CÃES DE GUERRA

Antes dos MUNDOS PARALELOS ® entrarem em colisão...

Cães de Guerra.

Gwai era um pequeno lugarejo na época, onde só havia uma taberna. Quer dizer, uma taberna que prestasse.

Quando se viram sós, Sarrazin e Sotto encaminharam-se ao local, no qual provocaram enorme rebuliço entre os frequentadores ao entrar, com seu aspecto ameaçador, armados até os dentes, com seus rostos barbudos, sujos de graxa e pólvora e suas roupas de camuflagem ensanguentadas e cobertas de pó. Apenas suas armas estavam reluzentes, cheirando a óleo lubrificante.

Os poucos nativos que aí se encontravam levantaram-se e saíram devagar sem fazer movimentos bruscos, amedrontados pela fama dos cruéis matadores de rebeldes.

Os brancos permaneceram, mas baixaram as vozes, alguns calaram e olharam desconfiados para aqueles dois estrangeiros de terrível aspecto. Todo mundo sabia para que estavam em Gwai.

O dia da sua chegada tinha sido traumático para os escassos habitantes, como traumáticos eram sua permanente presença nos arredores e o compulsivo medo que inspiravam a nativos e brancos. Ninguém ousava fazer algum movimento que pudesse ser mal-interpretado, nem emitir palavra alguma mais alta do que outra, que pudesse provocar uma tragédia; já que é verdade, desde séculos imemoriais, que os mercenários são incontroláveis.

Os recém chegados procuraram a mesa menos suja e sentaram-se frente a frente com intuito de proteger-se mutuamente as costas; colocando seus fuzis automáticos em cima da mesa em posição fácil de disparar em caso de emergência. O taberneiro fez menção de sair de atrás do balcão. Mas Sarrazin pediu antes:

–Whisky, please.

–Yes, sir. – Respondeu o taberneiro branco, e perguntou:

–What kind of whisky do you like?

Sarrazin passeou seus olhos nas prateleiras bem sortidas e escolheu:

–Ballantine's, please.

–Yes, sir.

Imediatamente o taberneiro desencantou uma garrafa quadrada e dois copos, tentando não rir do ridículo inglês do mercenário. Assim que as bebidas foram servidas, o taberneiro retirou-se com presteza, e os dois amigos chocaram os copos, como quando se reuniam sob os arcos do Palácio Salvo, com o resto da turma e beberam.

–Está bom – disse Martin esvaziando o copo.

–Bom mesmo – disse Miguel.

Encheram de novo os copos e deram uma olhada em volta. Apesar de que havia umas quinze pessoas no local, só se ouvia o barulho monótono do ventilador suspenso no teto, que mal conseguia diminuir o pesado e úmido calor da Rhodesia.

–Maravilha – disse Martin bebendo outro gole.

–Nada a ver com o Schnaps do coronel Schneider.

–Nada mesmo – disse o mercenário sem deixar de olhar ao redor.

Agora Martin voltava a ser Sarrazin e estava mais calmo. Sua velha percepção que tantas vezes tinha lhe salvado a vida, voltava mais aguda por milagre do álcool, e percebeu que a evidente hostilidade dos presentes não era medo.

–Ai, ai – sussurrou ao amigo.

Miguel, que tinha voltado a ser Sotto, como antes, como na escola e no quartel, ainda conseguia perceber os pensamentos do seu amigo de infância. Soltou o copo em cima da mesa, pegou seu fuzil automático de calibre 7,62, capaz abrir um rombo nas paredes da taberna e comprovou o carregador. Depois o engatilhou ruidosamente, provocando arrepiar de cabelos entre todos os presentes.

Engatou o seguro e colocou a arma encima das pernas, passeando seus olhos esbugalhados de assassino de rosto em rosto. Sarrazin, mais calmo, apenas acariciou ostensiva e voluptuosamente a média dúzia de granadas de fragmentação que levava engatada nas correias do peito do seu colete de combate, uma só das quais poderia levar o boteco inteiro ao inferno com todos os presentes dentro.

–Quanto tempo fazia que não bebíamos assim tão calmamente, Miguel?

–Sei lá.

–Deveremos comprar mais algumas garrafas para levar conosco.

–Santas palavras.

–Encheremos nossos cantis.

–Até a rosca.

–Igual que o Herr Oberst Schneider.

–Igual.

–Velho bêbado. Carrega aquela porcaria de Schnaps no cantil, que eu sei.

–Carrega.

–Velho bêbado!

–Igual a nós.

–Igual.

Os dois começaram a rir. O taberneiro suspirou aliviado.

Talvez não houvesse nenhuma briga. Talvez não quebrassem nada. Talvez não matassem ninguém.

