Andrezza Iriri, Cap. 4

Efigênio chegou em casa junto com Rafael. Que atravessou a rua para abrir a porta do carro do pai e cumprimentá-lo com um beijo no rosto.

-E aí, rapaz? Como vai indo aquela arquitetura?

-Tudo jóia, pai. Tô gostando cada vez mais de Tecnologia das Construções. O cara explica tudo bonitinho. Ele é bastante detalhista, respondeu Rafael, os dois já entrando pela porta da sala.

-Esta é uma das matérias que você deve levar mais a sério. Porque contém – pelo

menos era assim onde estudei – os fundamentos básicos para se realizar uma construção de qualidade, observou Efigênio, deixando a pasta sobre o sofá e dirigindo-se ao banheiro.

-Sei disso, pai. É o que o professor diz, prosseguiu Rafael num tom de voz um pouco mais alto. Até mesmo cálculo estrutural, de importância capital para a segurança da edificação, de repente não é tão importante quanto determinados detalhes construtivos.

Efigênio voltou do banheiro para a sala, onde fez questão de continuar o bate-papo com o filho. Imaginava que isso era fundamental para o estreitamento da relação entre os dois. E continuou, aproveitando-se do que o filho falava:

-Que podem também envolver o aspecto segurança. Além do mais, cálculo estrutural, hoje em dia, é cada vez mais computador. Determinados programas calculam praticamente sozinhos um prédio de vários pavimentos. Ao passo que certos macetes que conseguimos desenvolver com a prática de obra dificilmente poderão fazer parte de um software cuja aplicação seja generalizada.

-Porque as condições de cada obra nem sempre se repetem. Não é isso, pai? O terreno, por exemplo. Às vezes, numa mesma área podemos encontrar pontos com taxas de resistência diferentes.

-É isso aí. Já entrou em fundações?

-Já. Começamos hoje.

-Logo vi. E sua mãe? Falou com ela durante o dia?, indagou Efigênio, tendo notado logo que entrou que Iara não se encontrava em casa. Achou também que a breve conversação, abordando aspectos comuns às atividades dos dois, já poderia ter sido de alguma utilidade ou cumprido a sua finalidade.

-Acho que ela me falou que teria que ir ao dentista. Por volta de umas cinco horas.

-Ah, então deve estar chegando, disse Efigênio, considerando-se satisfeito por ter chegado antes da mulher. Você toma banho primeiro ou vou eu?

-Pode ir na suíte, pai. Mamãe já mandou reparar o chuveiro de vocês.

-Pô, legal. Isso é a maior prova de que santo de casa não faz milagre.

A ausência de Iara não significaria a circunstância de que eles dois não tivessem o que comer. Efigênio sabia se virar na cozinha. Mas fazia questão de que, sempre que possível, todos estivessem juntos durante as refeições. Domício, o filho mais velho, chegava sempre mais tarde. O pai aceitava com naturalidade que as namoradas o retivessem um pouco mais na rua. Além do mais, ele era mais safo, mais senhor de si. Rafael é que precisava de mais atenção. Por se tratar, desde pequeno, de um menino mais frágil. Com o que Iara, que chegava naquele momento, nunca quis concordar.

-Não comeram nada ainda?

-Estávamos esperando a dona da casa, respondeu Efigênio, não deixando de reparar no modo elegante de a mulher se vestir, o que ressaltava a sua beleza. Efigênio gostava disso.

-Domício, como sempre, não vai comer com a gente. Não sei o que ele tanto faz pela rua. Você falou com ele hoje, Gênio?

-Ele não ligou para o escritório. Mas, sabe como é... Essas garotas... Decididamente esse meu filho não puxou o pai. Não vai ser um homem caseiro. O que, cá pra nós, pode ser positivo.

-Homens caseiros também chegam tarde em casa, replicou Iara.

-É verdade. Quando se demoram muito no escritório ou têm muito trabalho a ser feito.

-Ou quando há outras razões. Mas o que você vê de positivo num homem que não seja caseiro?, indagou Iara, dirigindo-se à cozinha.

Rafael e mesmo Efigênio estavam de certa forma admirados com a possibilidade de evolução do diálogo. Perceberam a disposição e o bom humor de Iara, nem sempre muito falante quando chegava da rua.

-Não ficar o tempo todo em casa enchendo o saco da mulher, respondeu Efigênio, numa voz um pouco mais alta.

-Há, há, há... Boa essa, pai. Bela saída.

