A onça-gigante 



                        O casal Ramiro e Isabel apresentava um grande contraste. Ela era pequenina e agressiva, enquanto ele parecia um gigante e tinha fama de ser homem muito valente!...
                        Também era muito respeitado e temido. Não que fosse do tipo atrabiliário, briguento, antes, talvez, devido a sua maneira de ser: caladão, carrancudo!...
                        Por causa daquele seu jeitão casmurro os pais de Elza e Nina – que haviam criado Isabel desde pequena – levaram muito tempo até consentirem no casamento, o que aconteceu quando deduziram ser a timidez do seu Ramiro a causa de não o conhecerem melhor e que a mansidão era uma das suas principais qualidades!...
                        No casamento foram muito felizes.  Seu  Ramiro tinha três filhos do primeiro matrimônio. Com Isabel não houvera filho. Mas ela amava os enteados, como se tivessem nascido dela. E eles retribuíam esse afeto!
                        Fazia já uns oito anos que o casal residia no rio Tefé.
                        Seu Ramiro vivia da caça e da pesca. Vendia couros de jacaré, caititu e onça. Ele tinha um grande saber de experiência adquirido na vivência da selva!...
                        Isabel afirmava que o marido já havia arpoado jacarés monstruosos!
                        E que vivia farejando as onças, encontrando-as onde quer que se escondessem... Sempre que ele saía para essas grandes pescarias e caçadas ela ficava receosa, pensando nos perigos que ele enfrentava.
                        Não só a caça e a pesca eram atribuições de seu Ramiro; ajudado pelo filho mais velho, de 16 anos, tratava da derrubada e queimada do roçado.
                        Isabel e os dois menores se incumbiam do plantio da mandioca, macaxeira, cará, jerimum.  Ela, também, preparava o peixe moqueado, o piracuí, o tucupi, o arubé e a caiçuma.
                        A barraca, como quase todas, era de palha: paredes e cobertura; com o assoalho de paxiúba. Tinha, apenas, dois compartimentos. Um pouco adiante da barraca ficava a casa de farinha, apenas coberta de palha, mas muito ampla; lá estava instalado o forno para o fabrico da farinha de mandioca, o polvilho, o beiju. E, dependurados, viam-se diversos apetrechos: o tipiti – para espremer a massa, de cujo sumo se fazia o tucupi -  peneiras (urupema), alguidar e outros objetos necessários à execução desses trabalhos.
                        Na frente da barraca via-se um canteiro de cheiro verde (coentro, cebolinha), quase que o único tempero usado na comida e um pé de pimenta murupi e outro de malagueta, para o preparo do tucupi e do arubé; também para comerem com o peixe. Hortaliças não cultivavam.
                        Frutas, só plantavam melancia e melão, porém frutas do mato havia muitas e eles se limitavam a colher o que a natureza havia produzido.
                        No tempo oportuno, Isabel e os filhos fabricavam a farinha de mandioca, suficiente para o consumo da família.
                        Ela dizia que o seu mais veemente desejo era deixar aquelas brenhas, para que os curumins pudessem estudar, o que não era possível porque a escola distava três dias de viagem do lugar onde a família morava.
                        Apesar dos constantes rogos de Isabel, seu Ramiro amarrava ali, dizia, ela aborrecida! Ele só procurava aceitar a possibilidade de uma mudança quando um dos membros da família era atacado pela maleita, então, prometia a si mesmo que mudaria dali, porém, mal o doente convalescia a promessa era esquecida!
                        E, assim, a família do seu Ramiro continuava lutando pela sobrevivência. Não dispunha de um mínimo de conforto e permanecia na mais triste condição de vida, mesmo que fizesse ingentes esforços para adquirir um certo bem-estar.
                        E o orçamento doméstico era sempre deficitário.
                        Também, como tantos outros habitantes da hiléia, não se queixavam de ninguém. Tinham consciência das dificuldades a enfrentar e procuravam resolvê-las, utilizando-se dos recursos de que dispunham, embora, carecessem de preparo e orientação para um melhor aproveitamento desses recursos.
                        E, não obstante, todos os esforços despendidos sabiam que os seus anseios e pedidos de ajuda não encontrariam eco na vastidão da planície despovoada!...  Daí a sua peculiar resignação!!!!
                        Seu Ramiro trazia para vender em Tefé o seu  produto  em troca de gêneros de primeira necessidade, trazendo alpargatas e outras utilidades que a família precisava. Isabel e os filhos sempre o acompanhavam, ficando na casa da madrinha Marieta, enquanto o chefe da família fazia as compras.
