A DOUTORA

Antes dos MUNDOS PARALELOS ® entrarem em colisão...

Perdido em Kalahari.

As feridas de Harris não eram graves, mas evidentemente ele não poderia aguentar os solavancos do Land Rover.

Portanto Schneider determinou que fosse no seu caminhão, até que a coluna fosse alcançada pelos helicópteros quando o dia viesse.

O prisioneiro foi amarrado boca abaixo encima do capô do último caminhão da caravana, dirigido por Miguel Sotto.

–Para que coma bastante poeira, como nos fez comer a nós – disse ele.

–E que sinta o doce calor da lata quente – acrescentou o sádico Auguste Argot, que viajaria com Sotto. – Weber e Derot eram dois camaradas admiráveis, maldito!

–Não o deixem morrer – advertiu o coronel Schneider – ainda temos que fazê-lo falar algumas coisas antes de entregá-lo ao nosso cliente.

–Oui Monsieur – disse Argot.

Sarrazin abasteceu o Land Rover e pegou duas latas de gasolina.

–Seguirei a coluna à distância, Herr Oberst, para não comer muita poeira.

–Como quiser, Herr Sarrazin, Mein Freund, você ganhou a recompensa pela cabeça do sujeito.

–Quero apenas dois mil. O resto fica para o caixa da turma. Além do mais Derot e Weber talvez tinham famílias...

–Como quiser. Quanto às famílias dos camaradas... não sei se eles tinham alguma. Não sei mesmo – Schneider estava triste, apesar da sua frieza externa.

Assim, a coluna partiu com Sarrazin sozinho no jipe da retaguarda, bem atrás, para evitar o pó. Seguindo cada veículo a silhueta do veículo da frente com uma distância entre eles de mais ou menos cinqüenta metros. Pouco antes do amanhecer desatou-se uma tormenta.

*******.

As tormentas de Kalahari são breves, porém muito violentas.

Em poucos minutos, lugares insuspeitos transbordam de água, sem dar tempo para procurar lugares altos para proteger-se.

Apenas os inúmeros animais do deserto conseguem se salvar, porque eles têm o senso de prever essas forças da natureza bem antes que aconteçam. O que não acontece com os humanos.

Leitos secos de arroios, em seguida enchem e aquela água avança com pavorosa rapidez. Lagoas formam-se, e o verde aparece, por poucos dias antes das lagoas e os arroios secarem com a mesma rapidez com que se formaram.

Os caminhões, embora tivessem tração em todas as rodas, assim como os jipes, começaram a derrapar e atolar-se, nos lugares mais baixos, onde o chão parecia um sabão e em outros, argila mole, obrigando os homens a descer e empurrar em vão no meio daquele dilúvio.

–Parem! – gritou o coronel – não há condições de continuar. Vamos passar o resto da noite aqui.

Sarrazin, ensopado e com frio, enrolou-se numa manta e ajeitou-se para tentar dormir no banco do jipe o melhor que pôde. Pouco antes das quatro e meia, a chuva parou com a mesma rapidez com que começou.

As nuvens retiraram-se e a lua e as estrelas apareceram iluminando a fantasmal cena da caravana atolada no chão argiloso. Sarrazin contemplou as estrelas do hemisfério sul, as mesmas que iluminaram seu nascimento. Bem ou mal, conseguiu dormir profundamente pelo cansaço.

Foi despertado pelo sol alto e o calor que levantava malcheirosos vapores das suas roupas empapadas, e do chão do jipe, cheio de água encharcada.

À frente, onde deveria estar o caminhão de Miguel Sotto havia apenas as marcas de derrapagem num chão praticamente seco. Então percebeu o que tinha acontecido.Partiram sem ele.

Estava tão profundamente dormido que não ouviu a ordem de partida nem o barulho dos motores lutando para desatolar-se.

–Já estou encrencado de novo, quê merde!

*******.

Sarrazin consultou sua bússola, depois de examinar as marcas da trilha da caravana. Ao meio-dia improvisou um sextante com alguns gravetos e consultando seu mapa deduziu corretamente que a caravana tinha mudado o rumo para um ponto um pouco mais para o sul.

–Com certeza foram para Mahalapye, onde poderão pegar a estrada para o rio, e daí, à esquerda, remontarão o curso para Serowe. – disse para si mesmo.

