ABORÍGINES

Antes dos MUNDOS PARALELOS ® entrarem em colisão...

Recordações...

Martin voltava a ser Sarrazin, que caminhava com passo firme enquanto

Nashuko, a médica japonesa acompanhava-o sem fraquejar, demonstrando uma admirável resistência física.Dentro da mente de ambos, os pensamentos sucediam-se implacáveis.

A mulher ainda sofria com a lembrança do acidente e a morte dos seus camaradas, fato que a marcaria para sempre. Mas também teria a noite de amor com o mercenário, que apesar da sua rude aparência tinha sido tão doce e carinhoso com ela, para compensá-la pela sua perda.

Agora Nashuko estava marcada a fogo.

Quando retornasse ao seu país sua vida não seria mais a mesma.

Entretanto, Sarrazin, o mercenário, deixava fluir suas recordações, recuando no tempo até aquele garoto de 18 anos, meio ingênuo e de sorriso fácil, que estava apaixonado pela professora Ariadna, 10 anos mais velha do que ele.

E que terminou magoando-o.

*******.

A Queda Vertiginosa.

As semanas foram se passando. Ariadna trabalhou tanto na faculdade como no colégio normal. Martin vivia num mundo mágico, esperando impacientemente que chegasse a sexta feira para o encontro amoroso semanal. Logo estes encontros tornaram-se mais freqüentes e deixaram de ir ao hotel do centro, para encontrar-se na garçoniére do rapaz na praia Pocitos.

Nesse meio tempo, Ariadna desprezou muitos homens excelentes, homens que não conseguiam compreender o porquê de tal desprezo. Era óbvio que não sabiam que se tratava de uma mulher sexualmente satisfeita, que não poderia ser conquistada com palavras bonitas. Até outubro todo foi satisfatório. A coisa mudou depois da aula do dia 21.

Ariadna estava muito formal, e Martin começou a sentir uma mão de aço apertando sua garganta. Algo não estava bem. Seu mundo estava preste a se derrubar. No primeiro dia de novembro, o mundo acabou.

–Temos que dar um tempo ao nosso relacionamento Martin – tinha dito a professora – estamos indo rápido demais e as pessoas já estão começando a suspeitar.

–Mas... – e o moço parou de remexer seu café. De repente tinha deixado de ouvir os barulhos do bar Prado e do mar a cinqüenta metros, que estava maravilhoso.

–Não desejo incomodar-me com a minha família que não sabe o que faço em determinados horários em determinados dias da semana. Além disso, tenho ouvido algumas indiretas na faculdade.

De repente Martin gelou. Estava percebendo a jogada da professora. Sentiu que estava sendo usado como objeto.

–Cansou de mim, professora?

–Não é isso, Martin.

–Não importa. Sei que fui sincero contigo, nunca te menti, quando disse que te amava. E ainda te amo, infelizmente – disse ele com amargura, lembrando as palavras cada dia mais sábias do velho Basílio.

Martin não podia adivinhar os pensamentos da mulher. Ela era uma máscara indevassável, do alto de sua experiência de mulher vivida. Mas seus argumentos pareciam irrebatíveis:

–De qualquer maneira, quero parar para pensar um pouco em tudo o que está acontecendo conosco Martin. Acho que nunca, mesmo, encontrarei o homem ideal. Deverei ficar sozinha para sempre. Sou um osso duro de roer.

–Percebo – disse ele, pensando nos sábios conselhos do velho ucraniano que ele, tolamente, não levara a sério.

–Celebro que entendas – disse ela.

–Claro que entendo que me usaste.

–Não sejas injusto. Precisamos de um tempo, apenas...

–Um tempo para esquecer da cara um do outro. É isso que queres. Dispensar-me magoando-me o menos possível... A legítima professora! Parabéns, professora! Pronunciou as palavras mágicas: “dar um tempo”!

–Não sejas...

–Garçom!

Estava tudo dito. Martin tinha aprendido a revidar. Ele não a levou em casa. Pagou a conta, subiu no seu carro e foi embora. De todas maneiras as aulas estavam para acabar. Na sua mente, o velho Basílio dizia:

“–E lembra sempre: não faças a besteira de te apaixonar. A pior coisa que pode acontecer a um homem é se apaixonar. Aí a maldita bruxa faz o que quer com o coitado. As mulheres são para serem usadas e descartadas, meu rapaz. Se elas perceberem que estás apaixonado, elas acabam te destruindo.”

*******

(***)

Aquela despedida tinha sido muito amarga para o jovem estudante. Talvez tenha sido o início da metamorfose que terminaria aqui, em Kalahari. E Kalahari estava terrível. O calor insuportável fazia aos poucos Sarrazin voltar à realidade.

Mas seus olhos estavam cheios de lágrimas. Parou para olhar o relógio: três da tarde. Percebeu que seria uma loucura continuar. À frente havia umas rochas grandes onde poderiam acampar. Em seguida percebeu que não ouvia os passos de Nashuko.

