Caminho de Santiago - Cap. 28/32 - De Villafranca del Bierzo ao Cebreiro

Deixei Villafranca Del Bierzo pelo seu lado Norte atravessando a ponte medieval sobre o Rio Burbia que banha a cidade. O dia ainda continuava muito bonito a despeito das intensas chuvas que haviam castigado a região.

Enquanto caminhava para Vega de Valcarce, meu próximo destino a 18 km dali, ainda pensava nas vítimas de Tomás de Torquemada, o feroz baluarte da inquisição espanhola.

A Idade Média trouxe muito sofrimento: guerras, pestes e perseguição religiosa. Era a época do obscurantismo e do domínio dos senhores feudais, cheios de privilégios e conveniências pessoais, como a de ter direito à primeira noite de núpcias antes dos noivos com as jovens que se casavam em suas terras (só com aquelas bonitinhas, claro). Os pobres viviam basicamente do plantio e cultivo de grãos e hortaliças, além da criação de animais, principalmente ovinos e caprinos que lhes forneciam a carne, o leite e suas peles.

Imagine agora você acariciando uma ovelha do seu rebanho dizendo-lhe algo em sinal de gratidão ou de alegria (como fazemos hoje com os nossos animais de estimação). Você já seria candidato à fogueira.

É uma atitude humana perfeitamente normal, mas Isso já seria motivo suficiente para que um vizinho inimigo seu dissesse para os Tribunais da Inquisição, que você se comunicava com o demônio através da sua ovelha ou da sua cabra. Tudo era considerado sortilégio. As mulheres foram as mais perseguidas e rotuladas de bruxas sob qualquer pretexto.

Ia pensando nos gritos dessas pobres criaturas ardendo nas fogueiras em praça pública, quando repentinamente fui remetido à realidade pela estridente buzina de uma carreta – eu acabara de entrar no acostamento da Rodovia N-6, ou Autovia do Noroeste. Fui saudado efusivamente pelo motorista que colocara a mão pra fora da cabine levantando o polegar, como que me desejando sucesso e boa sorte na caminhada.

Os espanhóis, de maneira geral, respeitam e apoiam os peregrinos, até mesmo porque somos uma preciosa fonte de ingresso de capital em seu país e responsáveis pela manutenção de milhares de empregos diretos e indiretos.

Após alguns quilômetros caminhando pelo acostamento, vi a famosa placa amarela que orienta os peregrinos, indicando que eu deveria sair da estrada e continuar para Pereje e Trabadelo. Um grupo de ciclistas italianos passou por mim e deteve-se logo adiante. Percebi que um deles falava ao celular com alguém que parecia estar mais à frente e lhe dizia que as chuvas tinham transformado aquele trecho em puro barro, aconselhando-os a continuarem na Rodovia N-6.

Dei meia-volta e resolvi fazer o mesmo. Não havia motivos para que eu me arriscasse a um escorregão na lama. Santiago de Compostela me amava e queria me ver em sua Catedral são e salvo – não com uma perna quebrada. Eu agora pensava assim.

Prossegui pelo acostamento até La Portela de Valcarce, onde parei para “colocar combustível na máquina”, ou seja, tomar um canecão de cerveja - senão não dá!!!

Mais alguns quilômetros e passei por Ambasmestas, avistando Vega de Valcarce pouco depois.

Vega em espanhol significa Várzea. Valcarce é o nome do principal rio da região. Em suas margens nasceu esse pequeno município de apenas 600 habitantes.

Fazia muito frio e chovia fino quando encontrei já no limite de minhas forças o Albergue Municipal da localidade. Fui atendido pela gentil facilitadora (nome que se dá a quem trabalha nos albergues municipais) chamada María. Ela pediu que eu fizesse o máximo silêncio quando colocasse minhas coisas no dormitório, pois um grupo de alemães havia chegado há pouco menos de uma hora e estava dormindo após ter caminhado por dois dias seguidos sem descanso.

Tomei meu banho e pedi o formulário para remeter minha mochila para o Alto do Poio, minha próxima parada. Era a primeira vez em que eu utilizava esse recurso, pois na manhã seguinte teria pela frente uma subida de 700 metros até O Cebreiro, um dos trechos mais difíceis de todo o Caminho.

Enquanto jantava solitariamente no próprio albergue, já que era o único hóspede acordado, notei duas imagens em barro de galinhas d’Angola que me lembraram bastante aquelas fabricadas nas cidades de Tiradentes e Vitoriano Veloso, em Minas Gerais. Perguntei a María, enquanto ela me servia a refeição, como aquelas peças tinham ido parar ali.

- Este albergue foi administrado por um brasileiro durante alguns anos, respondeu-me. Essas galinhas eram dele, mas nos deu de presente quando se foi.