Era um bom percurso, porque em Mahalapye, poderiam achar um médico para atender os feridos. De repente Sarrazin compreendeu que os helicópteros já deveriam ter passado e estariam em Serowe.

–Não posso seguir a trilha deles. Devo traçar um curso direto a Serowe, se não quero perder o avião.

Assim, Sarrazin teve que empreender um curso para o nordeste, para retomar a trilha original e procurar seguir o mais em linha reta possível, para cortar caminho pelo deserto, visando alcançar Serowe, se não antes, pelo menos ao mesmo tempo em que o resto da caravana.

*******.

Nashuko.

E agora, depois de ter perdido o Land Rover, depois de ter passado por todas aquelas penúrias, Sarrazin caminhava rápido com bastante água e com motivação, embora achasse que já tinha perdido o avião. Não se importava com isso, já que estava vivo, havia matado um bando inteiro de rebeldes, tinha bastante munição e achava que escaparia dessa.

Seu passo era bom, e após onze horas de caminhada calculava ter feito

de cinqüenta a cinqüenta e cinco quilômetros. Estava satisfeito. Ainda sentia vontade de caminhar mais, aproveitando o frescor da noite, mas seu treinamento falou mais alto e resolveu parar para dormir um pouco. Seu relógio indicava três horas da manhã.

Despertou com o sol alto, eram oito da manhã. Comeu o resto das bolachas e abriu a última lata de ração concentrada regada com bastante água, que ainda conservava o frescor da noite e retomou a caminhada, satisfeito e quase feliz.

Faltavam apenas cem quilômetros para chegar a Serowe, vinte horas de

caminhada. Quando foram duas da tarde teve que parar, o calor era demais. Procurou sombra na beira de um barranco e deitou-se para tentar dormir, embora soubesse que não o conseguiria.

Estava preocupado. Agora já dava por descontado que o avião teria partido sem ele, que seria considerado desaparecido, talvez morto.

Quando chegasse a Serowe, poderia ter problemas, já que não era conhecido no lugar, e com certeza haveria inimigos na cidade. Mas isso seria corriqueiro, um mercenário sempre tem inimigos em todo lugar. Finalmente conseguiu adormecer, embora com um sono agitado, e assim

esteve até as cinco da tarde.

Apesar disso acordou motivado e de bom humor.

Retomou a marcha rumo leste com energia. O sol estava menos inclemente nas suas costas. Duas horas e dez quilômetros depois, achou o avião caído da Cruz Vermelha Internacional, apontando para o leste. Em seguida percebeu o cheiro inconfundível de defunto.

–Coitados! – disse com sinceridade para si mesmo.

*******.

Chegando mais perto pôde ver os abutres em bando em torno dos destroços. De repente ouviu um choro. Parecia choro de criança, mas logo viu que era um choro de uma mulher pequenina, como uma criança.

Uma mulher ferida, que estava sendo atacada pelos horríveis pássaros.

Sarrazin engatilhou seu fuzil e disparou no vulto dos abutres. Duas rajadas foram suficientes para matar meia dúzia de aves e afugentar as restantes, que ainda permaneceram pairando alto sobre o local. Um rápido correr de olhos, foi suficiente para que o mercenário reconstruísse mentalmente o que tinha acontecido aí.

O aparelho, evidentemente tinha tentado uma aterragem forçada, era o que indicavam duzentos metros de despojos, até a cabine amassada e quase enterrada na areia. O piloto e co-piloto estavam mortos nos seus lugares. As asas e os motores estavam longe da cabine e tinham se incendiado, talvez explodido.

Outro tripulante, uma mulher, havia conseguido sair fora mas evidentemente não suportou os ferimentos e morreu quase em seguida. Outros dois, um homem e uma mulher, deitados juntos, tinham morrido recentemente e sem dúvida foram atendidos pela pequena mulher ferida, que se não fosse atendida, morreria em um dia ou dois.

O mercenário pendurou o fuzil e chegou perto da mulher vestida de macacão branco de médica. Seu rosto estava coberto de cinzas, sangue e lágrimas e ainda segurava um grosso graveto com o qual se defendia dos abutres.

Ele pegou seu cantil e tentou dar água à mulher, uma japonesa da missão de Chukudu Kraal, que recuou assustada, ao deparar-se com aquele terrível sujeito armado, barbudo e sujo; talvez achando que seria morta de vez. For fim a sede foi mais forte e ela aceitou o cantil.

