Andrezza Iriri, Cap. 10

Iara sabia que terça-feira era o único dia da semana em que poderia contar com Rafael e Domício mais cedo em casa. Principalmente o segundo, cujas namoradas ou a conversa-fiada com os amigos até tarde – ela acreditava mais nessa alternativa – o prendiam na rua.

Esmerara-se no jantar, coisa que não fazia há muito tempo. Todos naquela casa, inclusive ela, comiam quase sempre na rua. Podia não ser tão saudável, mas era mais prático. Só que hoje era necessário. Antecipar com eles o jantar de amanhã ou quinta como forma de prevenir as possíveis reações dos meninos diante da decisão que seu pai e eu tomamos. Sem bem que não são tão meninos assim, lembrava-se Iara do costume que tem toda mãe de achar que seus filhos não crescem.

-Lagarto redondo, molho de alcaparras, arroz de lentilhas, Chardonnay na área. Maravilha, héin mãe! Não vai esperar o patrão?, brincou Rafael, sabendo que Iara abominava aquele tipo de referência ao marido.

-Ainda não recebi o 13o, por que tenho que o aguardar? Ele está envolvido com a construção daquelas casas lá não sei aonde, ou com coisa melhor. Vai demorar a chegar, ou de repente nem vem. Vou esperar apenas o Dodô, que já deve estar dobrando a esquina. Pelo menos foi o que me disse pelo celular.

-Há quanto tempo não se faz fumaça por aqui! Alguma data especial? Alguma comemoração de última hora? O patrão não vai gostar nada de ter ficado de fora.

-Então ele que dispense a funcionária.

Nesse momento, Domício entrou na sala, deixando no aparador de ferro quase ao lado da porta, como sempre fazia, o relógio, a carteira e as chaves do carro. Parecia que os objetos ficaram olhando no porta-retratos em frente a figura dos dois irmãos quando eram menores.

-Pô, lauto jantar, camarada!, exclamou com um largo sorriso. Quê que deu em você, mãe? Será que esqueci de algum aniversário por aí? Se foi isso, a culpa é do Rafa.

-Vamos sentando logo e deixando de besteira, bobão! Se não a comida vai esfriar rapidinho, reclamou Iara, após ter beijado o filho mais velho no rosto, como de hábito, com a preocupação de não deixar transparecer a preferência que tinha por ele.

-Bem, deixe-me então, pelo menos, lavar as mãos. Esta mesa está muito bonita, e o cheiro da comida convidativo, para que eu me sente do jeito que cheguei em casa.

-Mas não vai demorar, né, o cara? Minha barriga tá roncando!, reclamou Rafael.

Iara aproveitou-se da ida de Domício ao banheiro para pegar na cozinha uma garrafa com água e três copos. No trajeto percebeu que se encontrava inteiramente tranqüila, longe do estado de excitação em que se achava antes de preparar a refeição.

Não seria preciso esperar que eles começassem a comer. Tão logo Domício sentou-se à mesa e Rafael se serviu da primeira porção de arroz de lentilha, Iara dirigiu-se aos dois:

-A idéia, meninos, foi reuni-los aqui para, aproveitando-me da ausência de seu pai e de um momento que possa se tornar agradável, dependendo de como andam os meus dotes culinários, conversarmos nós três sobre uma questão que pode não ser tão palatável.

Rafael olhou para Domício que começava a se servir, esperando que o irmão lhe retribuísse o olhar. O que não aconteceu. Os dois permaneceram calados. Iara sentiu-se à vontade para continuar:

-O que diriam vocês se lhes dissesse agora que seu pai e eu vamos nos separar?

-Mas o que houve, mãe?, indagou naturalmente Rafael, interrompendo a refeição. Não tenho presenciado brigas, discussões. Vocês não falam mal um do outro. Não estou entendendo.

Domício, que fizera seu prato e começara a comer, não interrompeu o que vinha fazendo. Nem para olhar para a mãe ou o irmão.

