doença desconhecida, mortal, chegou ao conhecimento dos cientistas através de muitos turistas que foram infectados quando visitavam os arredores de Cancun, um dos mais famosos locais de lazer do mundo. Imediatamente a Organização Mundial de Saúde tomou todas as providências para debelar a epidemia. A escolha dos cientistas e médicos recaiu sobre a equipe de especialistas em doenças tropicais do professor Carlos Medeiros. São todos brasileiros, selecionados entre os melhores da Fundação Oswaldo Cruz, o mais avançado instituto de pesquisa na área de doenças tropicais em todo o mundo. Recebem ajuda do governo do México, mas não são bem vistos pelos desconfiados habitante locais. Os brasileiros, além de estabelecerem regras rígidas de higiene à pequena comunidade de descendentes dos maias, preconizam um isolamento sanitário total para toda a região. Daí, a animosidade dos habitantes de Chatumal.

À falta de local apropriado e isolado para a pesquisa na pequena cidade, foi erguido um enorme acampamento no campo de futebol. O local foi escolhido por estar dentro da região onde apareceram as primeiras vítimas. O olho do furacão, conforme diz o professor. Guimarães. Além da barraca que serve de laboratório, foram levantadas mais quatro, para alojamento do pessoal, depósito de material e cozinha com refeitório. As barracas de cor ocre se destacam entre o intenso verde da floresta tropical que cerca o acampamento por todos os lados. .

A tarde descamba. As cores vermelha e laranja do poente contrastam com o lilás na fimbria do horizonte a leste. As sombras se alongam, a noite está chegando. A quietude domina o ambiente. No laboratório, os dedicados pesquisadores acendem poderosas lâmpadas, indicando que prosseguirão noite adentro no trabalho.

— Bem, vou descansar um pouco, antes do jantar. — Diz o chefe da expedição.

Caminhando lentamente em direção a barraca dos homens, o professor Medeiros deixa o doutor Milton Guedes imerso em seus pensamentos. Sozinho no centro do acampamento, não sente disposição para nada. Relembra os últimos acontecimentos que o trouxeram para o estranho mundo dos Maias.

A presença da equipe de cientistas e pesquisadores fora solicitada pelo govêrno do México, para estudar uma epidemia que surgira há alguns meses na Península de Iucatan. No princípio, a virose não chamou a atenção das autoridades. Mas quando alguns hóspedes dos luxuosos hotéis de Cancun apresentaram os sintomas da fatal moléstia, a notícia foi divulgada com estardalhaço. Os médicos locais e até da Cidade México não conseguiram estabelecer a origem ou as causas da epidemia. Os sintomas se apresentavam leves, a princípio: dor de cabeça e indisposição geral, como uma gripe comum. Mas vinte quatro horas após sobrevinham tremores por todo o corpo, manchas escuras (como hematomas) se espalhavam pelo corpo das pessoas afetadas. A dor de cabeça passava a ser insuportável. A morte ocorria em noventa por cento dos casos até 36 horas do início dos sintomas.

Que droga! — pensa o doutor Guedes. — se pelo menos não tivesse ocorrido a saída de habitantes de Chatumal. A fuga dos turistas infectados também com que a epidemia escapasse totalmente do controle. Ainda bem que Cancun está agora completamente isolada.

O isolamento sanitário na região prejudicou seriamente os grandes hotéis e complexos turísticos de Cancun. A queda de turistas fora enorme.

Nossas pesquisas não têm rendido nada. Já examinamos centenas de espécies de insetos e plantas. — Guedes faz uma avaliação rápida dos trabalhos da equipe. — Já verificamos até os locais históricos, os templos e as pirâmides da antiga civilização dos Maias. Tenho quase certeza de que vamos encontrar a explicação da origem dessa doença nas velhas ruínas.

A intuição do doutor não é mero palpite. A constatação de que a peste ataca com mais virulência, e em número muito maior, os nativos e os mestiços, aqueles que têm consangüinidade com os Maias, lhe dá quase certeza da origem misteriosa legada da antiga cultura. Ainda mais sabendo que os mexicanos são muito mesclados, o que leva a temer que a maior parte da população mexicana corre risco de ser contaminada pelo vírus fatal.

Na manhã seguinte, após uma noite mal dormida, o Dr Milton resolve ainda mais uma vez pesquisar o sítio arqueológico que fica entre Chatumal e Cancun.

— Vou até as ruínas de Melxepe. — Avisa ao professor Medeiros.

— Ok. Mas tome cuidado com a estrada. No meio da floresta existem trechos muito perigosos.

Diferente da placidez do Professor Medeiros, o doutor Milton é agitado. Não gosta de ficar parado, está sempre em movimento. É um homem de porte médio, magro e ágil, de boa aparência. Aos trinta e poucos anos, é o tipo dos antigos galãs de novelas: cabelos pretos, a tez morena pela exposição ao tempo, bigode fino. Olhos penetrantes, perscustradores. Sobe no jipe num salto e logo dispara o veículo pela senda através da floresta fechada.