–What is your name? – Perguntou ele.

–Nashuko.

Ele examinou as feridas da japonesa Nashuko e comprovou que; a não ser uma batida já cicatrizada na cabeça; não eram de gravidade, além da febre. Com seu estojo de campanha, remendou as bicadas e arranhões dos abutres o melhor que pôde.

–Thank you, Mister...

–Martin. My name is Martin.

–Thank you, Mr. Martin.

Logo depois, preparou junto a algumas rochas, um abrigo com sua manta de campanha e restos de cobertores que achou no avião e a fez deitar-se à sombra, com um pano úmido amarrado na testa.

–You need to rest. I will make another thing – disse ele.

–Yes, thanks you.

A garota, sem dúvida tinha uma grande resistência física. Tinha ficado sozinha todo esse tempo, sem ajuda, enfrentando os abutres e atendendo seus dois camaradas feridos que tinham morrido perante seus olhos sem que ela pudesse fazer nada.

O cruel mercenário ficou comovido. Com ajuda de pedaços de metal do avião, cavou cinco sepulturas rasas para os japoneses mortos. Apenas para que os abutres não continuassem depredando-os.

Depois, fazendo das tripas coração, enterrou os corpos, sob o olhar atento da jovem japonesa.

Agora, além do atraso, Sarrazin tinha outra boca para beber a preciosa água e para detê-lo mais um dia, pois duvidava que a garota estivesse em condições de caminhar ao seu passo de soldado.

*******.

Sarrazin resolveu que deveria passar aí a noite para permitir um descanso à garota, que, sem dúvida não dormia desde o acidente, e para ele mesmo, que tinha cavado cinco sepulturas depois de caminhar a marcha forçada no deserto.

Ele ainda conseguiu resgatar do avião, antes que a noite estivesse escura demais, algumas latas de mantimentos. Pouca coisa: corned beef, patê, fruta em calda, cerveja sul-africana. Ao menos para um dia seria suficiente.

Quando retornou à improvisada barraca, Nashuko estava dormindo, talvez por primeira vez em dias. Colocou com suavidade a mão na testa da garota e comprovou que a febre estava diminuindo. O frio da noite ajudaria.

Sarrazin então se deitou junto dela sem fazer barulho e remexendo nos bolsos encontrou os cigarros. Acendeu um, e à luz do fósforo, olhou o relógio: duas horas.

Faltava muito ainda para o amanhecer e não conseguia dormir. Ficou olhando para o belo rosto da jovem, lembrando de outras mulheres amadas e começou a gostar da jovem médica japonesa. Com carinho escreveria, posteriormente, em sua homenagem:

Nashuko

Caístes do céu numa bola de fogo,

Aquele entardecer de África.

Teu rosto coberto de cinzas e lágrimas

Surgiu no meio dos despojos fumegantes.

Teus amigos foram-se para sempre.

Tu não me entendias

Tinhas medo de mim,

Suado, barbudo e armado...

Para ti eu era um bárbaro

E tu eras tão delicada e suave...

Tremendo de medo, aquela noite...

Refugiastes-te na minha barraca

Enquanto as feras de Kalahari

Rugiam na distância.

Abri cinco sepulturas

Para que teus amigos

Pudessem descansar...

*******

O mercenário e a pequena doutora terminaram seu desjejum antes das sete. Ainda sobrou uma lata de carne e uma de cerveja. Sarrazin colocou tudo na sua mochila, com o resto da água, que era suficiente para uma caminhada de um dia. A jovem pegou uma pequena carteira com seu passaporte e algum dinheiro, que tinha ficado no avião, ao qual aproximou-se com relutância.

Pela manhã rezastes

Na tua incompreensível língua

Aos teus deuses orientais

Pela alma e o descanso

Dos cinco sepultados.

Dando uma olhada no mapa, Sarrazin marcou um ponto. Se não estivesse errado deveria encontrar um poço. Um oásis, e justamente para o lado onde na noite, percebera uma tormenta. Poderia ter chovido. Depois desse poço faltariam apenas vinte e cinco quilômetros para chegar a Serowe.