Pediram mais quatro garrafas enquanto desengatavam seus cantis das correias e esvaziaram o resto de água no chão de madeira mal pregado e cheio de buracos.

Quando o taberneiro trouxe as garrafas, quatro cantis de um litro estavam em cima da mesa.

Carinhosamente os mercenários encheram seus cantis tão vazios como seus estômagos. Depois seguiram bebendo alegremente e comeram algumas coisas estranhas, assadas ou fritas, de cor marrom amarelado e algumas frutas que havia em expositores de cristal encima do balcão.

Depois de satisfeitos, secaram a garrafa e pediram outra. Finalmente, pagaram o taberneiro, que se desfez em reverências; pegaram seus cantis, suas armas e saíram à rua, já escura.

–Precisamos arranjar lugar para dormir – disse Sarrazin.

–Há uma choupana com letreiro de hotel, na outra rua.

–Se dormirmos nossa bebedeira aí, Miguel, não acordaremos nunca.

–Pois é...

O problema que agora enfrentavam era sério.

Dois mercenários, homens perigosíssimos fortemente armados; uma vez dormidos seriam presas fáceis para qualquer inimigo; esperto ou não.

E o território em que se encontravam era declaradamente hostil. Tanto nativos como brancos, representavam perigo imediato naquele lugar.

Era preciso achar uma solução, e rápido, antes que o sono fosse insuportável. Finalmente, encontraram um decadente armazém de cereais numa escura e solitária rua lateral, e, sem que ninguém percebesse, entraram pelos fundos, encontrando o lugar ideal: uma pilha de sacos de grãos de uns três metros de altura.

–Aí deve ser macio, Miguel.

–Vamos lá. Ninguém nos viu entrar.

Prontamente escalaram a sacaria e se ajeitaram para dormir, abraçados dos seus fuzis. E assim passou a segunda noite em que o Alouette não apareceu.

*******.

O Pássaro Ferido.

O sol já estava alto, quando foram acordados pelo barulho do helicóptero. Saíram apresados do depósito, depois de recolher seus pertences e correram ao descampado que usavam como base, o lugar onde Bixby deveria descer.

O aparelho apresentava sinais de batalha muito piores dos que tinha adquirido em Basuto. Estava preto de fumaça e sujeira, com a pintura arranhada e cheia de buracos de bala 7,62.

A turbina esquerda falhava constantemente, dando a impressão de uma máquina destinada a autodestruir-se rapidamente. Quando aterrissaram, se a isso se pode chamar de aterrissagem, Quentin Quayle saltou a terra com o braço esquerdo enfaixado e a roupa ensanguentada. Bixby saltou depois de desligar os motores. Seu ferimento na cabeça estava coberto com uma venda suja de sangue coagulado.

–Que aconteceu para demorar tanto? – perguntou Sarrazin.

–Custou muito para consertar – disse Bixby e acrescentou:

–Assim que decolamos fomos atacados por um bando de rebeldes a pé que vinham do sudoeste.

–Mas acabamos com eles – interrompeu Quayle – só não havia condições de pegar as cabeças.

–E depois – prosseguiu Bixby – perdemos o rumo e fomos parar na borda norte do pântano salitroso de Makarikari. Até que descobri que a bússola estava quebrada.

–Demos voltas à toa, gastando combustível – interveio Quayle.

–E quando consegui me orientar já estava de noite e tivemos que descer na savana. Passamos a noite acordados, rodeados de feras arranhando a lataria.

–Não podíamos atirar nelas para não fazer barulho.

–E aqui estamos, com o tanque só no cheiro – arrematou Bixby.

–Ainda bem – disse Sotto.

–Mas precisamos consertar a máquina com urgência – disse Bixby – Ela já não suportará mais remendos e matações.

–Conseguirá nos levar nós quatro até Hartley? – quis saber Sarrazin.

–Duvido. São mais de trezentos quilômetros em linha reta. Um motor está falhando muito, há vazamento de óleo e um cabo está desfiado, preste a rebentar.

–Há uma oficina mecânica perto daqui – disse Sotto – poderíamos tentar mais um remendo.

–Ok, ok! Mas e o combustível?

–Isso não é problema – disse Sotto – ainda há uns oito barris que enterramos na base quando tomamos este lugar. Mais de mil e seiscentos litros. Deve dar.

–É verdade – disse Sarrazin – tinha esquecido disso.

–Ok. Vamos tentar mais uma vez – suspirou Bixby.

–O que temos a perder? – disse Sotto.

–Precisamos agir rápido antes que os habitantes percebam que estamos vulneráveis – disse Sarrazin.