-Também quase não falamos um com o outro, retrucou Iara. Especialmente quando estamos sozinhos. Talvez fosse melhor se houvesse brigas, discussões. Seria uma forma de interação. A mágoa é muitas vezes sinal de interesse, de cobrança, de sentimento de que está faltando alguma coisa. No nosso caso, ainda que aparentemente de forma velada, só existem apatia, descaso, quase que indiferença. Vocês acham que dá pra continuar assim? Acham que isso é saudável?

-Bem, mãe, claro que não é, Domício resolveu aparecer, deixando o garfo e a faca de lado. E por isso vocês chegaram a essa conclusão. Então, bola pra frente. Não vejo nada demais nisso, não. Se a gente olhar direitinho, hoje é grande o número de casais que se encontram separados. E os que permanecem juntos durante um longo tempo constituem a anormalidade. Estão na contra-mão do fluxo.

Iara já esperava por essa observação de Domício. Embora sempre interessado em conhecer novas garotas, Domício usava a maior parte de seu tempo disponível na rua para ir ao cinema, a shows musicais e até ao teatro, revelando grande aptidão por quaisquer atividades culturais. Em casa, lia com certa freqüência, nas horas que encontrava em meio aos programas que criava com a finalidade de mantê-lo a maior parte do tempo na rua. Rafael, apesar do discreto interesse por drogas, era mais caseiro, muito mais introvertido e não costumava viver tanto na rua. Interessava-se mais por atividades esportivas ou atléticas, sobretudo as que se referissem à modulação do corpo. Por isso talvez não tivesse a sensibilidade do irmão mais velho.

-E como é que vai ficar, mãe?, perguntou Rafael. O pai não vai mais morar aqui?

-Claro que não, né, o pentelho! Se eles vão se separar..., interveio Domício.

-É, mais isso só vai acontecer a partir do início do ano. Até lá as coisas continuam como estão, sentenciou Iara.

Àquela hora da manhã, Juliana e Angélica, gozando as esperadas férias de janeiro, deveriam estar brincando no jardim ou andando de bicicleta na calçada em frente à casa. Era o que Anelice pensava enquanto preparava uma petição de um caso qualquer que fora rascunhada pela Dra Júlia. Trabalho redobrado para D. Mocinha, que deveria cuidar das duas crianças até o regresso de Anelice. O que ela fazia com prazer, sem que fosse necessário que lhe pedissem. Depois ela iria juntar-se à irmã, que estava morando provisoriamente em sua casa, na Aldeia. D. Tita fora aconselhada por Dra Júlia a sair de sua casa em Vila Vazia enquanto houvesse os menores sinais de que a tentativa de assalto à mansão dos Amarantes ainda estivesse em evidência.

Estávamos há mais de um mês e meio da frustrada ação que culminou com a morte de Pedro Crivo. Banzé encontrava-se numa unidade qualquer de um serviço ironicamente chamado de Proteção à Criança e ao Adolescente. Inglês e Nozinho, que tinham antecedentes criminais, continuavam “guardados” num depósito de presos desses que são conhecidos pelo nome de delegacia. Depois da exuberância no tratamento de praxe a que eram submetidos os indivíduos que se aventuravam a ações dessa natureza, Inglês e Nozinho deram todo o serviço a respeito da idealização do projeto, bem como declinaram o nome de Andrezza como sendo a mentora intelectual do plano. Informaram ainda que a faxineira Somila também fazia parte do grupo. Não conseguiram os policiais, contudo, apesar da incrível criatividade no uso de dispositivos utilizados para obtenção “voluntária” de informações, não conseguiram saber onde Somila se achava homiziada. Em que pese o número expressivo de lugares que Inglês e Nozinho tiveram que inventar.

Por isso, no entendimento da Dra Júlia, era necessário que Andrezza continuasse desaparecida. Para que não sofressem eventuais constrangimentos sua mãe e até mesmo sua filha, a partir de ações não muito recomendáveis de policiais nem sempre bem treinados. Isso depois de alguns encontros mantidos pela advogada com Efigênio, que se interessara logo pelo caso, na presença de Anelice.

O caso ganhara repercussão pela interferência direta do Ministro do Interior, primo e muito amigo de Percival Amarante, que solicitou a apuração de tudo com o máximo rigor.

