PASSEIO EM JOÃO BERRADOR

Aconteceu em pequena cidade por onde passei, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Aliás, só foi possível tal ocorrência por eu estar em local que considerava tranquilo, bucólico, sereno e pacífico. Nisso residiu minha imprevidência, que resultou num quiproquó.

Fui contratado por um grupo de empresários do agronegócio, que possuía fazendas na área rural da cidade de Trompete (fora do Brasil), e só topei porque a perspectiva de ganho era grande, e o serviço, relativamente, rápido. Ao descer no aeroporto da capital do país, fui avisado de que não havia autorização de voo regional para meu destino, por causa da fumaça provocada por queimadas. Nenhuma locadora quis me ceder veículo, por considerar que a área para onde me dirigia era assolada por inundações, naquela época do ano. A essa altura do campeonato, eu já começara a me preocupar .

O único meio de transporte existente era o trem. Um comboio por dia, saindo às cinco horas da manhã, e chegando à cidade ao fim da tarde. Seriam de doze a treze horas viajando. Havia duas categorias de passagem: primeira e segunda classe. Comprei, obviamente, a de primeira, pensando em passar esse tempo, ao menos bem acomodado, e fui avisado que teria de comparecer ao embarque com duas horas de antecedência. Como assim?

Resolvi não titubear e às três horas da madrugada já estava entrando na estação, mas fui barrado por um funcionário, que ao examinar o tíquete, mandou que entrasse numa enorme fila, onde já se podiam contar mais de duzentas pessoas. Não adiantou argumentar sobre o tipo de passagem. Após aguardar por mais uma hora, a fila se moveu até o trem e, conforme nos aproximávamos dos vagões, a aglomeração crescia, ao ponto de eu nem precisar colocar meus pés no chão. Fui levado pela multidão e prensado dentro de uma lata de sardinhas. Olhei para uma senhora, que não parava de rir, embora estivesse como eu, sem poder se mover, e perguntei como poderia ir para a primeira classe. Ainda sorrindo, disse que já estávamos nela, e que a segunda eram os vagões de carga, onde os passageiros viajavam com animais.

Não havia como sair dali. A rigor, não havia como fazer nada, e a cada parada do trem, o aperto aumentava, sem que eu soubesse porquê. A certa altura, o calor era tanto, e eu estava tão prensado, que acabei cochilando em pé (hoje, refletindo melhor, creio que desmaiei). Acordei cinco horas e meia depois, quando um tropel de gente desembarcou, e caí ao chão. A senhorinha ainda sorria pra mim, ajudou-me a levantar, e sugeriu que ficássemos num cantinho livre, e eu tirasse os sapatos, cobrisse-me com o paletó e deitasse a cabeça em seu colo, já que parecia tão cansado. Agradeci a oferta e me acomodei. Acordei horas mais tarde, sem dinheiro, sem sapatos, sem paletó e sem ter ideia do paradeiro da mulher.

Felizmente, em minha maleta ainda estavam os papéis, apesar de terem sido levadas meias, cuecas e outros itens. Logo chegamos a Trompete, onde desembarquei, e ao sair da estação estava a placa: BEM VINDO A JOÃO BERRADOR. Demorei a descobrir que a cidade, antes, tinha esse nome, que havia sido mudado recentemente, contra a vontade da maioria da população (de dois mil habitantes), então dividiram o município em dois núcleos, e a próxima estação do trem, além da que desci, era a oficial de Trompete, onde estavam me esperando.

Pedi que alguém me levasse até lá, mas sem dinheiro e sem sapatos, ignoraram-me.

Segui a pé e descalço, num chão pedregoso, para vencer distância de doze quilômetros.

Já havia andado bastante, quando três homens numa carroça ofereceram carona. Subi contente, mas nem cheguei a sentar e já me deixaram pelado, levaram a maleta e me jogaram à beira da estradinha. Sem saber o que fazer, continuei andando, já que o caminho era deserto e sem uma sombra sequer. Quando cheguei perto da outra estação, estava tão tonto, que nem vi quando umas mulheres sem assustaram com minha nudez. Logo chegaram dois guardas, que à base de safanões, levaram-me para o xadrez. Nem passei pelo delegado. O único sujeito que me fazia companhia na cela era um doido de pedra, que uivava o tempo todo e me olhava como se fosse atacar. Durante várias horas, em que me deixaram plantado ali, tive de abrir bem os olhos, para evitar o pior. Só na manhã seguinte me deram um saco de farinha fedido e um barbante, para cobrir o corpo. Como cortesia, rasparam meu cabelo, completamente.

Ao ser atendido pelo delegado, expliquei o ocorrido e ele parecia nem ouvir o que eu dizia, mas quando citei meus contratantes, ele telefonou e pediu que viessem me ver. Em vão, esperei ver tudo, prontamente, resolvido. Um empregado apenas veio, disse que não tinham mais interesse nos meus serviços, e que não mencionasse mais o nome das empresas.

Deixou-me ali plantado, foi-se embora e tive de voltar ao convívio do lobisomem, no xadrez, vendo o sol nascer quadrado por quase uma semana, e dormindo apenas quando não aguentava mais, para acordar em seguida, com uma mordida ou lambida do pirado. Só logrei sair daquela pocilga, quando um pastor visitou a cadeia e perguntou se eu desejava auxiliá-lo nas tarefas de sua missão. Aceitei no ato. Qualquer coisa para escapar dali.

Trabalhei durante dois meses, limpando galinheiro, chiqueiro, curral, e para que não pudesse escapar, ele só me vestia com um saiote feminino, e mais nada. O pior era que, às vezes, ele parecia me olhar de um jeito bem estranho; nada religioso, por sinal. Quando achei que já dava para pagar a passagem de segunda e viajar com os bichos, surrupiei as roupas que estavam no varal, saí à noite, andei até a outra estação e embarquei.

Só consegui lugar junto com os porcos, mas não havia outra escolha.

Dormi quase o tempo todo, e acordei esmerdeado dos pés à cabeça. Quando o trem parou e vieram abrir o vagão, esguicharam água com desinfetante nos porcos e em mim, pois meu fedor estava insuportável. Tive de peregrinar por toda a cidade, até achar a embaixada do Brasil, e só consegui falar com um alto funcionário, porque, ao citar meu nome, reconheceram ter recebido meus documentos, encontrados numa lixeira de alguma estação do trem.

Fui autorizado a tomar um banho, alimentar-me e vestir um macacão militar. Quando o avião já estava na pista, o embaixador me perguntou se eu não podia permanecer no país por mais algum tempo, e ajudá-lo numa empresa em que investira algum capital. Perguntei do que se tratava, e ele relatou que era organização agrícola, na região de Trompete.

Saí correndo em direção ao avião, sem lhe responder nada.

Soube depois que ele comentou com um funcionário, que estava devolvendo mais um louco ao seu país natal.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 29/06/2016
Reeditado em 29/06/2021
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