-Ele é muito engraçadinho. Muito mesmo, disse Iara, voltando com duas travessas da cozinha. E quanto à mulher que não seja caseira? O que isso pode ter de positivo?

-A saudade ou insegurança que possa ser transmitida ao marido, respondeu Efigênio, olhando para Rafael, de quem esperava uma nova intervenção.

-Taí, mãe. Acho que é uma boa resposta de novo. Tá inspirado hoje, héin, pai!

-Nem tanto, Rafael. Nem tanto. Especialmente se o que é dito tem a finalidade de provocar alguma reação em quem ouve, disse Iara com certa ironia.

-Desculpe-me, querida, mas não houve a menor intenção de provocar qualquer tipo de reação em vocês dois. Até porque o que disse obviamente faz sentido. Uma mulher que trabalhe, por exemplo, não pode ser caseira. O que significa que ela terá muito mais chances de conhecer outras pessoas. Resultando numa situação de desconforto ou insegurança para o marido, se ela vier a conhecer outro homem.

-Mas isso não seria negativo, pai?

-Negativo sob o ponto de vista do exclusivismo dele. Isto é, de achar que a mulher é como algo que só lhe pertence. Assim como o relógio que ele usa no pulso. Positivo se ele considerar que, apesar de saber que ela pode não estar imune a todo tipo de motivações que poderia levá-la ao afastamento dele, ele continua achando que tem todos os motivos para acreditar que isso não vai acontecer.

-Você andou lendo Nelson Rodrigues, Jorge Amado ou Hermann Hesse, Efigênio?

-Nada disso, querida. Ando apenas vendo a cara das pessoas no meio da rua, respondeu Efigênio, lembrando-se na hora do semblante de Anelice e seus cabelos anelados. Vindo junto a imagem de sua postura mais reflexiva, mais ouvidos, revelando um poder de argumentação que seria muito inferior ao de Iara.

-O caso é que quando um não quer, dois não brigam, como falavam os antigos, ponderou Iara, reconhecendo que não teria melhor coisa a dizer.

-E é por aí mesmo, querida. Se você deixa o parceiro mais solto, ou solta, fazendo o que ele quer, há menos chance de haver brigas. E se não há brigas, é muito mais fácil de haver voltas. Embora a gente saiba que há muitos casos em que existem voltas mesmo depois de haver muitas brigas. A questão é saber se essas voltas são mesmo consistentes.

-Acho tudo isso muito bonito, Efigênio – e tenho certeza de que Rafael deve estar pensando o mesmo –, mas ao mesmo tempo muito teórico. Não sei se funciona na prática.

-A prática e a teoria, nesse caso, não devem estar na mesma condição do ovo e da galinha. Parece-me que a prática de fato veio primeiro. Mas não acredito que possamos, no estágio de evolução (ou de involução) em que nos encontramos, viver sem a teoria. Ela se torna cada vez mais necessária em nossos dias. Embora saibamos que jamais vamos prescindir da prática.

-Acho bom a gente acabar logo de comer. Esse papo tá ficando muito cabeça demais. E a gente sabe que não leva a nada, intuiu Iara. O que sobra depois é aquele monte de louça lá na pia. Uma colher de chá que estou dando hoje.

-Com que você sabe que não precisa se preocupar. Rafael ou eu podemos dar conta disso, atalhou logo Efigênio. De qualquer modo, esse tipo de assunto só pode ser favorável ao exercício do raciocínio. Melhor do que ficar falando da inflação, do desmatamento da Amazônia, do roubo dos políticos, dos crimes e assaltos que acontecem pelas ruas da cidade, etc. Acho que esse nosso bate-papo aqui representou alguns pedaços de aula que muitos alunos de curso superior jamais vão ter em suas faculdades, etc. Estou falando bobagem, Rafael?

-Claro que não, pai. Acho que tive, né por nada não, uma boa aula com você e a mãe. Cuja contra-argumentação possibilitou toda essa teorização sua.

-É, mas agora acho que podemos ficar por aqui. Tá de bom tamanho. Continuamos com a aula na semana que vem, resumiu Iara.

Efigênio esperava ter comunicado a Iara alguma coisa do que sentia. Sabia que se desenvolvia entre os dois um discreto processo de afastamento. Podia imaginar que Iara, cuja capacidade de percepção das coisas não podia ser subestimada, já estivesse consciente disso também. Embora os dois não tivessem tido até então qualquer tipo de discussão a respeito.