*******.

Praticamente não trocaram palavra nenhuma desde que começaram a caminhar. A japonesa parecia de ferro após uma noite bem dormida. Talvez estivesse no limite das suas forças mas não emitiu nenhuma palavra de dor ou de queixa. Sarrazin estava maravilhado da resistência da moça, mas não podia parar para preocupar-se por ela, já que a situação não o permitia. Era grave demais para ponderar.

Sarrazin sentiu que dominava a situação. Apesar do atraso, contava com chegar ao poço, acampar e depois partir para a última etapa da caminhada. Chegaria a Serowe com a doutora japonesa, embora tinha certeza de que tinha perdido o avião.

–De qualquer forma foi melhor assim – pensava em voz alta para acalmar sua consciência – Eu poderia estar fora da África com meu dinheiro e esta linda médica, que vale mais do que eu, poderia estar morta.

Um dia inteiro caminhastes

Seguindo meus longos passos

Teus pequenos pés machucados

Pelas ferventes areias.

Avistamos o oásis

Quando o sol de cobre

Beijava o horizonte.

Já era noite quando chegaram ao oásis. Sarrazin descarregou sua pesada mochila e começou a montar um arremedo de barraca junto a uma pequena árvore morta, a poucos passos de um rochedo. Havia bastante vegetação verde junto ao poço de água cristalina. Era óbvio que tinha chovido ali na noite anterior.

Também havia gravetos secos que ele prontamente recolheu, para preparar uma fogueira para quando esfriasse. Em seguida pegou o estojo de primeiros socorros, lavou os ferimentos da moça e renovou os curativos.

–I am medicating a doctor– disse ele, rindo, maroto.

Ela sorriu agradecida. E seu sorriso era como um sonho.

–I will wash our clothes – Disse ele.

Em seguida ela despojou-se do macacão imundo e ele foi até o poço e lavou a roupa dela e as suas; e tomou um banho. Depois lavou o corpo dela cuidadosamente com um pano molhado, porque ela estava cheia de contusões.

Teu corpo era uma ferida

Teus lábios estavam secos

Tuas feridas eu lavei,

Tua sede eu saciei

Tuas roupas eu lavei

Ele pegou uma das mantas da mochila e improvisou uma cama para que ela descansasse e depois pendurou as roupas molhadas de ambos nos galhos da árvore seca. Ela dormiu em seguida, esgotada demais. Ele fez uma demorada vistoria dos arredores, olhou em volta, e quando teve certeza de que o local era seguro, pegou a outra manta e deitou-se do lado da jovem já profundamente dormida.

Ela parecia não ter mais febre. Seu corpo estava esfriando com o frio da noite. Ele sentiu-se péssimo por ter obrigado a moça a uma caminhada tão forçada. Mas não tinha outra opção. Se tivessem ficado mais uma noite no local do acidente, agora estariam mortos de sede.

*******.

Meu corpo protegeu teu corpo

Do frio da noite

Quando teu sono chegou.

O amanhecer nos encontrou

Dormindo em abraço apertado.

Teus negros olhos abriram

E teu sorriso oferecestes,

Agradecida e gentil.

Ao amanhecer, Sarrazin procurou o que comer nas imediações. Experimentou algumas frutinhas semelhantes a tâmaras, mas de horrível sabor. Cuspiu-as fora enojado. Depois experimentou a macia carne de um cacto. Melhorou. Cortou vários pedaços suculentos com sua faca; para a sobremesa.

Fizeram sua primeira refeição do dia com o que sobrou do enlatado, que ainda se podia comer pois tinha sido cozido ao fogo o dia anterior. Depois comeram a carne do cacto.

O calor começou a apertar, e apesar de faltar apenas vinte e cinco quilômetros, o mercenário achou que seria uma temeridade caminhar de dia, por más água que tivessem. Não por ele, senão por ela. Era preciso que Nashuko recuperasse suas forças antes da aventura, porque ainda tinha aparência de doente.

Enquanto estivessem acampados nas proximidades do poço, teriam água suficiente para hidratar-se e poder caminhar os poucos quilômetros restantes. Por outro lado, ficar no poço não carecia de perigo, era possível que aparecessem elementos perigosos, como hotentotes, ou o que era pior; rebeldes.

