O PODER DO MUITO QUERER

Na sexta-feira à tardinha, eu e o amigo Moizés estivemos em uma demolidora de veículos para comprar uma peça que pudéssemos aproveitar no carro da família. Após encontrarmos a peça desejada, depois das conversas relativas ao negócio, enquanto o mecânico local retirava a peça do veículo sucateado, uma conversa descontraída levou-nos à história da vida do dono da demolidora, que nos contou que saiu da casa onde crescera apenas com um cobertor dado por seu pai, sem dinheiro, sem ter para onde ir, apenas com o propósito de alcançar uma condição de vida melhor do que a que até então conhecera.

Nos contou que vinte anos atrás, quando saiu da casa dos pais, a única instrução que recebe foi o conselho do pai para arrendar terra e tornar-se agricultor. Não lhe disse o pai, porém, quem lhe arrendaria terra e onde ele encontraria essa pessoa. Apenas disse-lhe que fosse pelo mundo, entrasse de propriedades em propriedade, falasse com os proprietários, conquistasse sua confiança e lhes propusesse arrendar-lhe suas terras.

Ao sair da casa, porém, ser agricultor era tudo o que ele não queria, visto que conhecera a dureza do oficio da lavoura, com o qual seu pai com muita dificuldade mal alimentara os filhos, sem poder dar-lhes estudo e tampouco qualquer tipo de conforto. Pensava em arranjar um emprego em que recebesse o salário mensal, independente de quanta chuva caísse e quanto o sol ardesse. Com tal propósito, procurou e logo encontrou trabalho em uma indústria madeireira, onde primeiro trabalhou carregando nos ombros pranchões de madeira para as pilhas. Essas peças largas eram desdobradas das toras gigantes, tinham oito centímetros de espessura e pesavam em torno de cem quilos cada. Tratava-se de um trabalho muito pesado.

Mas ele suportou o “repuxo”, não perdendo o foco do propósito original. Para tanto, prestava atenção no trabalho de um homem que operava uma máquina por ali, próximo a onde ele trabalhava. Atentava para os pormenores das operações do homem, memorizando um a um os procedimentos. Imaginava que o salário dele fosse melhor que o seu, além que seu trabalho era bem menos pesado, visto que predominantemente era a máquina que o executava. Preparando-se para a oportunidade quando surgisse, ele captou tudo quanto foi possível aprender, até o dia em que o colega não compareceu ao serviço e o contramestre viu-se sem ter com quem substitui-lo. Para sua surpresa e também alívio, o jovem rapaz apresentou-se para operar a máquina, assegurando que estava perfeitamente qualificado para operá-la. E, recebendo a oportunidade de demonstrar sua habilidade, ele executou naquele dia o trabalho do profissional faltoso, fazendo-o com habilidade igual à que comumente o funcionário oficial executava.

No dia seguinte, retornou humildemente à função costumeira de carregar pranchões, atento, porém, a oportunidades que poderiam surgir, o que não tardou muito para acontecer. Poucos dias se passaram e logo o operador da máquina faltou novamente, dando-lhe nova chance de ocupar sua posição. E muitas outras faltas se seguiram, como se desejasse mesmo ser demitido, o que culminou na demissão, quando nosso amigo foi efetivado na função e passou também a receber um salário superior.

Muito ouvira, porém, do quanto eram maiores as oportunidades no Brasil. Decidido daí a deixar o Paraguay, onde nascera e vivera até então, com o documento de identidade do pai, cruzou a fronteira para o Brasil, sem ainda saber ler e escrever. Em Novo Hamburgo se estabeleceu no bairro Canudos, de onde deslocava-se a pé para a para o trabalho na avenida Sete de Setembro, mais de oito quilômetros de distância, no lado oposto da cidade. No trabalho da avenida Sete de Setembro ganhava cinquenta e cinco centavos de real por hora de trabalho, perfazendo pouco mais de quatrocentos reais por mês. Entretanto, a despeito das dificuldades, especialmente a distância para o trabalho, não perdia o propósito original de vista. Querendo ganhar mais, seguidamente consultava a quem podia sobre possibilidades profissionais mais rendosas.

Certo dia perguntou a um colega de trabalho como se podia fazer para tornar-se mecânico de automóveis. O colega lhe respondeu que precisava fazer um curso. Ele não sabia o que significava curso. O colega lhe explicou que era como ir ao colégio quando se aprende a ler e escrever. Ele ainda não frequentara a escola para aprender a ler e escrever, mas sabia como isso funcionava. Entendendo então o que significava, saiu a indagar onde haveria um curso que ensinasse a ser mecânico de automóveis. Logo lhe indicaram que havia um curso no SENAI. Tratava-se de um curso teórico prático, muito mais prático do que teórico, segundo contou. Ele procurou a escola e matriculou-se para o curso, cuja mensalidade custaria sessenta reais por mês. Entretanto, ele não sabia ler. Sendo assim, não poderia copiar a matéria, tampouco recapitular em casa. Mas poderia compensar prestando muito mais atenção nas explicações e dedicando-se infinitamente mais às aulas práticas. Para tanto, em vez de frequentar o curso um dia por semana, como era o usual, decidiu frequentar dois dias por semana. E para tanto precisou pagar um curso excedente, somando um total de cento e vinte reais por mês, tirados de quatrocentos reais, de onde tirava também o sustento e a moradia. Assim, não tinha mesmo como pegar ônibus, obrigando-se a andar de Canudos à avenida Sete de Setembro, para o trabalho, daí ao Centro da cidade, para o curso á noite, e daí à Canudos, após as vinte e três horas, para casa, perfazendo quase vinte e cinco quilômetros por dia.

Mas valeu-lhe o esforço. Logo ele já estava consertando carros para os amigos em casa nas horas de folga. E, embora que não cobrasse nada, pois estava aprendendo, isso rendeu-lhe a oficina que mais tarde montou, culminando no que hoje tem: a próspera demolidora, a oficina mecânica e o comércio de carros e peças recuperadas, onde emprega os serviços de bom número de pessoas. E disse satisfeito que trabalha muito, mas volta diretamente para a família ao fim de cada jornada, pois tudo o que faz e o dinheiro que ganha é para produzir conforto para sua esposa e filhos.

Wilson do Amaral