–Ok. Mas devíamos tomar um banho e mudar de roupa – disse Quayle – nossos estados são lamentáveis, Bixby.

–Depois, Quayle – disse o piloto – Primeiro temos que consertar o pássaro.

*******.

A chegada da noite em Kalahari interrompeu as recordações de Sarrazin.

Levantou-se devagar, e pegando suas coisas, empreendeu a marcha de retorno ao riacho seco. Acendeu um cigarro, e com a brasa conferiu sua bússola. Depois apressou o passo, enquanto desatarraxava a tampa do cantil e bebia dois goles daquela água horrível. Saudades do Scotch, saudades de casa. Nunca havia se sentido tão só.

Saudades das outras pessoas, que embora formando pequena parte da sua vida, agora estariam vivendo suas vidas sem lembrá-lo.

A esta hora, seus camaradas da legião já deveriam declará-lo perdido ou morto.

Monsieur Level deixaria passar ainda dois meses antes de solicitar o seguro de vida de vinte mil dólares americanos para remeter à família do mercenário. Deveria inventar uma morte: "morre tripulante de navio" panamenho ou liberiano; talvez de apendicite, talvez uma caldeira explodindo...

Quê morte escolheria Monsieur Level para Martin Juan Sarrazin?

Talvez os amigos escolheriam uma morte bonita para contar aos parentes em América do Sul. Ou talvez contassem a verdade; que os ossos de Martin Juan Sarrazin ainda devem estar lá; nas areias vermelhas de Kalahari branqueando com o sol...?

*******.

Kalahari não é um deserto como os outros. É uma espécie de meseta árida na qual habitam os aborígines denominados bosquímanos e também estão os hotentotes. Há em Kalahari uma certa vegetação do tipo caatinga, que subsiste graças às chuvas, freqüentes em determinadas estações, que embora de curtíssima duração e sempre localizadas, podem ser extremamente violentas.

Sarrazin sabia que estava jogando sua última cartada. Se, retornando ao riacho seco, não encontrasse água, estava definitivamente perdido. Mas como a esperança é a última que se perde, achava que se o riacho estivesse seco, ainda poderia escavar o leito e encontrar água a poucas polegadas de profundidade.

Também havia uma certa planta com uma raiz enorme cheia de água, que os nativos tinham mostrado a ele, só que não conseguia achá-la em lugar nenhum.

Também poderia chover de novo, como tinha chovido dois dias atrás, o que indicava que o riacho não deveria estar seco. Mas as chuvas de Kalahari eram localizadas. Podia chover em um lugar e cinqüenta quilômetros mais adiante não cair nem uma gota. Se chovesse estava salvado.

A esperança lhe deu forças e apressou o passo.

*******.

Por momentos Sarrazin voltou a Gwai, na sua mente transtornada:

–Devíamos tomar um banho e mudar de roupa – disse Quayle – nossos estados são lamentáveis, Bixby.

–Depois Quayle – disse o piloto – Primeiro temos que consertar o pássaro.

–Ok.

–Temos que sair deste lugar. A esta altura os rebeldes devem saber que estamos sozinhos e com o helicóptero quebrado em terra – disse Sarrazin.

–Seremos presas fáceis – disse Sotto – Vamos nos mexer!

Quayle aceitou a argumentação dos camaradas, e esquecendo seu cansaço, entregou-se aos reparos. Agora, tudo era questão de tempo.

*******.

Levaram o dia todo até acabar com os reparos. Ao escurecer, o Alouette estava em condições de voar.

–Vamos voar de noite? – perguntou Sarrazin.

–E porque não? – disse Bixby.

–Podemos nos perder. Lembra que a bússola...

–Você tem uma bússola portátil?

–Tenho.

–Vai servir.

–O importante é sair daqui depressa. É um milagre que os rebeldes ainda não tenham nos atacado – interveio Sotto – o ambiente está cada vez mais hostil.

–Se souberem que estamos vulneráveis vão criar coragem – disse

Sarrazin.

–A esta altura todo Gwai deve saber do nosso problema – disse Sotto – não esqueçam todo o material que pegamos na oficina mecânica.

–Agora não temos mais problemas – disse Bixby – podemos voar, temos kerosene de sobra, e a munição que enterramos estava intacta.

–Já podemos embarcar – disse Quayle – está tudo carregado.

–De noite? – disse Sotto.

–Sim. Partamos logo – disse Sarrazin – não quero passar outra noite aqui.

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Próximo: PERDIDO EM KALAHARI

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O conto CÃES DE GUERRA - forma parte integrante do romance inédito HISTÓRIA DE MARTIN ® – Volume I, Capítulo 6; páginas 47 a 51.

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 25/12/2016
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