Dormi como uma criança depois de ter tomado uma garrafa de vinho, já incluída no cardápio do "Menu Del Peregrino".

Na manhã seguinte levantei-me cedo, pois estava excitado para entrar finalmente na última Comunidade Autônoma do Caminho: A Galícia – a mais verde, chuvosa e úmida região da Espanha, com seus enormes rebanhos bovinos, excelentes queijos, frutas diversas, aguardente da boa e grande variedade de pescado e frutos do mar, principalmente o que eu tanto almejava: polvos e mais polvos.

A Galícia é a região espanhola com o maior percentual de consumo de polvos “per capita” de toda a Espanha. Não sei como os oceanos conseguem suprir essa demanda. Haja polvo!!!

Minha decisão de expedir a mochila para o Alto do Poio, meu próximo destino fora acertada, pois logo após Ruitelán e Las Herrerias, comecei a pegar uma forte chuva exatamente na hora em que iniciava a subida. Entre escorregões e chutes em muitas pedras soltas, cheguei à localidade de La Faba com apenas 25 habitantes onde descansei um pouco, pois teria que subir mais 300 metros até La Laguna, último vilarejo da Comunidade Autônoma de Castilla y León com igualmente 25 habitantes.

Finalmente, após passar por La Laguna, encontrei o marco em pedra com o brasão da Galícia bem à beira do Caminho. Tirei minha capa de chuva e a pequena bolsa que levava a tiracolo, para iniciar um solitário e alegre bailado. Eu pulava para um dos lados desse marco divisório e cantarolava: “Estoy en Galicia”. Logo depois passava para o lado oposto e dizia: “Estoy en Castilla y León” e assim fiz por diversas vezes. Sentia-me como uma criança, rindo de mim mesmo e achando que tudo aquilo era uma loucura. A chuva aumentava inexoravelmente caindo em grossos pingos como se quisesse participar da minha inusitada comemoração.

Assim que comecei a subir os últimos 130 metros que me separavam do O Cebreiro, a chuva cessou de pronto, mas pequenos riachos formados pela enxurrada desciam em minha direção à medida que eu caminhava.

Para piorar as coisas, uma densa neblina começou a tomar conta do cenário. Eu não conseguia ver mais nada além de 5 metros diante do meu nariz. Um vento gélido soprava de cima para baixo, retardando impiedosamente minha ascensão. Dei uma topada numa grande pedra bem no meio da trilha e quase caí de cara na lama. Apoiei instintivamente minha mão no chão, mas acabei luxando meu dedo mindinho. Comecei a recitar aos berros todos os palavrões que já conhecia - e os que não conhecia também.

Estava visivelmente irritado e sob intenso estresse, quando quase que por magia, após uma forte rajada de vento, vi descortinar-se diante dos meus olhos um dos mais lindos cenários de todo o Caminho. Finalmente lá estava ele – O Cebreiro – com toda a sua majestade: um antigo povoado celta da Idade do Feno perfeitamente conservado e ainda com habitações da época.

Ali existe uma pequena e emblemática igreja toda em pedra dedicada a Santa María La Real, onde teria ocorrido o milagre do Santo Graal. Conta-se que um camponês, tendo vencido uma terrível nevasca para assistir à Santa Missa dominical, bateu à porta do pároco local por ter encontrado a igreja fechada. Este, meio contrariado por ter que abrir a igreja apenas para o humilde camponês, tentou dissuadi-lo de sua pretensão dizendo que não seria necessário ter tanta fé assim, pois Deus entenderia.

O camponês não desistiu e o pároco visivelmente contrariado resolveu celebrar rapidamente uma missa, dizendo apenas algumas palavras e uma rápida oração em meio a qual murmurou baixinho no momento da consagração: “esse camponês veio até aqui vencendo imensa tempestade somente para me incomodar e ver um simples pedaço de pão e um pouco de vinho”.

Imediatamente o vinho se transformou em sangue e a hóstia em carne. O milagre atraiu gente de todos os rincões. O cálice sagrado ainda se encontra no interior da igreja dentro de uma redoma de vidro e fortemente protegido por dispositivos eletrônicos de segurança.

Os corpos do pároco e do camponês se encontram sepultados até hoje sob o altar onde aconteceu este comprovado milagre.

Como a igreja estava fechada, entrei num restaurante localizado ali próximo e pedi imediatamente um “Pulpo a Feira”, tradicional prato da culinária Galega, onde os tentáculos do polvo são temperados com colorau e pimenta em pó.

Já satisfeito por ter comido o delicioso polvo, tomei uma dose da “aguardiente galega” ou “bagaceira” como é chamada pelos portugueses e comecei a descer a trilha em direção ao Alto do Poio.

Nove quilômetros ainda me aguardavam antes que eu pudesse encerrar minha jornada.

Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 07/09/2017
Reeditado em 14/10/2017
Código do texto: T6107103
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