Simplesmente MARINA

A baía abria-se num abraço caloroso para os fundos, tendo no meio uma cunha de terra em formato circular, elevada como um cone pontiagudo quase tocando a fragilidade das nuvens, com frondosas árvores nativas e o emaranhado de raízes cobertas pela vegetação rasteira. Nas laterais, conforme a ação do vento, as águas tremulavam mansamente, fazendo pequenas ondulações superficiais. A valsa lenta e constante é convite ao prazer e lembranças de tempos remotos. Marina contemplava o cenário, quando ouviu uma voz plácida como o frescor suave da brisa que acariciava-lhe as faces. Olhou em direção a voz:

- Marina à quanto tempo não nos vemos? Você continua bela e formosa...também puderas, vivendo em frente a este paraíso!...

- Não acredito. É você mesmo ou é ilusão de ótica? Quais são os bons ventos que o traz aqui, neste paradeiro de mundo?

- São os mesmos em que você esta absorta, apreciando-o bater contra as suas faces róseas. Vento e chuva são imprevisíveis e são carreadores de amizades. Como sempre, estou correndo. Estou carregado e passei por aqui para matar as saudades de ti. Foram muitos os invernos e verões que passamos juntos aqui neste lugar maravilhoso, aliás, sempre muitíssimo bem recepcionado por você. Tempos esplendorosos aqueles, não?

- Sabe que nem lembro mais quanto tempo faz que você se foi. Lembro-me bem de você, tacanho e terno como lábios de criança. Quieto no seu canto, às vezes por semanas. Quando menos esperava, sumia sem dar notícias. Depois aparecia manso, feito cão vira-lata perdido de mudança farejando um qualquer à procura de um lar para abrigá-lo.

- Nada mudou, onde estou é a mesma coisa. Às vezes fico parado semanas, porém quando faço planos para sair para rever os amigos e voltar em lugares por onde passei, sou solicitado e tenho que cumprir com os meus deveres e obrigações. E você? A parcimônia cede lugar à curiosidade, conte-me mais de você. Eh Marina que não envelhece nunca...sem maquiagens e retoques, a jovialidade descreve em seu rosto os mínimos detalhes da beleza feminina!

- Enquanto você corre, eu fico aqui parada neste sumidouro de vida. Como você sabe, a minha vida resume-se numa prisão de portas abertas. O movimento é sazonal, então, dependo exclusivamente das estações do ano. Dê uma olhada, as dependências estão totalmente tomadas, até mesmo o canto em que você um dia fez morada. Aprendi uma coisa no decorrer do tempo: como dois corações que foram apaixonados, um tem que partir para que outro aproxime-se e fixe residência. O mundo está em constante movimento, estacionária nele, somente eu e essas águas calmas que contemplo todos os dias de sol a sol e aurora à aurora.

- Pois é!.. Fico feliz em saber que você está bem e com a casa cheia, inclusive sem nenhum espaço para mim.

- Oras, não fale assim! Você foi do fundo de minha cozinha e desbravador de minh´alma. Agora, concorda que você às vezes tinha o nariz arrebitado e exagerava na dose?

- Foi apenas uma fase em minha vida...vaidades de jovens e adolescentes. Agente vai crescendo e tomando tino. Hoje sou mais perceptivo aos acontecimentos ao meu redor. Conte-me, e as poesias; continua escrevendo e pintando quadros? Morando neste lugar exuberante, inspiração é o que não falta.

- Falta tempo, isso sim! Mas quando posso, jogo um pouco de tinta no papel e rabisco algumas coisas na tela. A arte é uma maneira de entretenimento nesse mundo surrealista e voraz humano. Escrever e pintar são os encontros do artista com as suas várias residências. No momento de divagação artística, a morada será fixada pela imposição do transporte da imaginação e fantasias: “No momento seu lugar será aqui; aguarde o resgate”! Contrário dos convívios sociais, o artista é itinerante; ás vezes, ambulante em constante mutação. Tai a explicação da arte ser para poucos.

- Ouvir você, é fugir do ritual da mesmice o qual o homem está submetido. Então, o sol, o vento e a tarde estão esvaindo-se; antes que eles despeçam e eu vá junto, escreva algo para levar como recordação. Ficarei imensamente grato.

- Não espere grandes coisas. Farei versos de rimas pobres. Faz tempo que a imposição da imaginação e fantasias não me transporta para outras moradias, daí a falta de inspiração, mas vou tentar:

“Recordações. Ações recordadas.

Da boa prosa dos amigos e dos indesejados inimigos.

Se lembram dos Ingleses atacando os Argentinos pelo domínio das ilhas Malvinas,

De Anita, Cristina e Sabrina;

Deve-se lembrar também de Marina”.

- Viu, nada de espetacular. Foi o que me veio à cabeça repentinamente. Sabe que escrever depende de lucidez interior. E você pegou-me desprevenida e prevenção é o suporte para as obras bem planejadas e executadas.

- Ô criatura que se expressa fácil! Como, não; estupenda quadrinha! Devemos mesmo nos lembrar dos bons amigos, pois são eternos e inesquecíveis e relevar as desavenças com os inimigos. O tempo é inexorável com o homem, por isso, tenho que ir. Como foi bom te ver firme como o rochedo e leve como a pluma. Ora leve, ora pesado, em redemoinhos simétricos, assim sigo abrindo as águas por onde passo. Às vezes penso que sou igual a Albertino, herói, geômetra libertino; abrindo o compasso das águas e tecendo as gravuras dos desbravadores sem destino.

- Brincando com as palavras como se brinca de amarelinha. Disto eu sei. Não esqueça nunca de quem fica. As ações recordadas, são recordações retomadas e fazem bem ao espirito e ao ego.Torvelinho, novelo de lã; carretel de linha.

- Claro! Como poderia esquecer? Que passe bem a temporada e até outra oportunidade. Sucesso do clarear até a passarinhada adormecer!

- Apareça quando quiser, estarei por aqui.

Deu partida no motor e acelerou, abrindo as águas por onde passava em alta velocidade, deixando para trás um rastro esbranquiçado e borbulhante. Em questão de segundos, era um ponto em meio aos muitos na vastidão da baía.

- Pelo visto parece que não mudou em nada, pois continua carregando dentro de si a pompa, a vaidade e o nariz arrebitado, mostrando para os espectadores o caminho do infinito e do céu. – este foi o ultimo pensamento de Marina ao vê-lo sumir em meio aos demais.

Às vezes o destino ata os nós da ironia existentes na linha reta da vida e derivado dele, a pressa é inimiga da perfeição. Mal sabia ele que o conglomerado era motivado pela forte tormenta que varria o único estreito de acesso à baía. A recomendação da guarda costeira era para manter distancia e esperar em algum porto seguro a passagem da fúria das ondas.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 15/05/2015
Reeditado em 16/05/2015
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