Melxepe é um sítio arqueológico, domínio do professor Carson, inglês, arqueólogo que pesquisa a região para a Unesco. Tem magnífica pirâmide, outrora dominada pela floresta mas totalmente limpa e reconstituída, bem como diversas outras ruínas ao redor, que revelam a magnífica cidade habitada pelos Maias muito antes da chegada dos europeus ao Novo Mundo.

É o próprio professor Carson quem recebe o medico. A sua presença se contrapõe flagrantemente com a de Guedes: Deve ter mais de 70 anos, cabelos brancos, os olhos muito azuis sob espessas sobrancelhas também de hirtusos pelos brancos. Um vasto bigode esconde a boca e dá feições leoninas ao rosto corado pela luz tropical. Usa um capacete de explorador, com a aba enfeitada por uma tira de pele de onça.

— Well...well... Eis nosso doutor brasileiro de volta. Ainda continua procurando a origem misteriosa da doença na história dos Maias?

— Bom dia, professor Carson. — Embora o conhecimento seja recente, uma cordial amizade já se estabeleceu entre ambos. — Sim, tenho quase certeza de que a origem da peste está nestas ruínas.

— Ora, doutor, aqui já não há sinal de vida há mais de cinco séculos. Desde que a civilização dos Maias desapareceu, a região permaneceu desabitada. Tudo aqui esteve abandonado, morto, por centenas de anos. Até que o sítio foi redescoberto e está sendo reconstituído.

— Acho que a peste está ligada à raça dos Maias. Senão, como explicar que ataca e mata de preferências os mestiços, pessoas que têm no próprio sangue resquícios genéticos daquela civilização?

— Talvez uma predisposição atávica para contrair a doença? — O arqueólogo pergunta, como que afirmando.

— É isso mesmo! Esta predisposição é evidente. E aqui pode se encontrar a pista para a cura.

Enquanto conversam, caminham entre as ruínas. Milton traz a tiracolo a câmara digital, com a qual vai fotografando tudo que lhe desperta o interesse . Além de uma pirâmide de mais ou menos trinta metros de altura, de degraus íngremes, há diversas outras construções em ruínas, as quais abrigam peças da época da antiga civilização. Chegam à abertura da pirâmide, um vão sem porta que penetra na imensa mole de pedras.

— Que abertura é esta?

— Por aqui os sacerdotes maias entravam na grande tumba subterrânea, onde depositavam os corpos dos mortos mais importantes. Vamos lá dentro, quero lhe mostrar um achado recente.

O professor adentra-se pela passagem, que é iluminada pela luz de sua possante lanterna. O doutor Milton segue com cuidado, descendo os degraus de pedra. Um cheiro forte de mofo e material em decomposição, aliado à poeira que tudo cobre, faz o médico espirrar diversas vezes.

— Esta alergia... — começa a dizer, quando desembocam num amplo salão circular.

O arqueólogo gira a lanterna, iluminando o recinto, passando pelas paredes, algumas pedras colocadas ao fundo, sob forma de altar. Vasos de cerâmica e caixas de madeira ou cerâmica espalham-se pelo chão. Encostadas nas paredes, diversas formas assemelhadas a caixões funerários.

— Mas... é um verdadeiro cemitério subterrâneo!

— Sim, as caixas que você vê encostadas ao longo das paredes são urnas funerárias. Os Maias sabiam como mumificar os cadáveres, que colocavam nestas urnas. Infelizmente, apenas umas poucas múmias chegaram intactas até nossos dias. Pelos desenhos nas urnas podemos identificar os mortos. Inclusive, esculpiam nas tampas as figuras dos mortos.

Milton fotografa com perícia todo o recinto. Aproxima-se de uma caixa retangular. Entalhes em baixo relevo adornam os lados. Na tampa há a representação de uma cabeça de mulher.

— Que beleza de escultura! Não me diga que entre os Maias havia mulheres assim tão bonitas.

— Este é o sarcófago de uma princesa.. Não sabemos se a reprodução é fiel ao modelo.

Milton fica fascinado pela escultura, que fotografa de todos os ângulos.

— Quem teria sido essa linda mulher.?

— Segundo os registros aí mesmo, no sarcófago, trata-se da Princesa Calax-Malpek-Petel. Diz aí que ela era predestinada a salvar o povo Maia. Mas tudo não passou de lenda, já que os Maias desapareceram misteriosamente. .

— Se estivesse aqui, agora, bem que poderia providenciar a salvação dos descendentes, livrando-os da peste.

