Uma história de MONTANHAS e de SUPERAÇÕES.

No Rio de Janeiro...

No dia 7 de junho de 2012, uma quinta-feira bastante fria para os padrões de temperatura do Rio, às 4h35min, desembarcou no Aeroporto Internacional do Galeão; que há anos se chama Tom Jobim, mas que este autor, como muitos outros cariocas, prefere continuar chamando-o de Galeão; vindo de La Paz, um dos personagens desta nossa pequena história. Um homem não muito belo, mas tampouco de aspecto desagradável, nem muito alto, nem baixo demais. Magro, de uma magreza aflitiva, pois não chegava a pesar 50 quilos. Não se poderia dizer que fosse velho, mas também não era demasiado jovem.

Sua chegada foi normal, como de costume, sabia que ninguém o esperava. Usava jeans e camiseta de manga comprida na cor preta. Em uma simples olhada, nada o destacava dos demais passageiros. Mas se o observássemos com mais atenção, notaríamos algumas diferenças: ele carregava uma mochila cargueira na cor laranja, relativamente grande para a sua estatura; o seu rosto estava um pouco inchado; os lábios e as pontas dos dedos avermelhados, aparentando queimaduras.

Por que uma mochila cargueira? Estaria ele realmente com o inchaço no rosto e as pontas dos dedos queimadas? Tudo isso e muitos outros detalhes sobre esse personagem, o caro leitor será informado aos poucos, em seu devido tempo, lendo até o fim o presente conto. Não muito longo, mas que apresentará as dificuldades vencidas e as superações demonstradas por alguns personagens.

Gabriel Ever Montes, esse era o nome do passageiro que acabara de desembarcar no Rio. Mas quem era Gabriel? Nas páginas seguintes ficará claro que não se trata aqui de um herói. O autor, neste início da história, não vê necessidade de alongar o texto descrevendo em detalhes o personagem, isso será feito no decorrer dos próximos parágrafos. Neste momento, cabe citar que Gabriel nasceu em 1954, no Rio de Janeiro, trabalhou na Marinha por cerca de 40 anos. Justo seria também defini-lo como um homem persistente e adepto da filosofia de fazer acontecer e não esperar acontecer. Aposentado, voltou a praticar trekking , escaladas e corridas de montanhas , atividades que realizava na juventude.

Agora que já possuímos algumas informações sobre o passageiro que desembarcou no Galeão, vamos conhecer um pouquinho do seu dia a dia...

Em 2011...

Ao regressar dos Andes peruanos, nos últimos dias da primavera daquele ano, onde Gabriel e a esposa Luma realizaram um trekking de cinco dias e alcançaram a base da montanha Salkantay, na Cordilheira de Vilcabamba, na altitude de 5 mil metros, o nosso personagem percebeu que não estava bem de saúde, pois, ao dar continuidade nos treinos diários de exercícios aeróbicos , as dores nas costas e a fraqueza nas pernas não cessavam com os “seus costumeiros comprimidos”.

A princípio ele imaginou que poderia ser fadiga. Havia cumprido integralmente a sua programação de trekkings e de escaladas no Brasil e no exterior, com uma média de três atividades por mês, o que, talvez, tenha sido um pouco exagerado para um “sexagenário”.

Por mais que tentasse, o nosso personagem não conseguia manter os treinos. A situação se agravou quando começou a sentir dores no peito, febre e a perder peso. Chegou a 49 quilos.

Acompanhado da esposa, Gabriel consultou-se com diversos especialistas, realizou uma série de exames, inclusive radiológicos. O diagnóstico final indicou hérnia de disco lombar, pneumonia e enfisema pulmonar, causada por questões genéticas. O nosso aventureiro nunca fumou.

Como nas duas vezes anteriores, há mais de sete anos, quando em momentos distintos foi obrigado a interromper as atividades de montanhas devido à obstrução das carótidas e, por causa de uma queda, realizar cirurgia no joelho esquerdo, Gabriel, precisou cessar os exercícios e iniciar um tratamento com diversos medicamentos e sessões de fisioterapia. Seguiu confiante, ele era um homem disciplinado e persistente. Sabia que para voltar às atividades teria que cumprir as recomendações médicas. Acreditava que conhecendo os seus limites físicos, seria possível ajustar os treinos e continuar escalando e caminhando nas altas montanhas.