Virou-se. Ela não estava por perto. Nashuko tinha ficado para trás, e ele, distraído com suas recordações não o percebera.

–Nashuko!

Sem resposta. Apenas o eco da sua própria voz.

–Nashuko! – desta vez estava quase em pânico.

Retornou alguns metros e subiu sobre um rochedo. Pegou o binóculo e olhou para trás. Teve que limpar o suor e as lágrimas para poder enxergar. O panorama imediato era desolador, aumentando seu desespero. Se parasse para pensar na sua própria ousadia para empreender essa louca travessia, ele próprio sentiria medo de continuar.

Ele só podia caminhar se estivesse em constante delírio com suas recordações. Mas a pobre doutora não tinha sua resistência e talvez não tivesse uma fonte de recordações tão rica. Ela teria?

–Oh! Nashuko! Pequena doutora! Onde estás? – murmurava enquanto percorria o caminho já feito com o binóculo.

–Eu sou um idiota por não perceber!

Seu coração disparou quando viu o macacão branco da mulher a uns quinhentos metros mais atrás.

–Estás aí!

Ele soltou a mochila e correu até a jovem mulher caída, aquela mulher deliciosa que ele tinha amado por uma noite. Estava viva. Ele molhou os lábios dela com água do cantil da própria, que ela apenas tinha usado. Nashuko recuperou aos poucos a consciência.

–Você me deu um susto, garota!

–What?

–You gave me a fright, girl!

–Martin…

–Drink water, slowly, carefully.

Nashuko bebeu e recuperou-se um pouco. Sarrazin compreendeu que deveriam acampar no lugar e esperar o anoitecer. Levou-a em braços até o rochedo adiante, e preparou uma barraca com as mantas e se deitaram lado a lado.

Ela tinha chegado ao limite. Tinham bastante água e ele deixou-a beber até saciar-se. Ele também tinha comprovado o quanto estava cansado. Tinha se sustentado apenas com as emoções das lembranças que anestesiavam seu sofrimento físico.

Infelizmente não sabia o que se passava na mente da doutora, e por tanto nada poderia fazer para ajudá-la, a não ser confortá-la com seu carinho. O estado da jovem era lamentável e ele estava quase em pânico, perante a possibilidade de que ela não conseguisse chegar viva a Serowe, agora que faltavam menos de oito quilômetros. A cidade parecia ainda mais longe do que antes.

–Quê diabos! Vamos a esperar a noite! – disse para si mesmo, enquanto

abraçava a jovem como se fosse um tesouro.

*******.

Aborígines.

A noite foi chegando, e com ela os hotentotes.

Estavam armados com armas de fogo de vários tipos, sem dúvida marginais dos arredores de Serowe, que viviam de assaltar e roubar colonos e viajantes, além de garimpar na lixeira da cidade.

Sarrazin tinha recolhido tudo e fechado sua mochila, quando seu ouvido apurado captou as agitadas respirações. Preparou seu fuzil e comprovou suas granadas, enganchadas das correias do colete de combate. Já era tarde para esconder-se e esconder Nashuko.

A lua não tinha aparecido ainda e ele não confiava na sua própria visão noturna, o que lhe dava uma grande desvantagem, porque sabia que os nativos eram como gatos no escuro. Não conseguia perceber os passos, apenas as respirações. Se pelo menos tivesse um sinalizador de magnésio, poderia vê-los e cegá-los.

Guiado pelo ouvido, resolveu atirar a primeira granada para o leste; de onde parecia vir a maior concentração de nativos no meio das rochas. Abaixou-se abraçando Nashuko e comprimindo-a no chão arenoso. A explosão iluminou momentaneamente o deserto e arrancou gritos de dor dos nativos, mas agora ele sabia onde eles estavam.

Incorporou-se disparando em direção aos sobreviventes e quando os gritos pararam, percebeu xingamentos em swahili às suas costas. Virou-se prontamente atirando, com o que os xingamentos cessaram. Mas em segundos, alguns nativos sobreviventes, mais esclarecidos, responderam o fogo com suas armas de diversos tipos. Sarrazin sentiu a terrível mordida de uma bala raspando seu ombro esquerdo, arrancando pedaços do seu colete, sangue e carne.

Trocou o carregador do fuzil e atirou em redondo, sem saber direito onde estava o inimigo, enquanto Nashuko permanecia encolhida no chão aos seus pés. Suas balas acabaram e trocou o carregador novamente, mas agora estava tudo silencioso. Fincou um joelho em terra e preparou uma segunda granada.

Esperou em silêncio e ouviu gemidos de dor à frente.

Então arrancou o pino da granada. Mas á esquerda ouviram-se passos de pés calçados sobre as pedras. Foi nessa direção que atirou a segunda granada, e abaixou-se sobre a apavorada jovem japonesa. Após a explosão, gritos de dor surgiram pela esquerda, abafando os gritos à frente. Ignorando a dor, ele levantou-se com a arma engatilhada, aventurou-se por entre os corpos.