Nesse contexto, o único telefonema que Anelice não pensava em receber era o que agora atendia, enquanto terminava a petição da Dra Júlia:

-Bom dia! Júlia Moscoso Advogados. Com quem falo, por favor?

-Anelice...? É a Lice...?, a voz do outro lado parecia sumida ou amedrontada.

Anelice percebeu logo de quem se tratava, apesar de o som ter saído baixinho.

-Sim, estamos todos bem. E você, como vai indo?, perguntou Anelice, evitando dizer o nome de quem lhe ouvia.

-Tudo legal. Estou precisando falar com a Atit. Ou pelo menos ver a Atit e o seu bichinho.

-Está bem. Vamos ver como as coisas se comportam. Por aqui tem feio muito sol.

-E eu aqui estou sempre com a mesma pessoa querendo me passar bronzeador, embora a gente nunca saia de casa.

Dois dias depois do fracassado golpe na mansão dos Amarantes, Efigênio ligou para Juvenal, praticamente intimando-o a estar em seu escritório no dia seguinte pela manhã. Percebendo que Juvenal estranhara o ineditismo da convocação, Efigênio foi lacônico:

-Você não lê jornais não, cara. Não soube do que houve na casa do primo do Ministro do Interior?

-Soube por alto. Parece que um bandido morreu e três foram presos. Não é isso?

-Não leu que os caras eram lá de Vila Vazia?, indagou Efigênio meio exasperado.

Juvenal então entendeu a importância do questionamento. Por isso tinha sido chamado daquela forma incomum ao escritório do marido de Iara. Imediatamente imaginou que se tornara pálido, não podendo ter a confirmação porque não havia espelho na sala. Conversava com Efigênio pelo sem-fio, sentado no sofá. Capas de LP’s, cheias de poeira, de Chet Baker, Duke Ellington e outros discos de jazz espalhadas pelo assento. A reverberação do nome de Andrezza em sua mente, agitando-lhe o coração.

No dia seguinte, no escritório de Efigênio, Juvenal ficou sabendo de tudo. O cara com a sombrinha colorida na estrada naquela noite chuvosa devia ser o Pedro Crivo. Andrezza tinha planejado a ação que resultara na morte do namorado, o próprio Pedro Crivo, e obviamente estivera por trás dos três assaltos de que ele fora vítima. Fora ela também, a líder dos bate-bolas, que o ameaçara com uma faca no porão daquele prédio esquecido numa travessa secundária próxima à sua casa. E era ela que estava agora escondida em algum lugar na cidade. Provavelmente na casa de uma tia na zona sul, que nem mesmo D. Tita sabia onde ficava. Pelo menos ela está meio protegida. Mas até quando, meu Deus! Apesar de tudo, Juvenal não conseguia pensar em Andrezza com rancor. Reconhecia que era mais fácil sentir-se compelido a tentar protegê-la ou a desejar que nada de mal lhe ocorresse.

Efigênio passou grande parte daquela manhã contando a Juvenal sobre a vida em comum de Andrezza e sua prima Anelice, a mulher com quem ele pretendia morar a partir do início do ano. Desde o tempo em que estiveram juntas, sob a tutela de D. Mocinha, até o término do Segundo Grau, que concluíram no mesmo colégio, mas já vivendo com suas respectivas mães.

Anelice confessara a Efigênio que sempre sentira inveja de Andrezza. Quando criança, embora sem a noção adulta desse sentimento, Anelice perguntava-se porque ela não tinha os olhos expressivos e as coxas gordinhas que todo mundo elogiava em sua prima. Na adolescência, Anelice admitia não ser capaz de competir com a capacidade de raciocínio da prima, imediato diante de questões com qualquer nível de complicação, o que fazia com que colegas e professores reconhecessem em Andrezza o atributo da inteligência.