Ao longo do tratamento, o qual durou alguns meses, contou com o apoio da esposa, dos filhos, das noras e do carinho especial da neta. Nesse período, ele, que sempre acreditou na recuperação, planejou detalhadamente as atividades que pretendia realizar no ano seguinte, em 2012.

Aos poucos, o seu estado de saúde foi se restabelecendo. Ele voltou a treinar diariamente. Mas não como antes, foi obrigado a dar adeus às corridas de montanha, às meias maratonas e aos treinos de pedalar longas distâncias.

Como o leitor já deve ter percebido, Gabriel, mesmo depois de quase quarenta anos servindo à Marinha de seu país, o que lhe proporcionou viajar por diversos mares e visitar muitas cidades no mundo, mantinha no coração uma enorme paixão, a mesma que tinha na juventude, pelas montanhas.

Início de 2012...

Mais uma vez Gabriel Ever Montes, após superar alguns obstáculos, volta aos treinos sistemáticos e as, já conhecidas dos leitores, atividades de montanhismo.

Mesmo sabendo de suas limitações, Gabriel havia incluído na programação um trekking nos Andes bolivianos. Queria chegar ao cume do pico Áustria na altitude de quase 6 mil metros, um desafio para quem pratica montanhismo por hobby. Há anos sonhava com essa montanha. Ele sabia que precisava intensificar os treinos, teria que vencer dificuldades inerentes à altitude, ao frio, ao vento e às longas subidas. Sabia também que teria que estar psicologicamente preparado para desistir, caso viesse a ter problemas de saúde durante o trekking e a subida do Áustria.

Tinha consciência de que para evitar acidentes, às vezes, é preciso ter coragem de desistir ou de postergar uma chegada ao cume. O perigo é que na reta final, é mais fácil “continuar” do que “desistir”.

Seguindo a sua programação, na manhã do dia 7 de maio, uma segunda-feira de outono, Gabriel e o amigo Sal escalavam a Pedra do Garrafão, na Serra dos Órgãos, quando durante uma descida de rapel, o nosso personagem sofreu uma queda. Nada de muito grave aconteceu. O impacto foi amortecido pela mochila e pelo capacete. Mas Gabriel, depois de socorrido, voltou para casa com o pé esquerdo engessado. Não foi constatado fratura, mas havia suspeita de micro lesões no tornozelo.

Dois dias depois do acidente, Gabriel não queria acreditar no que estava acontecendo. A menos de um mês do trekking nos Andes, estava, na varanda do apartamento, sentado, com o pé imobilizado apoiado em um pufe, olhando para o mar e totalmente desligado da vida. Ele falava para si mesmo:

— Há anos penso no pico Áustria. Não vou desistir, já treinei muito, sinto-me preparado. Preciso apenas de...

Neste momento, ele ouve a voz da esposa que acabava de chegar à porta da varanda.

— Gabriel, já ligou para La Paz? Já cancelou a viagem? — Perguntou Luma.

Antes de responder, ele levantou-se e foi ao encontro da esposa.

— Sim — respondeu Gabriel — telefonei e falei com Stiepan Kassatski, mas ainda não cancelei, porque não há...

Luma, perplexa com o que acabara de ouvir, interveio — falou com quem? Além do tornozelo, acho que a queda também afetou a sua cabeça. Você ligou para Bolívia ou para Rússia? Quem é esse tal de Kassatski?

— Ele é o gerente da George Tour Operator, agência operadora da expedição. Kassatski não é russo, ele disse-me que sua mãe escolheu esse nome em um romance que lia durante a gravidez — explicou Gabriel, e dando continuidade a sua resposta, acrescentou:

— Se não me falha a memória, Stiepan Kassatski é o protagonista do livro Padre Sérgio , de Liev Tolstói.

— Por favor, Gabriel volte ao mundo real, não estou interessada em literatura — disse a esposa, já perdendo a paciência — quero saber se você já tomou as providências para cancelar a viagem.

— Ainda não. Vou explicar — disse Gabriel — conforme eu estava falando, quando você me interrompeu, Stiepan disse-me que não há problema em cancelar, poderei desistir, sem custos, até cinco dias antes. Mas ele não poderá garantir uma vaga em outra expedição desta temporada. Então, pensei: ainda não paguei as diárias do hotel. Fiz a reserva no Booking e, no caso de “no show” , não terei que pagar taxas. Caso eu não confirme o “check in” do voo vinte e quatro horas antes, a passagem Rio/La Paz/Rio ficará automaticamente válida até junho do ano que vem. Não preciso me precipitar nos cancelamentos. Ainda tenho vinte dias para decidir. Daqui a uma semana, voltarei ao ortopedista, levarei o resultado da ressonância magnética. Não havendo micro lesões, o gesso será retirado e voltarei a caminhar normalmente.