Por precaução, Sarrazin conferiu seu armamento. Tinha munição como para uma pequena guerra de meia hora, quatro granadas e quarenta e cinco balas para a pistola, da qual não se afastava, apesar de estar vestido, à sombra, só com um calção. Resolveu preparar tudo para partir ao anoitecer do dia seguinte, para dar tempo à doutora se recuperar.

Ele ainda sentia cansaço, portanto tentou imaginar como se sentia a pobre mulher. Sim era preciso descansar. Depois buscaria algum animal que pudesse matar para comer. De qualquer forma, dava por descontado que tinha perdido o avião.

*******.

À tarde deitou-se para dormir a sesta. O grito de pavor de Nashuko o despertou:

–Help me, Martin! Help!

O mercenário ficou em pé como um relâmpago, já com seu fuzil na mão, e correu ao poço, onde a doutora estava lavando-se e penteando seus cabelos, vestida apenas com sua calcinha. Junto dela, uma enorme serpente já estava preparando o bote.

Sarrazin apenas teve tempo de apontar o fuzil e apertar o gatilho. O disparo pareceu multiplicar-se na imensidão de Kalahari. A serpente, já sem cabeça, contorceu-se interminavelmente no solo, até compreender que estava morta.

O mercenário aproximou-se da jovem doutora que tremia como um graveto, apesar do calor de quase cinqüenta graus. A jovem, choramingando, apenas atinou a cobrir seus pequenos seios com os braços, ainda ajoelhada ao borde do poço. Ele admirou mais uma vez o belo corpo da mulher e pensou que fazia muito tempo que não parava para admirar uma femme au naturel.

Por segundos, que para Nashuko pareceram séculos, o homem contemplou-a com admiração. Por fim ele apoiou a culatra do fuzil no chão e abaixou-se devagar junto dela fincando um joelho em terra.

–Have calm, Nashuko. It is already well everything!

–Thanks... thank you, Martin.

Ele, então, desviou seu olhar para a serpente que já quase não se mexia mais, e disse no seu horroroso inglês:

–Now we will have eating. The serpent will be our food.

–That snake? – disse a moça horrorizada.

–Yes.

A japonesinha fez cara de nojo quando o mercenário pegou a enorme serpente e a levou para a árvore seca, onde a pendurou. Depois, puxou sua faca e tirou a pele dela como se fosse uma meia. Em seguida, ele tirou as entranhas do ofídio e separou só a carne.

Depois espetou os pedaços na baqueta do fuzil e preparou um pequeno fogo no meio de umas pedras. Nashuko, que já havia tirado e pendurado sua calcinha molhada e vestido seu macacão seco, procurou mais gravetos.

Sarrazin colocou o improvisado espeto sobre duas pedras que colocou aos lados do fogo, de maneira que quando houvesse brasas, o calor fosse assando a carne lentamente. O homem, então, reparou que a jovem doutora estava sentada ao seu lado contemplando com interesse o que seria o jantar.

De repente, ele pegou a mão dela, como se pega uma porcelana de mil anos. O beijo veio naturalmente, sem pensar, espontâneo. A garota corou, os japoneses não se beijam. Depois ambos ficaram em silêncio, lado a lado, com seus olhos fixos no fogo. Quando o fogo teve brasas suficientes, Sarrazin ajeitou-o de maneira que a carne continuara assando-se.

Em seguida, dando um sorriso carinhoso à jovem, levantou-se e foi à beira do poço, assentando sua faca. Pretendia barbear-se, e Nashuko, compreendendo que seria difícil fazê-lo sozinho, resolveu ajudá-lo. Com perícia de cirurgião, a mulher raspou a barba do homem.

Depois, com o rosto limpo ainda molhado, Sarrazin sorriu e beijou carinhosamente a jovem outra vez. O sorriso da jovem oriental desta vez; olhando para aquele rosto molhado e sem barba que agora não parecia tão assustador; foi encantador.

Ele pegou a mão dela, e sorrindo um ao outro, foram ver o assado, que já estava quase no ponto. Por momentos, Sarrazin esqueceu do mundo, da guerra, de tudo. Agora e aqui, só havia um homem, uma mulher, um pôr de sol, e um jantar quase pronto.

*******.

Nashuko comeu relutante, mas, surpreendeu-se agradavelmente ao comprovar que a comida não era desagradável como tinha suposto. Era realmente nutritiva, e como médica deveria sabê-lo; já que serviria para acumular energia para a caminhada final.