Havia uma vintena, entre mortos e feridos, os que foi rematando um a um com a sua pistola. Quando houve matado o último, por cima do rochedo a sua esquerda, viu o relâmpago de um disparo e sentiu a bala mordendo sua coxa esquerda, antes ainda de ouvir o tiro. Atirou com a pistola em direção às rochas, mas não acertou, porque a dor na perna atrasava seus movimentos.

Atirou-se no chão, arrancando o pino da sua penúltima granada com os dentes, enquanto descarregava a pistola em direção às rochas. Quando ficou sem balas, incorporou-se e jogou a granada. Após a explosão, esperou a poeira assentar-se e, mancando, foi ver como estava Nashuko. A jovem estava tremendo de medo, encolhida no chão, quando Sarrazin se aproximou. Nashuko afogou um grito de pavor, mas quando reconheceu seu amigo, começou a chorar de alívio e alegria. Em seguida ela percebeu os ferimentos do mercenário.

–You are wounded!

–Yes.

Nashuko imediatamente esqueceu seus medos, para deixar aflorar a médica que havia nela. Retirou os escassos medicamentos que havia nas algibeiras do mercenário e colocou sulfas nos ferimentos e os cobriu com faixas e esparadrapo.

–I love you, Nashuko – disse ele com sinceridade.

*******.

Depois de rematar e depenar os hotentotes, o mercenário e sua médica

encontraram munição e algo de água fresca. Sarrazin inutilizou todas as armas dos nativos e confiscou a munição 7,62. A munição restante foi enterrada na areia.

Na distância se podiam ver as luzes de Serowe brilhando na escuridão das quatro da madrugada. Sarrazin e Nashuko empreenderam a caminhada; a jovem estava bem mais fortalecida do que o mercenário, que mancava da perna esquerda, e perdia um pouco de sangue.

Agora era a jovem que liderava a marcha, compartilhando a carga de água e munição. Ele agora pensava em quanto suas chances estavam reduzidas, ferido, depois de ter passado por tudo aquilo, ter lutado e matado tantos inimigos quando estava praticamente a um passo do seu objetivo. Achava que não conseguiria, sua dor nos dois ferimentos era muita, quase insuportável.

Tinha duas doses de morfina na algibeira, mas recusou-se a aplicá-las, a contragosto de Nashuko, porque sabia que com a fraqueza em que estava, poderia perder o conhecimento e a doutora ficaria indefesa. Os nativos poderiam ter amigos por perto.

Deveria caminhar o mais rápido possível e ignorar a dor.

*******.

A Reta Final.

Perto de Serowe, a vegetação aumentava por causa do rio. Agora, as imediações da cidade, eram uma armadilha mortal. Sem dúvida havia aborígines por perto. Sarrazin engatilhou seu fuzil e ficou alerta. Entregou sua pistola carregada e engatilhada para Nashuko, junto com dois carregadores.

Foi providencial, pois, embora ele não soubesse, bandos de aborígines perambulavam nos arredores da cidade, e aquele grupo que Sarrazin exterminara, tinha outros colegas que seguiam as pegadas da dupla. E agora, tão perto da cidade, eles haviam decidido que seria agora o nunca. Uma mulher e um homem ferido, seriam coisa fácil de dominar.

Um galho quebrado foi o aviso. Sarrazin deixou-se cair no chão e arrastou a mulher com ele. Disparou uma rajada no lugar do barulho e ouviu os gritos de agonia, mas em seguida veio a resposta em forma de balas. Sarrazin atirou nas sombras que se moviam e foi derrubando uma a uma. Nashuko esperou que o mercenário parasse para recarregar e então atirou, segurando a pistola com as duas mãos. E pelos gritos de agonia, foi certeira.

Finalmente, Sarrazin percebeu onde estava o grupo maior de nativos e arrancou o pino de sua última granada. A explosão nivelou as coisas. O mercenário incorporou-se e metralhou os que ainda estavam de pé, e quando caíram rematou os caídos que ainda se mexiam.

Os sobreviventes esparsos, começaram a atirar de diversos lugares. Sarrazin e Nashuko, responderam o fogo ao mesmo tempo e foram silenciando os atacantes até que parou a resistência e se fez o silêncio.

Sarrazin foi rematando um a um, mas não viu o último, que ainda vivia.

Nashuko gritou, mas era tarde demais. O mercenário sentiu um golpe no lado esquerdo da cabeça e depois ouviu o tiro. Pode ver quando Nashuko descarregou a pistola no peito do nativo, mas depois viu o solo vir ao seu encontro, no meio do calor do seu próprio sangue.

Depois tudo ficou escuro.

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Próximo: A DESPEDIDA

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O conto ABORÍGINES - forma parte integrante do romance inédito HISTÓRIA DE MARTIN ® – Volume I, Capítulo 8; páginas 80 a 85

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 28/12/2016
Código do texto: T5865478
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