— Sim, Gabriel, conclua. Se toda essa “teoria” funcionar, você sai do consultório médico e segue direto para os Andes. É isso? — Indagou a esposa.

— E o que você havia conversado comigo e com seus filhos sobre interromper as atividades até a sua completa recuperação?

Se você quer a minha opinião: ligue agora para o “russo boliviano” ou “boliviano russo”, como queira, e cancele a sua ida — disse Luma, se afastando do marido e saindo da varanda.

Antes de continuar a narrativa, este autor gostaria de acrescentar mais um detalhe sobre as características morais do personagem Gabriel Ever Montes: ele é daquele tipo de pessoa que não houve ninguém, é centralizador e só ele sabe fazer as coisas corretas. O dono da verdade. Com certeza os leitores já devem ter conhecido alguém com essa personalidade.

Mas ele era também um homem persistente, adepto do planejamento. Não voltou a telefonar para o gerente da agência em La Paz.

E tudo aconteceu como teorizou o montanhista...

Na consulta médica, uma semana antes da viagem, ele recebeu o diagnóstico de que não havia nada de grave no pé, saiu da clínica caminhando normalmente sem o gesso.

Retornou aos exercícios caminhando na areia da praia, releu a coletânea de informações sobre a Cordilheira Real , arrumou o material na mochila cargueira e, ainda com um pequeno inchaço no tornozelo, no dia 29 de maio, seguiu para o Galeão e embarcou no voo TA 920/AV 7390, da Avianca, com destino a La Paz.

Em La Paz...

Na manhã do dia 30 de maio, Gabriel que estava hospedado no Sajama Hotel da Calle Illampu, bem próximo da Agência George, foi o primeiro a chegar para o briefing , previsto iniciar às 9h. Na porta de entrada, ele ouviu: — “Buenos días señor”, sou Sixto Baeza e terei a honra de conduzir a nossa expedição ao pico Áustria.

Baeza apresentava os traços fisionômicos de um boliviano típico de etnia indígena, com cabelos lisos e bem escuros. Lembrava um pouco Evo Morales, mas era mais jovem. Não era desprovido de simpatia. Nos seus modos e maneira de ser buscava conhecer as pessoas com quem conversava.

— “Buenos días, Sixto”. Sou Gabriel Ever, brasileiro, cheguei ontem à noite.

Enquanto aguardavam os demais integrantes do trekking, os dois recém-conhecidos conversaram sobre experiências anteriores em montanhas.

Neste primeiro contato, Gabriel ficou sabendo que o grupo, não considerando o Guia , nem os dois carregadores, seria formado, contando com ele, por três brasileiros e um casal francês.

Em seguida, chegaram os franceses e os dois brasileiros. Sobre esses novos personagens, que terão uma participação um tanto secundária na história, este autor fará uma breve descrição. Os brasileiros chamavam-se Marcos Oliveira e Eduardo dos Santos, eram amigos de infância, residiam em Pirassununga, aparentavam uma idade entre trinta e trinta e cinco anos. Jean e Annapurna eram do sul da França, de Cannes. Ele tinha por volta de cinquenta anos, ela não mais que quarenta e cinco.

Antes de iniciar a reunião preparatória, Sixto conduziu as apresentações e perguntou se todos estavam aclimatados à altitude de La Paz, 3.640 metros.

— Estou bem, apenas um pouco cansado da viagem — respondeu Gabriel.

— Jean e eu já estamos aclimatados. Quando chegamos, há dois dias, meu marido sentiu dor de cabeça, mas agora está bem — disse Annapurna.

Sixto havia percebido que um dos amigos de Pirassununga não estava com uma aparência muito boa e perguntou se eles já haviam realizados atividades em altas montanhas.

— Esta é a nossa primeira vez em altitude acima de 3 mil metros, e também a nossa estreia em trekking fora do Brasil — Marcos respondeu — chegamos há três dias, estou apenas com uma ligeira dor de cabeça, mas Eduardo ainda não aclimatou, está sem apetite e com vômitos.

