565-FOGO CONTRA ÓDIO -

Ao sol forte do meio dia, a pequena cidade parece dormitar. Old Saguaro espraia-se pelas terras secas, cercada por grandes ranchos de criação de gado. O Rio Clear proporciona água necessária para os habitantes da cidade, para os moradores e o gado das fazendas à sua margem. Em uma seção do condado a tribo de índios Blackfoot, chefiada pelo idoso e sábio Hapack tem o seu lugar garantido pelo bom relacionamento entre os brancos e os peles-vermelhas. Mas sob a paz aparente e a tranqüilidade de um quadro muito colorido, interesses e ambições se amontoam e podem estourar a qualquer momento.

Tim Grogan, o ambicioso e inescrupuloso proprietário de Cactus Range planejava se livrar dos índios Blackfoot que habitavam o vale do Rio Clear. O rio fazia um remanso suave nas proximidades do local onde a tribo habitava. Para Grogan, a permanência da tribo era um obstáculo que se interpunha entre sua fazenda e as águas cristalinas, forçando o gado a uma longa volta para o norte ou para o sul, a fim de beber água. A ambição desmedida de Grogan não lhe permitia ver as vantagens da construção de um canal que levasse água para o seu gado. Projeto que já havia sido iniciado, em épocas anteriores à posse da fazenda por Grogan, mas que ele não dera continuidade.

Mantinha dois capangas a seu serviço, só para surrar os índios que fossem encontrados sozinho, numa ação clara de intimidação e terror. Tudo correu bem até os dois capangas encontrarem com um índio de olhos azuis, chamado Águia Selvagem, que significa Águia Selvagem.

Era um índio diferente dos demais. Além dos olhos azuis, que era um tabu para sua tribo, tinha amestrado uma águia, que o acompanhava para onde quer que fosse. Devido aos seus olhos azuis, era um proscrito na tribo dos Blackfoot, na qual nascera. A mãe era índia e o pai, desconhecido, teria sido evidentemente um homem branco.

Foi numa manhã clara que Águia Selvagem encontrou-se inesperadamente, numa curva da estrada, com dois capangas de Grogan. Ao ser ameaçado por Bill Snake e Tom Windy, Águia Selvagem os enfrentou com murros e pontapés, e já tinha derrubado os dois, quando Snake sacou do seu Colt. Mas a águia do pele-vermelha, que pairava num vôo tranquilo acima do grupo de contendores, num mergulho certeiro, agarrou o punho do bandido, neutralizando o perigo de morte para seu dono.

Segurando Snake pela camisa, Águia Selvagem mandou o recado ao patrão dos capangas:

— Diga a Grogan para deixar os índios em paz. Ou o rancho dele será arrasado.

O insolente bandido, apesar de ameaçado pelo punho pestes a esmurrá-lo no rosto, respondeu:

— Sim, vou dizer ao Grogan, e ele vai expulsar toda a sua tribo para as montanhas.

Os bandidos partiram em suas montarias, embrenhando-se pela trilha entre os álamos.

Águia Selvagem, ante a resposta insolente do capanga, pensou: É melhor falar com o Chefe Hapack. Ai vem barulho.

Hapack, chefe da tribo Blackfoot, escutou em silêncio a ameaça feita pelo capanga Bill Snake. Sorrindo para Águia Selvagem, disse:

— Você nos honra avisando nossa tribo. Doravante, você poderá morar conosco. A sua coragem é mais forte do que o tabu dos olhos da cor das águas do lago.

— Obrigado, chefe. — Respondeu o índio proscrito. — Mas não posso aceitar seu convite.

Águia Selvagem partiu rumo à pequena cidade de Old Saguaro, onde procurou o advogado Mark Loong, de quem era amigo, e narrou-lhe o incidente.

— Estou preocupado, pois Grogan pode, sim, aborrecer muito os índios, e eles reagirão de jeito que nem é bom pensar. — Falou ao advogado.

— Grogan é um tolo. — Respondeu o advogado. — Acusa os índios de serem ladrões de gado. Mas se os índios roubassem realmente, ele nunca saberia de nada.

— Os índios precisam de quem os defenda de acordo com a lei. Estou disposto a isto. — afirmou o índio ao advogado.

