O mongol sertanejo

O império Mongol tava osso. A disputa pelo poder após morte de Genghis Khan me deixou ocioso. Resolvi fugir com Eazy, o melhor cavalo da família. Meu pai tinha bom gosto, disso eu tinha que concordar. Casou com minha mãe, claro. Sai sem avisar, tava afim de explorar, desandar. Cavalguei pra caralho. Três dias depois dei uma parada para um lanche. Bati de frente com uma cruzada e me escondi. Se me vissem não terminaria essa história. Fiz uma fogueira no oceano pra assar o peixe que fisguei enquanto os cascos de eazy deslizavam na água dura. Diferentemente das águas normais, a sopa de cálcio e magnésio possibilitava a locomoção. O mundo é louco mesmo. Tava andando na água. Cruzei o atlântico. Cheguei em uma terra muito diferente. Tinha um pessoal lá brigando por elas. Disseram que a descobriram, que os nativos não eram civilizados e tal. Matavam muito, dizimavam mesmo. O litoral era um inferno. Troquei ideia com uns negros que trabalhavam muito. Chamei-os pra bater uma pelada. Jogamos e depois aprendi uma luta viajada. Eles a chamavam de capoeira. Achei massa. Fiquei ali por uns dias. O nome da terra era Bahia. Bem bonita. Mas algo estranho tava no ar. Eu como sou ligeiro sempre, mais observava que falava. Tinha que estar ciente do que rolava nessa terra distante. Vi que os negros não podiam ir pra qualquer lugar. Apanhavam se não fizessem o que mandavam. Eram prisioneiros. Meu povo escravizava também. Senti-me como nunca antes. Culpado. Escravizei. Decidi cavalgar pra mais longe do litoral pra esquecer as mágoas. Percebi que depois de um tempo a vegetação era seca, cada vez mais baixa e não eram verdes. Parei pra tomar água na casa de Severino e ele me contou que o mato se chamava caatinga. Seu Severino disse que quando chove fica tudo verde de novo, fica bonito demais. Seu Severino era gente boa. Disse pra eu ter cuidado com os cangaceiros que rondavam pelos matos. Não gostam de forasteiros na região. Eu disse que não tinha medo de nada nem ninguém nesse mundo louco. Eu andei na água. Sou foda. Seu Severino não entendeu e me desejou boa sorte. Parei em um vilarejo onde um homem tocava um instrumento que eu nunca vi antes. Que voz arretada, que som bonito! Cheguei pra perto e perguntei o nome do tocador a uma senhora que estava o prestigiando. Ela disse que se tratava do rei do baião. O homem que apresentou o sertão pro mundo. Quis logo conhecer esse rei. Quem sabe poderia leva-lo pra pacificar meu reino? Fiquei viajando e curtindo o som por uns minutos. Por onde passei todo mundo me convidava pra tomar uma dose de cachaça de cana-de-açúcar. Resolvi aceitar. Tomei e gostei. Fiquei por ali uns dias. Chamaram-me pra ajudar a cultivar feijão. Fui ajudar. Fiquei um ano, dois, três. Veio na cidade onde eu estava um pessoal que o povo chamava de volante. Perguntou se eu era cangaceiro. Eu disse que não, mas não acreditaram em mim. Quiseram usar um chicote pra me fazer confessar. A veia dilatou. A pupila dilatou. O peito estufou. Por gerações minha família nunca foi intimidada. Resolvi bater de frente. Apanhei que quase não consegui respirar. Escutei uns tiros. O grupo de lampião chegou pra colocar os volantes pra correr. Ainda deitado no chão, escutei a voz de Virgulino:

- Eita, cabra da peste! Veio lá dos cafundós dos Judas e é muito mais macho que sertanejo que se cria nesse sertão brabo. Se quiser virar cangaceiro, homem. Chegue lá no sertão do Araripe que te arrumo uma função. Deus seja louvado, cabra!

Eu até tinha pensado em ir. Queria me vingar de quem bateu em mim. Mas lembrei da palavra que Virgulino falou: Deus. Fiquei confuso. Será que os cruzados me acharam? Resolvi fugir. Fugi. Parei em outro vilarejo. Hospedei-me na casa de Raimunda. Ela era o que chamavam de devota a São Francisco de Assis. Conheci sua história. Escutei as histórias de Raimunda. Ela tinha muita fé. Fiquei confuso de novo. Deus é bom? Até que um homem velho passou por mim na estrada e percebeu a aflição no meu rosto. Falou:

- Sei o que está te deixando confuso, filho. Só tenho uma coisa a te dizer. A bondade, a cumplicidade, humildade, amor, carinho, justiça, tudo isso é Deus. Todo ato que seja contrário a isso, não o representa. O problema são as pessoas, a ganância. Você conheceu Raimunda, Severino. Eles representam Deus. Adeus filho. Que a paz esteja convosco.

Que homem interessante! Ele disse que se chamava Jesus. Eita sertão bom danado. Vou buscar meus pais. Vou fazer daqui meu lar. Vou lutar se preciso pra melhorar isso aqui. A terra é seca, mas quando tem água é fartura. Cultivarei, questionarei, viverei. Da Mongólia pro sertão.

Mr Frank
Enviado por Mr Frank em 25/04/2017
Reeditado em 17/11/2018
Código do texto: T5981031
Classificação de conteúdo: seguro