O Guia realizou o briefing, dando as informações básicas sobre o mínimo de material a ser levado, em especial roupa de frio; como seria realizado o transporte para o ponto de início da caminhada e o resgate ao final da expedição; alertou sobre a importância da aclimatação na altitude de 4.800; e como seria a subida para o cume do Áustria. Terminou dizendo que realizariam um “passeio” com médio grau de dificuldade, um treino para uma escalada na neve. Sugeriu que todos aproveitassem o restante do dia para descansar, tomar chá de coca e, àqueles que ainda estivessem sentido enjoo ou dor de cabeça, comprassem na farmácia “sorojche pills” e tomassem um comprimido a cada oito horas.

Agora vou chamar Stiepan, ele gostaria de conversar sobre pagamentos — disse Sixto, antes de se despedir e desejar uma boa estada na Bolívia para o pessoal do grupo.

Enquanto conversava e efetuava o pagamento ao gerente, Gabriel pensou: “realmente o biótipo de Stiepan Kassatski nada tem a ver com o dos povos eslavos ”, de russo só o nome.

Nos Andes Bolivianos...

Por volta das nove da manhã, do dia primeiro de junho, depois de quase três horas em uma caminhonete “quatro por quatro”, o grupo chegou à Tuni, 4.200 metros acima do nível do mar, vilarejo da Região de Condoriri. Durante o percurso, por mais de quatro vezes, o carro teve que parar por solicitação de Eduardo que continuava com enjoo e precisava vomitar.

Sixto, com ajuda dos carregadores, colocou o material de uso coletivo nos dois cavalos de montanhas que já se encontravam no local, pediu para o pessoal se equipar e avisou que em cinco minutos iniciariam o deslocamento para a localidade de Condoriri, onde seria montado o acampamento básico na altitude de 4.800 metros.

Caminharemos por aproximadamente oito horas, com longos trechos de subidas, vento forte e temperatura por volta de 7ºC. Procurem seguir o ritmo da minha passada — expôs o Guia ao grupo. E continuou falando, agora olhando diretamente para Eduardo — a “quatro por quatro” ficará estacionada aqui com o motorista de prontidão até o final da tarde de hoje. Caso alguém apresente sintomas do “mal agudo da montanha ”, a recomendação é retornar à La Paz para continuar aclimatando ou, se necessário, receber cuidados médicos.

Durante as duas primeiras horas de caminhada, como Sixto pressentiu, os dois amigos de Pirassununga não estavam aguentando as adversidades climáticas, reclamavam de dor de cabeça e de enjoo. Os franceses caminhavam sem grandes dificuldades. Gabriel não apresentava sintomas do mal da altura, nem de qualquer desconforto no pé esquerdo. Ele seguia apreensivo, mas feliz por ter iniciado o trekking mais desafiante da temporada, e, talvez, considerando os seus problemas de saúde, já conhecidos dos leitores, o de sua vida nas montanhas.

Marcos, que vinha caminhando bem atrás do grupo, junto do seu amigo, aproximou-se de Sixto e disse: — estou preocupado com o Eduardo, ele não está nada bem. Não consegue manter o ritmo e já vomitou várias vezes.

— E você, Marcos, como está se sentido? — indagou o Guia. — mais ou menos, com dor de cabeça

Sugiro que o Eduardo desista do trekking e volte imediatamente à La Paz. Eu o acompanharei até a viatura que ficou em Tuni — propôs Sixto, verificando as horas no relógio que carregava no bolso da calça.

— Eu voltarei com vocês, talvez tenha que levar o meu amigo ao hospital. Acho que ele está sofrendo do mal da altitude — disse Marcos olhando para trás, vendo o amigo parado, retirando a mochila.

O Guia sinalizou para que o grupo parasse.

Vamos descansar por cinco minutos — disse ele. Como já perceberam Eduardo não está bem, precisa ser medicado o mais rápido possível. Eu voltarei com ele e Marcos até a viatura. Vocês e os carregadores continuarão na trilha até a Laguna Chiar Khota, próximo à montanha Condoriri, local do nosso acampamento. Eu espero estar lá ao anoitecer de hoje.

E assim transcorreu o primeiro dia. O grupo, agora com três estrangeiros, cumpriu as orientações do Guia e montou o acampamento no local combinado. Marcos e Eduardo voltaram para hotel.

Sixto ainda chegou a tempo de fazer a refeição com a equipe, jantaram uma deliciosa sopa de batata com beterraba e frango cozido com cenoura.

Um pouco antes de anoitecer, todos já estavam abrigados nos sacos de dormir em suas barracas. O vento e a temperatura negativa de 7ºC não permitiam a permanência ao ar livre.