— Pode deixar comigo, Águia Selvagem. Amanhã mesmo vou despachar com o Juiz Grant e vou pedir um mandato de segurança contra Grogan, em nome da tribo do chefe Hapack.

Na manhã seguinte, no fórum local, o Juiz mandou chamar Grogan para lhe avisar do mandato de segurança que estava expedindo em favor da tribo.

— Esse mandato não impedirá meus homens de levar o gado ao rio. — O truculento Grogan enfrentou o Juiz com desrespeito. — Estamos num verão muito seco e tenho mil cabeças de gado para dar de beber. Mostre o mandado para o gado, talvez parem para ler, talvez não.

— Tudo bem, explicou Mark Loong. Leve seu gado para beber no rio bem abaixo do local onde está a tribo. Assim não poluirá a água que os índios usam para beber e tudo o mais.

Grogan não se intimidou. Olhando para o advogado, lhe disse, na presença do juiz:

— Seu advogado de merda! Não vou dar voltas com meu gado para dar de beber. A água é um direito de todos. E lá vai um conselho: da próxima vez que me convocar, é bom que venha armado.

Grogan saiu pisando forte com suas botas rústicas, gritando para seus capangas:

— Acompanhem-me. Vamos dar de beber ao gado.

Loong avisou Águia Selvagem sobre o ocorrido no tribunal:

— É melhor os índios ficarem atentos, pois Grogan está muito irritado. E, por favor, mantenha-me informado sobre qualquer coisa de extraordinário que você souber. Vamos trabalhar juntos para evitar um confronto entre os índios e os capangas de Grogan.

Águia Selvagem montou um posto de observação no alto da montanha, do qual podia descortinar todo o vale abaixo, onde a tribo vivia numa aparente placidez, mas ameaçada pelos interesses de Grogan.

— Lá está o gado de Grogan. — Falou consigo mesmo ou com a águia que estava ao seu lado. — Ele está reunindo tudo na trilha que passa direto pelas terras onde os Blackfoot estão. Basta um estouro da boiada e os índios serão massacrados.

Águia Selvagem desceu rapidamente à cidade e contou ao advogado Mark o que vira e ambos se dirigiram para a tribo. No caminho, o advogado explicou ao índio proscrito:

— A tribo tem direitos sobre a terra onde moram, bem como ao uso do rio. Vamos partir para a defesa desses direitos. — E contou ao índio o que poderiam fazer para frustrar Grogan.

As sentinelas dos índios observaram a chegada do advogado Mark Loong e do irmão proscrito Águia Selvagem. Ao alto, pairando sobre tudo e sobre todos, a águia do índio planava serenamente.

Quando os dois cavaleiros chegaram à tribo, o chefe já estava esperando-os.

— Sim, nossas sentinelas observaram que Grogan ajuntou o gado todo na garganta da montanha que está a oeste. O que ele está pretendendo?

Águia Selvagem explicou:

— Ele planeja estourar o gado sobre a trilha e avançar sobre a aldeia. Vocês serão massacrados.

— Precisamos de vinte guerreiros voluntários. — Explicou o advogado ao chefe pele-vermelha. — Se fizerem como eu disser, o plano de Grogan voltará contra ele mesmo.

Imediatamente os guerreiros foram convocados e seguiram para o vale, Mark e Águia Selvagem na liderança da coluna. Ao chegarem num determinado ponto onde a garganta se estreitava todos apearam e Mark falou aos índios voluntários:

— Vocês percorram este lado da montanha, onde tem muito capim seco. Tragam o capim até aqui, e façam um amontoado contínuo, de um lado a outro da garganta. Cuidado para não entrarem nas terras de Grogan. Fiquem só do lado de cá.

O gado estava inquieto, mas os vaqueiros de Grogan não eram vistos. Estavam escondidos, esperando a ordem de Snake e Windy, para açular o gado na direção da terra dos índios.

— Atenção! — avisou o advogado. — O gado só poderá ser repelido quando entrarem nas terras dos índios. Só então é que poderemos agir.

Do alto de uma pedra, Mark Loong e Águia Selvagem observavam.

Não demorou muito, apareceram os vaqueiros de Grogan. O gado começou a caminhar pela garganta, na direção da tribo.

— A boiada já entrou nas nossas terras! — Gritou Águia Selvagem. Quando avançaram sobre as terras indianas, o advogado deu a ordem:

— Ponham fogo no capim!