Mas Efigênio ficara especialmente satisfeito com o fato de Rafael ter participado da conversação. Pela oportunidade que teve o filho de se deparar com questões que poderiam se tornar de natureza fundamental para a vida de um casal. Tratava-se de ensinamento, de experiência de vida e até de cultura, situações que foram colocadas, pode-se dizer, de uma maneira acidental, diante de uma pessoa ainda com poucos anos de vida. Efigênio acreditava que a partir de diálogos como esse, de que o filho participara e que aparentemente pouco tinham a ver com ele, Rafael pudesse reunir elementos que o mantivessem afastado do eventual consumo de drogas. Efigênio suspeitava que Rafael viesse utilizando de forma discreta a cannabis sativa. Comunicara o fato à mãe. Mas Iara não dera importância, por acreditar que, ao longo do tempo, Rafael se afastaria naturalmente da droga. Como acontecera com ela mesma. Tinha certeza de que seria pior se se desse muita importância a essa conduta do filho. Além do mais, na sua visão, a médio prazo o consumo de maconha estaria, na prática, inteiramente liberado nas principais cidades do país. Ainda que não o fosse de forma regulamentar.

Anelice chegou do médico com a filha e achou a mãe preocupada. Não fora recebida com a festa habitual que a avó fazia para a neta. Procurou não dar importância, a princípio. Preferiu deixar para quando estivessem à mesa do jantar. Que a mãe sempre fazia questão de preparar, quando vinha à casa da filha.

-O que foi, mãe? Parece meio preocupada. Cara amarrada desde que chegamos. Ou é impressão minha?

-É, minha filha. Já que você insiste... Também não é justo deixar de lhe dizer. Sua tia me ligou.

-Vovó Tita ligou, é?, perguntou Angélica, filha de Anelice.

-Calma, menina. Encha a boca de comida. Não interrompa a sua avó, interveio Anelice. E aí, mãe. Mais alguma da Andrezza?

-É, né. Parece que ela voltou a sair com o Pedro Crivo. Já viu, né? Nem sei se é bom falarmos nisso agora.

-Tem nada não, mãe. Mas é com ela mesmo. É vacinada, maior de idade, não casou porque não quis. Tem que assumir as conseqüências dos passos que der. Você não tem nada com isso, não, mãe.

-E como fica a Tita, filha? Tendo que manter três bocas naquela casa com aquela pensão de seu tio que não dá pra nada?

-Andrezza não comunicou a ninguém a intenção de ter um filho. Foi à luta e pronto! Teve a criança e tia Tita recebeu a neta de braços abertos.

-Você queria que ela botasse os dois na rua?

-Não, mãe. Mas pelo menos podia insistir para que Andrezza arranjasse um emprego. Qualquer um. Ou corresse atrás do prejuízo junto ao pai da garota. Todo mundo sabe que pensão alimentícia é a única coisa que dá cadeia nessa terra. Mas ela não fez nada. Andrezza nunca quis nada. E o fato de tia Tita não ter combatido isso, só reforçou a conduta de Andrezza. Que passou então a viver atrás de um marido rico. Quando falei com a Dra Júlia e arranjamos para ela aquela colocação no Supermercado Maravilha, ela disse que nunca trabalharia como caixa num supermercado. O que se pode fazer, mãe?

-Sei disso, filha. Mas dói ver a aflição de Tita em relação a essa menina. Ainda mais agora, na companhia dessa figura. Sabe que ela apareceu anteontem em casa com uma TV de 29 polegadas?

-Ih, legal. É uma TV bem grande, né? Compra uma pra gente também, mãe!, interrompeu Angélica.

-Se não acabou de comer, tudo bem. Coma devagarinho. Mas sem se intrometer nos assuntos dos mais velhos. Entendeu, filha?, disse Anelice, olhando seriamente para Angélica. Prosseguiu depois:

-Primeiro que ela já não é uma menina, mãe. Tem 27 anos. Um ano mais velha que eu.

-Foi um pouco criada por mim, não é, Anelice? Vocês cresceram juntas durante um bom tempo. Quando a Tita teve aquele problema com seu tio e ele foi embora. Dei a ela o mesmo carinho que dei a você, tive a mesma dedicação. Sinto-me até um pouco culpada pelo que está acontecendo com ela. Andrezza não deveria ter saído daqui.

-Como não, mãe? Você poderia impedir que tia Tita acabasse de criar a filha dela?

-Se Andrezza continuasse comigo, provavelmente não acabaria com um maluco como esse cara.

-Tia Tita não a obrigou a devolver a televisão? Ou pelo menos a não aceitar o “presente”?

-Você sabe que isso seria impossível.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 25/08/2015
Código do texto: T5358232
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