Gabriel deitou sem tirar ou trocar uma peça de roupa, nem descalçou as botas. Antes de pegar no sono, leu no termômetro preso à mochila menos 4 graus no interior da tenda. Acordou diversas vezes durante a noite, mas estava com tanto frio que não teve coragem de sair para urinar. Nem do saco de dormir saiu, “mijou” dentro de uma garrafa vazia de água mineral.

Sixto, tão logo amanheceu, dirigiu-se às tendas do casal francês e a do brasileiro, convidando-os para o café da manhã.

— “Buenos días señores!” — Exclamou o Guia. Como passaram a noite? Estamos acampados a quase 5 mil metros acima do nível do mar. Alguém teve vômito ou dor de cabeça?

— Não dormi bem. Senti muito frio, apesar do saco de dormir ser resistente até menos 15 graus. Pensei que as pontas dos meus dedos fossem congelar — relatou Gabriel.

—Também senti frio, mas nada fora do esperado para um acampamento nos Andes no mês de junho. A altitude não me causou desconforto — respondeu Annapurna.

— Estou um pouco enjoado e com vômitos, mas acho que esse “mal-estar” nada tem a ver com a altitude, talvez o jantar de ontem não tenha “caído bem”. Tenho experiência em altas montanhas. Há mais ou menos cinco anos cheguei ao acampamento da base norte do Evereste na altitude de 5.150 metros. Lá permaneci por dois dias e nada senti — disse Jean, olhando diretamente para esposa, de um modo tal que parecia estar se explicando.

— É natural certo desconforto causado pelo frio e pelo ar rarefeito — acrescentou o Guia, após ouvir os integrantes da expedição.

— Agora vamos ao café, em seguida iniciaremos uma caminhada até a base da montanha Condoriri para aclimatarmos. Chegaremos até 5.300 metros. A ideia é realizar o percurso de ida e volta em aproximadamente 8 horas.

Annapurna e Gabriel fizeram a caminhada mantendo a passada de Sixto, sem dificuldades. O mesmo não aconteceu com Jean. Além de não aguentar o ritmo dos demais, parou algumas vezes para vomitar e não concluiu todo o percurso previsto.

Um pouco antes do anoitecer daquele dia de aclimatação, Sixto, com ajuda dos carregadores preparou e serviu o jantar. E como no dia anterior, logo após a refeição todos foram se abrigar em suas tendas. Apesar da beleza do céu andino, o tempo não permitia o papo ao relento.

No terceiro dia, Gabriel foi o primeiro a despertar e a sair da barraca. Um pouco antes das cinco, ele já havia acendido o fogareiro para ferver a água do café. Enquanto aproveitava o calor das chamas para aquecer as mãos já quase congeladas, o nosso montanhista falava consigo mesmo: — hoje é o dia do Áustria. Muitas vezes sonhei com esse momento, treinei bastante, nada sinto no pulmão, na coluna nem no tornozelo, a altitude não está me causando mal. Estou bem, preciso apenas vencer o frio. Eu vou conseguir...

Durante o desjejum, Sixto reparou que Jean não havia saído da tenda. Mas sem nada perguntar, continuou conversando com Annapurna e Gabriel. E como todas as manhãs, quis saber como tinham passado a noite e se estavam prontos para o grande desafio da jornada.

— Estou um pouco cansada, tive que acordar várias vezes, meu marido ainda não aclimatou e continua com vômitos — a francesa respondeu — Jean está sem condições de subir o Áustria. Ele precisa descansar um pouco mais, já tomou dois comprimidos de “sorojche”.

— Não teremos outra oportunidade, Annapurna, só temos o dia de hoje para ascender ao pico Áustria. Depois de amanhã, antes do meio dia, teremos que chegar ao ponto de resgate — esclareceu o Guia.

—Também não tive uma noite muita tranquila, a temperatura no interior da minha barraca chegou a menos 5 graus. Mesmo protegido pelo saco de dormir e usando três peças de “segunda pele”, dois agasalhos de “fleece” e luvas, sofri com o frio — Gabriel comentou, olhando para raios solares refletindo nas montanhas cobertas de neve que circundavam a Laguna Chiar Khota.

Sixto aproximou-se de Gabriel e disse: — não tenho dúvidas que você está sofrendo bastante com o frio, com certeza é devido ao seu biótipo corporal, você está muito magro. Uma magreza que não parece ser salutar. Para atividades em altas montanhas, devido às baixas temperaturas, é necessário um pouco mais de gordura. No cume, enfrentaremos uma sensação térmica bastante desconfortante.