Anelice lamentava ter de ficar em desvantagem. Especialmente quando Andrezza abusava da sua aptidão em pronunciar de trás para frente o que lia. Nessas ocasiões, ela acabava por memorizar alguma coisa do que dizia, fazendo uso de uma linguagem que levava as pessoas a ficarem atônitas, por não entenderem nada do que era falado. Esse hábito de Andreza impressionava a todos, sendo, por isso, objeto de reiterados elogios. O que Anelice não conseguia aceitar.

Segundo Andrezza, a destreza que adquirira em pronunciar ao contrário o que lia tivera início com a observação da palavra IRIRI, uma cidade num dos estados litorâneos do país – que lida tanto de uma forma como de outra dá no mesmo. Por isso, durante algum tempo a filha de D. Tita foi chamada de Andrezza Iriri. Prática que ela tratou logo de desestimular, embora tudo fizesse para que não notassem, ao perceber que poderia valer-se de uma linguagem cujo entendimento estaria apenas ao alcance dela ou de algumas outras pessoas, mais atentas ou menos desavisadas.

Anelice terminara a petição que fazia para Dra Júlia no momento em que Domício entrava no escritório. Ela teve tempo de, em segundos, identificar no rosto moreno do rapaz o mesmo tipo de introspecção no olhar que o pai às vezes revelava. Os cabelos lisos e brilhosos, devidos a um gel que ela pensou em lhe perguntar o nome, assim como o piercing na orelha, chamavam a atenção do belo jovem que, apesar da fama de mulherengo e a aparência de perdulário, era responsável e competente no que fazia. Certamente teria aprovação imediata no exame da Ordem. Dra Júlia aceitara o pedido de Anelice para o contratar como estagiário e já afirmara algumas vezes que não tinha se arrependido. A interferência de Anelice para a obtenção do emprego para Domício representara um primoroso acréscimo no acúmulo de alegria que Efigênio sentia ao lado da nova companheira. Tinha efetivamente tomado a decisão acertada ao resolver viver com a filha de D. Mocinha.

-Oi, tia. Estou muito atrasado?, perguntou Domício, colocando um monte de papéis sobre a mesa que ele ocupava.

-Não muito. Não vou levar em conta esses dez minutos. Trouxe a posição de todos os processos?

-Tudinho, apesar do saco que são esses juízes. Sempre resolvendo complicar as coisas, ao invés de facilitar a gente, que está no mesmo ramo, respondeu Domício. Ele se movimentava com desenvoltura, talvez na esperança de que Anelice lhe reparasse o impecável terno que estreava nesse dia.

-Elegante hoje, héin, menino! Foi escolha de seu pai?

-É, né, tia? Até que o coroa sabe se vestir.

-Tá certo. Acho porém que ainda faltam algumas dicas. Mas tudo bem. Preste atenção: Andrezza me ligou.

-É mesmo, tia?, surpreendeu-se Domício, sentando-se imediatamente à mesa para ouvir com atenção. E aí?

-Quer voltar pra casa, coitada. Deve estar morrendo de saudades da mãe e principalmente da Ju.

-Mas será que é oportuno? Os caras parece que esfriaram. Mas, sabe como é a polícia. De repente eles aparecem de novo na pista.

-Sei disso. Vou conversar com a Dra Júlia. De qualquer forma, ela não pode se entregar antes de ver a mãe e a filha. Depois, dá alguma zebra, ela não consegue sair logo e vai ser pior pra todo mundo.

-Dra Júlia já deve estar com tudo prontinho pra obter o alvará de soltura assim que ela for detida.

-Claro. Sou eu que preparo toda a papelada. Da qual, aliás, você depois vai ter que se inteirar também. Desse e de outros casos, observou Anelice. De qualquer forma, Andrezza já deve estar cansada da sua tia Aurenice. Cujo apartamento na zona sul ninguém sabe o endereço.

-Solteirona, com apartamento na zona sul... Deve ter grana.

-Tem, sim. Mas não é só isso. A Aurenice é chegada a relacionamentos não muito convencionais.

-Ih... Entendida, é, tia?, perguntou Domício, sem disfarçar os risos mais prolongados. A Iriri deve estar passando maus pedaços.

-E o pior é que sem muita condição de reclamar, completou Anelice.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 03/09/2015
Código do texto: T5368756
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