Impressionado com a beleza do rosto esculpido na tampa do sarcófago, Dr. Milton não se interessa pelas outras explicações do arqueólogo. Saem da tumba pelo mesmo caminho. Ao se despedirem, Milton confessa ao arqueólogo:

— Estou cada vez mais convencido de que a chave para a cura da epidemia está aqui.

O arqueólogo sorri, incrédulo.

— Pode voltar quando quiser, doutor. Terei o máximo prazer de lhe mostrar toda a área de recuperação da cidadela Maia.

O professor Carson fica intrigado com o interesse do doutor Milton pela civilização dos Maias, e pela idéia de que ali, nas escavações, poderá estar a pista para encontrar a cura da misteriosa epidemia que se espalha pela península do Iucatã.

Pouco sei de medicina, mas é pouco provável que um vírus ou bactéria, ou qualquer coisa parecida, possa ter sobrevivido a tantos séculos, e reaparecer agora, centenas de anos depois.

Folheando seus cadernos de registros diários sobre os trabalhos no sítio arqueológico, verifica que há uma coincidência entre o aparecimento do surto da doença e a abertura da tumba subterrânea, construída sob a pirâmide.

Procurando mais indícios, o arqueólogo consulta livros e anotações sobre a importante civilização e o povo Maia. Seu interesse agora se concentra no desaparecimento até hoje inexplicável daquele povo.

Tendo habitado a península por quase dez séculos, entre os anos quinhentos até meados do século quinze, os Maias desapareceram sem deixar vestígios. Há muita controvérsia e diversas teorias, na tentativa de explicar como uma civilização de quase dez séculos possa ter desaparecido sem deixar indícios de sua extinção. .

Sim, uma peste poderia ter sido a causa. Mas será que as múmias descobertas poderiam ser portadoras de vírus ou bactérias, que agora estão se propagando pela região? — Pergunta-se o arqueólogo.

Examinando as fotos em seu laptop o doutor Milton fica cada vez mais fascinado com os restos arqueológicos. Resiste o quanto pode aos impulsos de voltar à tumba sob a pirâmide. Contudo, uma força irresistível o domina e dirige seu pensamento para o local onde se encontra o sarcófago da princesa Maia. Não desejando confessar ao amigo arqueólogo a atração irracional, dirige-se para o sítio sem avisar a ninguém. Também não quer revelar sua intuição aos colegas, por isso sai à noite, usando o jipe, cujos faróis só acende quando está dentro da floresta. .

Deixa o veículo a uns dois quilômetros das ruínas. A escuridão é densa. A custo enxerga os contornos das construções semidestruídas. Leva uma lanterna, que só usa ao se adentrar pelo corredor que o leva ao recinto fantástico do cemitério subterrâneo dos Maias.

O estranho odor que sentiu quando entrou ali pela primeira vez, torna-se mais forte. Milton usa um lenço para antepor às narinas. Ao chegar o recinto circular, dirige a luz da lanterna diretamente para a parede onde esta encostado o sarcófago com a efígie da princesa. Mais uma vez se deslumbra com a beleza do rosto da imagem feminina. O cheiro nauseante quase desaparece quando se aproxima do sarcófago. Curioso e obcecado, o doutor tenta remover a tampa do sarcófago. Não consegue, pois não há uma fresta sequer. Coloca a lanterna no chão e tenta, com as duas mãos, puxar a tampa. Com o tremendo esforço balança o sarcófago, que escorrega pela parede, tombando no chão. Usando a lâmina da faca de caça que sempre traz consigo, força a lâmina sob a tampa. Parece estar lacrada, mas só pode ser aberta por aqui, pensa ao forçar a abertura. Ouve um estalido, e sente que a tampa está deslocada. Com esforço sobre-humano, consegue empurrar a pesada tampa, abrindo um vão de mais ou menos vinte centímetros. É atingido por um perfume forte e doce, inebriante, vindo de dentro do sarcófago, que aspira com satisfação. Sua força se multiplica e empurra mais ainda a tampa, que cede aos esforços e cai de lado. Pega a lanterna no chão e ilumina o interior do sarcófago. O perfume forte o inebria. Zonzo, procura ver os restos da múmia que um dia foi a Princesa dos Maias. A tonteira é enorme, sente tudo girar. A lanterna escapa de sua mão.

Um rodamoinho violento e forte faz seu corpo girar. O ambiente se ilumina com luzes de tons sobrenaturais. Ouve sons de uma música primitiva. Cadência e ritmo se aceleram, acompanham o girar constante que perturba seus sentidos. Está no ar, rodopiando como uma pena.. Luzes e sons misturam-se, numa velocidade incrível. Desmaia numa explosão de luz. E o vórtice de energia o transporta para outra dimensão.

a continuar...

ANTONIO ROQUE GOBBO

conto # 374 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/08/2014
Código do texto: T4931549
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