Ao final da conversa, o Guia perguntou: — Gabriel, você vai tentar o cume?

Gabriel, que ouviu atentamente as palavras de Sixto, entendeu que ele estava sugerindo a sua não ida ao topo do Áustria, o frio poderia prejudicá-lo seriamente. Antes de responder, o nosso personagem continuou apreciando o nascer do sol e refletindo sobre o que decidir. Pensou na conversa que teve com Luma antes de viajar. Ela havia exposto a opinião de que era contra a sua viagem. Lembrou-se do que dizia Cora Coralina sobre esses momentos:

“Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é decidir.”

E Gabriel, a despeito do que tinham lhe aconselhado, decidiu continuar e respondeu — vou participar da subida do Áustria. Mas dou minha palavra que, caso as condições climáticas piorem e eu não consiga suportar o frio, voltarei para o acampamento. Prometi isso aos meus filhos e a minha esposa.

Ok, Gabriel. Combinado — murmurou o Guia.

— Sairemos em dez minutos. Atenção: levar o mínimo de material na mochila, apenas um litro d’água; barras de cereais ou de chocolate; protetor solar; agasalho e “folha de coca”. Eu levarei a comida pronta para o nosso almoço. Subiremos em quatro horas. Dependendo das condições de vento, do frio e do nosso estado físico, poderemos ou não almoçar lá em cima apreciando as montanhas geladas da Cordilheira Real e ao longe o Lago Titicaca . Estimo que em três horas façamos o percurso de volta. É fundamental manter o ritmo, dar passadas curtas, mascar coca e acreditar na vitória.

Depois das recomendações do líder, o grupo iniciou a principal jornada daquela expedição. A caminhada era praticamente silenciosa. O simples ato de falar descompassava a respiração. Gabriel seguia junto do Guia, nada falava. Apreciava a paisagem hipnotizante, longe avistava o acampamento em miniatura. O esforço era enorme, mas ele seguia em frente e, repetidamente, olhava para o seu Garmin no pulso esquerdo e falava consigo mesmo: a cada passada atinjo meu recorde de altitude.

Sixto, que também nada falava, estava preocupado com Annapurna que não conseguia manter o ritmo e se distanciava do grupo.

— Agora estamos na altitude de 5.500 metros — Gabriel informou, com uma voz cansada e quase sem fôlego.

— Ok, respondeu Sixto, também um pouco ofegante. Siga em frente, eu aguardarei Annapurna.

Cerca de quarenta minutos mais tarde, o Guia alcançou o brasileiro e disse — a francesa não está conseguindo manter a passada. Não podemos ir mais lento, o tempo poderá mudar a qualquer instante. Ela retornará ao acampamento.

E assim aconteceu, Sixto e o brasileiro almoçaram no topo do Áustria, tiraram as tradicionais fotos de cume. Gabriel fez um vídeo com a GoPro mostrando o cenário fantástico, gravou uma mensagem de agradecimento à família e, em especial, à esposa.

Abaixo segue a transcrição de uma parte do áudio gravado na chegada ao ponto mais alto da Cordilheira Real que se consegue alcançar sem realizar escalada no gelo. O texto é curto e não tomará muito tempo, mas caso o leitor decida não ler, poderá continuar no próximo parágrafo sem perder a compreensão da história.

“Luma, eu não sei, neste momento, dizer se foi fácil ou difícil chegar ao cume do Áustria. Para muitos, com certeza, seria bastante fácil. Para alguns, seria muito difícil. Eu, apesar de estar quase no meu limite, ainda não sei como classificar. Obrigado pela força e por existir na minha vida. “Ya tebya lyublyu ””.

Ao final da tarde daquele terceiro dia da expedição, com vento forte e temperatura quase zero, os dois amigos retornaram ao acampamento. Para Sixto, significava a satisfação de mais uma missão cumprida, ter guiado mais um montanhista num local inóspito, onde só sobrevivem algumas espécies de vida, nas quais não está inclusa a humana . Para Gabriel, significava muito. Ele tinha, pela primeira vez, realizado um trekking na altitude de 5 mil metros e alcançado quase 6 mil. Significava muito mesmo, pois sempre acreditou no seu planejamento e preparo.