Nos seus pôneis ligeiros, os índios tocaram fogo em diversos pontos da alta pilha de macega, palha e pedaços de cactos ressequidos. A brisa que soprava do rio levantou a fumaça e levou calor na direção da boiada.

Os capatazes boiadeiros logo viram que os índios haviam feito uma verdadeira barragem e que o gado voltava-se em disparada.

— Estourou! Estourou! — Gritaram —Vamos pra cima! Pra cima do morro!

Esporeavam os cavalos e os incitavam com gritos: Eia! Eia! Vamos!

A manada voltou-se pelo vale abaixo, na direção do rancho de Grogan. O barulho de milhares de cascos batendo sobre solo seco era como um trovão ensurdecedor. Os vaqueiros que conseguiram manobrar as montarias para as partes mais elevadas do morro, dos dois lados da garganta, se safaram. Mas Snake e Windy, confiantes no plano, demoraram a perceber a gravidade da situação, reagiram tardiamente e foram atropelados pelo estouro da boiada.

Assustado e, sobretudo irado, Grogan tudo assistiu, pois estava no alto de um penhasco e viu quando o gado passou pelo rancho. As edificações mais baixas desapareceram numa nuvem de pó. O moinho de vento e a caixa d’água, mais elevados, ainda resistiram algum tempo, mas acabaram por tombar.

— Loong filho duma puta. Foi ele quem orientou os índios. Ele estava lá, juntamente com aquele outro cachorro de olhos azuis. Eles vão me pagar, os desgraçados.

Ficou observando a desolação do que fora seu grande rancho.

Também Loong e Águia Selvagem observavam a terra arrasada pelo gado.

— O grande Grogan já não é mais... grande. Seu rancho Cactus Range não vale mais nada. E o gado se dispersou. Ele está perdido. — Disse Águia Selvagem.

Os dois se afastaram do local. Os índios voluntários voltaram para a tribo. O local ficou deserto novamente.

Mas Grogan não desistia assim tão fácil. Reuniu seus vaqueiros e o bando foi na direção da cidade.

— Vou dar a Loong o que ele merece. — Ameaçou enquanto cavalgava a frente da quadrilha de vaqueiros.

Loong e Águia Selvagem seguiam juntos, a caminho de Old Saguaro. A águia mascote do índio os seguia, planando no alto.

Numa bifurcação do caminho, toparam com Grogan, à cabeça de sua tropilha de vaqueiros, todos armados.

Grogan sacou da arma e começou a gritar para os dois amigos:

— Dupla de cachorros. Vou liquidar com vocês.

— Não faça isso, Grogan. — falou o advogado, em tom persuasivo. — Você poderá se arrepender.

— Jamais me arrependerei de mandar você e este índio sujo para o inferno. — Empunhava a arma, já pronto para disparar, quando a grande águia caiu, num mergulho fulminante, sobre Grogan. As garras mergulharam no roso e olhos do homem, cuja arma disparou a esmo.

Na tentativa de se ver livre da terrível ave, cujas garras não saiam de seu rosto, Grogan caiu do cavalo. Os capatazes, assustados, foram imobilizados pelo revolver que Loong sacou com presteza.

— Está tudo acabado, disse o advogado. — Voltem para o rancho, ou melhor, procurem outro emprego, pois estou vendo que Grogan não vai continuar por aqui.

O índio conseguiu retirar a águia de cima de Grogan.

— Meus olhos! Aiiiiiii! Seu desgraçado, não enxergo mais nada. — Através das mãos manchadas de sangue sobre os olhos e rosto, Grogan tentava ver alguma coisa. Andava de um lado para outro, tropeçando nas pedras e dando topada no próprio cavalo.

Águia Selvagem aproximou-se de Grogan, ajudou-o a montar e colocou as rédeas em suas mãos.

— Adeus, Grogan. — Disse Loong. — Ah! Antes que me esqueça: ouvi o seu conselho. Agora, toda vez que saio para enfrentar bandidos, gente da sua laia, levo um revolver no meu paletó.

O índio deu um tapa na anca do animal de Grogan, que começou a trotar, na direção do local onde fora a poderosa fazenda Cactus Range, agora nada mais do que um campo de ruínas e desolação.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 5 de outubro de 2009

Conto # 565 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/12/2014
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