                        Dessa vez o casal presenteara a madrinha com um belíssimo couro de onça – sempre que vinham traziam presentes. Trouxeram também farinha de tapioca, beiju e couros de jacaré, encomendados por padrinho Lopes, pai de Nina e Elza.
                        Quando Nina viu os couros de jacaré fez um muxoxo, puxou seu Ramiro pelo braço e cochichou:  -  dê um jeito de não trazer esses couros de jacaré, que se destinam ao assento das cadeiras, ou, pelo menos, demore o mais que puder para trazê-los...
                        Como seu Ramiro não respondesse, ela continuou: - depois que papai inventou essa nova indústria caseira, nunca mais mandou empalhar as cadeiras; agora é tudo na base de couro de jacaré... Se os couros fossem bem curtidos e o trabalho tivesse um bom acabamento seria  espetacular... mas como está sendo feito, as cadeiras ficam grotescas. E, concluiu: infelizmente, até agora, ninguém conseguiu demovê-lo do tal empreendimento. É, Padrinho, diz que a gente deve valorizar o que é nosso!  Já sei que as encomendas vão continuar... concluiu Nina.
                        Logo chegou Elza, carregando o couro de onça e perguntou ao seu Ramiro: - não tem medo de ser comido por uma onça?
                        - Quase que isso acontecia na segunda-feira passada - respondeu ele. E contou: - naquele dia eu ia seguindo um rastro de onça. Sempre fui muito precavido, mas nunca lhes tinha tido medo. Já as havia matado de todos os tamanhos. Caminhava acompanhado do Quincas – o filho de 13 anos -  quando, de repente, um baque e o monstro investiu contra nós!  Era de um tamanho descomunal e demonstrava tanta ferocidade como ainda não tinha visto igual. Senti-me apavorado pela primeira vez em toda a minha longa vida de caçador. No primeiro momento fiquei um pouco aturdido, mas a lei da sobrevivência foi mais forte. Recobrei ânimo e parti para a luta. O Quincas – que carregava a espingarda -  de tanto medo deixou cair a arma. Eu me via obrigado a atacar a onça gigantesca com o meu 128 (terçado), que felizmente, estava afiadíssimo. Descobri logo que o alvo do monstro era o curumim. Vi meu filho perdido!
                        Ele escondia-se às minhas costa, procurando acompanhar os meus passos, enquanto eu desenvolvia toda a minha força, coragem e agilidade para atingi-la com o meu enorme terçado.
                        Embora empregasse toda a minha destreza na ânsia de abatê-la, o meu terçado fustigava somente o ar. Ela não foi atingida uma única vez.
                        Caso estranho, também, apesar da luta atroz não fui nem ao menos arranhado. Havia momentos em que ela me parecia muitíssimo mais alta do que eu, que tenho quase dois metros. Não sei quanto tempo lutamos... Sentia as forças se esvaírem. Até o terçado já me pesava na munheca, prejudicando a agilidade dos golpes!
                        Quando comecei a esmorecer pela quase certeza de que o monstro ia me vencer e acabaria matando meu filho, só me veio à mente pedir o auxílio do céu e gritei com todas as forças: “valei-me meu Deus! Não sei como explicar, porém, no mesmo instante ela desapareceu como por encanto.
                        - Com certeza ela se assustou com o seu grito, disse madrinha Marieta, que também viera juntar-se ao grupo.
                        -  Qual nada! Aquela era onça-gigante! Mal assombrada!  A mãe! Ela aparece para afastar aqueles que procuram dizimar a sua espécie! Há muito tempo eu sabia disso, mas nunca quis acreditar, quando os mais antigos me contaram...
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                        Muito tempo depois que a família se despediu para voltar ao sítio, Nina e Elza ainda comentavam a estória da mãe das onças na defesa da sua espécie. E lembravam que em todas as estórias ouvidas, sempre havia a Mãe Mítica!!!                 
 

Amazonina Dantas



NOTA:                    Este conto foi extraído do Livro "Lendas, Crendices, Estórias do Amazonas, de autoria de Amazonina Dantas, minha tia, casada com o irmão de meu pai, que se chamava Admeto. Com dois anos de casados, o Admeto contraíu tifo na cidade de Tefé (interior do Amazonas), deixando Amazonina, viúva, e grávida de sua segunda filha.
                    Homenageando a tia, deixo aqui o pensamento do prefaciador do seu livro,  Orlando Parahym: "As estórias vão escorrendo mansamente, pois o tapuia do Solimões desconhece os impactos emocionais e os constrangimentos que atribulam a vida do homem das grandes cidades, provocando-lhe a neurose e o infarto. Mantém-se impassível diante de qualquer coisa; da morte, das desgraças, dos perigos."
                    Meus primos são assim: não se espantam com nada desta vida...
 Gdantas