Todos que estavam no acampamento, o casal de franceses, os integrantes de outras equipes, perceberam que o brasileiro, que acabara de chegar do Áustria, estava no limite de suas forças físicas, o rosto queimado, lábios em “carne viva”. O aspecto piorava devido a sua magreza. A percepção era verdadeira. O aventureiro, trabalhador do mar, mas amante das montanhas, que naquele momento, estava sentado numa pedra à margem da Laguna Chiar Khota, olhando para o infinito, não estava bem. Sentia-se bastante fraco e com muito frio. Para quem já assistiu no You Tube a um vídeo ou leu um relatório sobre mortes de alpinistas no Himalaia por esgotamento físico ou hipotermia , poderia jurar que Gabriel não mais se levantaria daquela pedra.

Mas ele levantou, e atendendo ao chamado de Sixto, sentou-se próximo à pequena mesa de refeições, junto dos franceses. Depois da escaldante sopa de quinoa, comeu guisado de carne com legumes. Não comeu muito, sentiu o estômago pesado, mas comeu o suficiente para não ter vômitos.

Logo após o jantar e ouvir as instruções para o dia seguinte, quando iniciariam o percurso para o ponto de resgate, Gabriel foi para barraca, abriu a mochila, separou algumas roupas e, por cima do que já usava, vestiu camisas, agasalhos, calças, tudo que conseguiu. Entrou no saco de dormir e, olhando para o termômetro, adormeceu.

Por volta das 11 horas da noite, acordou com a garganta ressecada, os lábios queimando de ardência, com sede, com bastante frio e com uma ligeira tremedeira no corpo. Olhou para o termômetro, não acreditou no que lia: menos seis graus. Ligou o Garmin, que mesmo desligado para economizar bateria permanecia no pulso esquerdo, e confirmou a temperatura. Realmente estava mais frio que nas noites anteriores. Como de costume, fez xixi no frasco vazio de pet. Chacoalhou diversas vezes a garrafa d’água, mas não conseguiu beber, o gelo não derretia. Quis comer chocolate para aquecer o corpo, mas não obteve sucesso ao tentar abrir a lâmina do canivete para rasgar a embalagem. Notou que em menos de cinco minutos, o líquido amarelo dentro do pet havia congelado.

Estarrecido com o próprio descontrole, falou consigo mesmo: — não estou legal, meus dedos estão congelando. Nada pode derrotar-me, nem o cansaço nem o frio. Porra! Não vou ficar aqui congelado. Pensou na família. Tenho que voltar para o Rio. Preciso de ajuda. Vou chamar Sixto, acho que ele pode me ajudar.

Enrolado no saco de dormir caminhou, com certa dificuldade, até a barraca do amigo.

— Olá Sixto, sou eu Gabriel — por favor, amigo entre. Reparando a tremedeira e o estado, digamos crítico, do brasileiro, o Guia indagou — o que está acontecendo?

— Tenho que aquecer-me, estou congelando. Talvez, iniciando uma hipotermia.

Sixto ajudou Gabriel a se abrigar e, mesmo sabendo do risco, acendeu o fogareiro com a chama regulada na posição mínima, no exíguo espaço do interior da barraca, onde os dois amigos ficaram sentados. Degelou a água congelada em uma panela no fogo.

— Gabriel, fique tranquilo. Vou preparar chá de coca e chocolate — disse Sixto, procurando o termômetro digital no kit de primeiros socorros. Agora, preciso verificar a sua temperatura.

— Trinta e cinco graus, nada bom. Mas também não é critico. Você vai melhorar com o chá quente — falou o Guia demonstrando confiança no que estava fazendo.

E como disse o experiente boliviano, que guiava expedições nos Andes há mais de vinte anos, aconteceu. Aos poucos, após diversos goles de chá e de chocolate, a tremedeira de Gabriel diminuiu e a temperatura corporal voltou ao normal.

Sixto sabia que a melhora era passageira, o brasileiro não tinha massa corporal para permanecer por mais tempo naquelas condições adversas de clima. O único tratamento confiável era descer o mais rápido possível para o ponto de resgate.

— Durma um pouco, Gabriel. — disse o Guia — você não está suportando o frio, não podemos arriscar outra queda na sua temperatura, sugiro anteciparmos a nossa partida. Podemos sair, eu e você, uma hora antes do amanhecer. Os franceses e os carregadores sairão no horário programado. O que você acha? Eu providenciarei tudo.

Naquele momento, o que mais desejava Gabriel era voltar para casa.

— Ok, ele respondeu — vamos começar a caminhar logo que possível.

E caminharam até serem resgatados pela mesma viatura que os tinha deixado em Tuni.