Não sobrou nada, pois ambos sabiam que deviam alimentar-se tudo o mais possível para prosseguir ao dia seguinte. Ela sentia-se bem melhor depois de comer. Quase feliz. Sarrazin tentava imaginar os pensamentos da mulher oriental. Talvez estivesse lembrando de seu país e sua família. Ele nunca saberia.

Depois ambos deitaram-se lado a lado. Sarrazin acendeu seu penúltimo cigarro, que fumou voluptuosamente. Nashuko estava bem melhor dos seus ferimentos. Fechou os olhos e dormiu imediatamente, sem febre e sem pesadelos. O mercenário, sem sono, começou a traçar planos imediatos.

*******.

Ainda não sabia com certeza a quer recorrer em Serowe. Ao partir os mercenários, fato bem provável, ele ficaria desamparado e sozinho. Na verdade, sozinho não, porque tinha a médica, que sem dúvida teria seus contatos na Cruz Vermelha de Serowe. Ou talvez ela estivesse tão desamparada quanto ele?

De todas formas, ele tinha um bom pacote de dinheiro num compartimento do cinto junto com seu passaporte. Seria suficiente para pagar uma passagem aérea para qualquer lugar. Duas passagens. Ele não deixaria a jovem sozinha numa cidade desconhecida.

Estes pensamentos não o deixavam dormir. Já havia acabado seu cigarro e agora estava atento aos barulhos do deserto e às estrelas. Às quatro e meia da manhã passou uma estrela cadente, e ele se emocionou, como quando era criança. Passou mais de uma hora e ele não tinha sono.

De repente reparou na mulher ao seu lado, respirando tranquilamente. Seu macacão agora limpo, estava semi-aberto e, na luz da lua ele viu assomar o biquinho de um seio. Ele sentiu ferver seu sangue e não pôde resistir o impulso de beijá-lo. E o fez demoradamente, abrindo mais o macacão da jovem, que foi despertando aos poucos, primeiro, surpreendida, mas em seguida tão excitada como ele.

(***)

Adormeceu esgotada, ainda com o homem rígido dentro dela, que a abraçou e fechou os olhos, relaxado e feliz com a pequena mulher dormida sobre seu corpo musculoso.

Ao segundo dia

Tuas mãos de fada

Rasparam minha barba.

Será que fiquei bonito?

Meu beijo foi uma surpresa

Eu sei,

japoneses não se beijam.

Mas teu delicado sexo

me oferecestes.

E sem falar o mesmo idioma

Oriente e Ocidente uniram-se;

Uma manhã em Kalahari.

*******.

O sol de Kalahari foi aparecendo aos poucos, como se brotasse das dunas. A noite tinha sido fria, mas a lona de camuflagem era suficiente para aquecer os dois corpos unidos, dormindo em paz após uma noite de amor. O mercenário e a doutora, com os rostos juntos respiravam no mesmo ritmo, quando o sol iluminou diretamente seus rostos.

O primeiro em acordar foi o homem. Quando percebeu o peso da pequena mulher sobre ele, sentiu-se feliz, ao lembrar dos momentos de amor vividos poucas horas antes. O homem levantou-se devagar sem poder evitar que ela acordasse e vestiu seu surrado uniforme, agora mais ou menos limpo, sem deixar de olhar à bela mulher.

Depois se armou e começou a recolher tudo, enquanto a jovem terminava de acordar e se levantava e vestia suas roupas. Quando estiveram preparados, o mercenário fez um demorado reconhecimento do lugar para ver se não deixavam nada para trás, e recolheu toda a água que pode. Depois, trocou um olhar com a mulher, que fez um sinal afirmativo. Então ele colocou sua mochila e de comum acordo, ambos empreenderam a caminhada final.

Enquanto caminhavam, Sarrazin, o mercenário, relembrava da noite de amor com Nashuko, a doutora japonesa, e voltou à sua mente a recordação quase esquecida de outra mulher, uma mulher que Martin, o estudante, amou, até não mais raciocinar, uma mulher mais velha, lá na terra natal:

Ariadna.

*******.

Próximo: ABORÍGINES

*******.

O conto A DOUTORA. - forma parte integrante do romance inédito HISTÓRIA DE MARTIN ® – Volume I, Capítulo 7; páginas 66 a 74.

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 27/12/2016
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