No final da tarde do dia que antecedeu a chegada à La Paz, ainda nas montanhas andinas, os franceses e carregadores alcançaram o Guia e o brasileiro. O acampamento foi montado, na localidade de Maria Llocko, na altitude de 4.900 metros. E seguindo o costume, um jantar especial de despedida foi servido. Annapurna e Jean fizeram questão de agradecer e elogiar o profissionalismo de Sixto. Gabriel, por estar com os lábios queimados, optou por não estender as suas despedidas, agradeceu e cumprimentou o líder, os carregadores e o casal de Cannes, finalizou externando a sua satisfação de ter participado daquela expedição, pequena quando pensada em termos de dias, mas para ele, gigantesca pelos desafios vencidos.

De Volta à Capital Boliviana...

No hotel, na noite de 5 de junho, após um banho bem quente e bastante demorado, Gabriel fez contato com a esposa. Ligou do seu smartphone, utilizando a internet para uma conversa com vídeo. Ao ver o rosto do seu marido no celular, Luma imediatamente percebeu que ele não estava bem. Conversaram sobre as dificuldades do trekking causadas pelo frio e sobre o jantar de chegada com os filhos, noras e a neta. Luma optou por um encontro familiar na varanda do apartamento. Talvez já imaginando que Gabriel não estaria curado das queimaduras em dois dias e com disposição para irem a um restaurante. Disse que prepararia salmão ao molho, receita que ela mesma criou, para servir com vinho carménère chileno. A esposa sabia que o marido, com pequenas variações, comia sempre frango ou peixe grelhado, com salada ou legumes ao vapor. Depois de conversar com Luma, Gabriel teve a oportunidade de também falar com seu filho caçula e a nora que estavam visitando a mãe naquela noite.

No Voo de La Paz para o Rio...

Gabriel lia “O Palácio de Inverno”, de John Boyne, um dos seus autores favoritos, mas não conseguia concentrar-se no livro. Cabeceava de sono e cansaço. Não parava de pensar nas dificuldades que havia passado. Em um rápido cochilo, sonhou que estava sentado em uma pedra, morrendo com corpo congelado.

Ele não conseguia ler nem dormir. Não sabia o motivo, mas estava preocupado, ansioso para chegar — mentalmente se perguntava: por que escalo montanhas? Qual a finalidade de se levar dias subindo uma montanha e não passar 30 minutos no cume? Seria apenas para admirar o silêncio, olhar o infinito e perceber como somos pequenos em relação à natureza? Ou somente para registrar fotografias, comer uma maçã e logo descer? Para que todo esse esforço se a escalada não te dará um título, uma medalha ou um troféu? Vale a pena se afastar das pessoas que você ama e correr todo o risco para nada?

Será que realmente tudo isso é por nada? Será que não há um sentido por trás de tudo? — Eu, simplesmente, não sei responder — dizia para si mesmo. Sei o que respondeu George Herbert.

Talvez um dia, num cume, olhando para o infinito, apreciando o silêncio eu encontre a minha verdadeira resposta.

De Volta ao Rio...

Recordando o início da nossa história, na madrugada daquela quinta-feira, 7 de junho, quando Gabriel Ever Montes estava chegando de viagem. Lembra? Na realidade, se observássemos bem, além de reparar que o nosso personagem, de certo modo se distinguia dos demais passageiros, notaríamos também que, diferente das outras chegadas, havia sim alguém o esperando. Luma estava lá, no hall do aeroporto, aguardando o seu marido.

Ao avistá-lo, ela corre ao encontro de Gabriel, abraça-o e, com os olhos em lágrimas, cochicha algo em seu ouvido. O marido, bastante abalado, pergunta no mesmo tom de voz: — onde eles estão agora? Ninguém escuta o que eles conversam, mas percebem uma profunda tristeza no casal. Eles saem apressados, de mãos dadas, seguem para o estacionamento...

A partir deste ponto da história, com o casal, Gabriel e Luma, saindo do Galeão na sua Toyota Etios, é que se dará início à narrativa em que dois novos personagens, os verdadeiros heróis, serão apresentados e demonstrarão em atitudes e comportamentos “uma história de superações”.

Mas como este autor já ocupou a paciência do caro leitor com algumas páginas sobre as aventuras do “pai e sogro” dos personagens que surgirão, os acontecimentos e desfecho desta parte do conto serão narradas no nosso próximo encontro.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 21/08/2016
Reeditado em 17/10/2017
Código do texto: T5735034
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