Boxe na praia

E no sábado de manhã, fomos para a praia em Freshwater, eu, Alice, Donna, e meia dúzia de parentes, incluindo um bebê de seis meses, filho de Joanna. A ideia era fazer um piquenique nas dunas, para comemorar a volta de Donna, após o término do ano letivo em Brisbane. Mas Donna tinha outros planos, como me confidenciara na noite anterior, no quarto que dividíamos na casa de nossos pais.

- Sabe aquelas lições de críquete que lhe falei que estava tomando no Brisbane Gymnasium? Bom, não eram lições de críquete... eram de boxe!

Fiquei ao mesmo tempo fascinada e receosa. Que Donna estivesse preparando-se para se defender era uma coisa, mas lições de boxe significava algo completamente diferente: minha irmã pretendia dar uma surra em alguém. E esse alguém, sabia eu, era nossa prima Alice.

- Vou arrebentar a cara daquela "lubra" - sussurrou ela entredentes, no escuro do quarto.

Em defesa de Alice, devo dizer que ela não, não era uma "lubra". Seus antepassados talvez não houvessem sido grande coisa nos subúrbios de Londres, já que foram deportados para a Austrália, mas certamente não possuíam uma gota de sangue nativo nas veias. O termo fora usado com outro sentido, bem mais ofensivo, e que me envolvia indiretamente, já que eu fora o pivô da confusão.

- Você continua a vê-la? - Perguntou incisiva, lá da sua cama.

- Não - menti eu. - Só nas reuniões de família.

- Acho bom, - disse Donna com falsa tranquilidade - ou vou ter que enfiar a pancada em você também.

Donna era pelo menos um palmo mais alta do que Alice, e provavelmente umas dez libras mais pesada. Possuía mãos grandes e ossudas, como as de nossa mãe, e certamente faria um estrago se pegasse Alice de surpresa.

Me encolhi na cama.

* * *

Havíamos acabado o piquenique e estávamos sentados e deitados relaxadamente à sombra de algumas árvores, nas dunas, quando Donna começou a falar sobre os torneios de boxe que vira em Brisbane. À distância, naturalmente, visto que não era permitida a entrada de mulheres nesse tipo de espetáculo.

- Confesso que senti uma grande vontade de participar eu mesma desses eventos - declarou ela.

- Talvez pudesse entrar se estivesse acompanhada de um homem - comentou nosso primo Jerome, irmão mais velho de Alice.

- Eu não estou falando em assistir... estou falando em lutar no ringue!

E disse isso com os olhos postos em Alice, que não abaixou a cabeça e sustentou a mirada.

- Luta de mulheres? - Riu-se Jerome. - O que seria isso, algum espetáculo circense?

- Vocês decerto não estudaram história - atalhou Donna. - Nunca ouviram falar em Elizabeth Wilkinson?

Elizabeth Wilkinson, ela nos explicou didaticamente, havia sido a primeira campeã de boxe em Londres, lá pelos anos 1720.

- Continua parecendo um espetáculo de circo para mim - insistiu Jerome.

- O boxe é um esporte - afirmou Donna. - E, aliás, assisti a tantas lutas que acho que seria capaz de fazer uma demonstração aqui mesmo... se houvesse alguém contra quem lutar.

E olhou novamente na direção de Alice, que apenas balançou a cabeça.

- Uma luta, de mãos limpas? É isso o que você quer, Donna? - Retrucou Alice, removendo seu chapéu de palha e expondo seus cabelos negros presos num coque atrás da cabeça.

- Vamos mostrar aos cavalheiros como se briga, prima? - Provocou Donna.

- Por que não? - Foi a pronta resposta de Alice, pondo-se de pé.

Alice era delicada, se comparada com Donna, mas não era uma mulher pequena. Naquele dia, vestira uma saia preta que quase arrastava no chão, e uma blusa cor de pêssego, de mangas compridas. Começou a arregaçar cuidadosamente as mangas, enquanto nossos primos assobiavam. Joanna, que estava com o bebê no colo, sentada ao meu lado, perguntou-me, nervosa:

- Você acha que é uma boa ideia deixar que essas duas briguem?

- Talvez seja chegada a hora do acerto de contas - respondi.

Joanna, num vestido branco longo, decorado com minúsculas florzinhas vermelhas e uma faixa também vermelha na cintura, principiou também a arregaçar as mangas. Jerome ergueu-se e pendurou uma toalha de mesa no braço, posicionando-se atrás de Alice.

- Se vão lutar, vamos fazer a coisa direito. Eu cuido da minha irmã.

E para Luke, o marido de Joanna:

- Cuide da Donna.

Luke balançou negativamente a cabeça, em desaprovação, mas pegou outra toalha e colocou-se por trás de Donna.

Frente a frente, Alice e Donna mediram-se com o olhar.

- Desculpe ter que sujar o seu vestido de sangue - disse Alice, em tom desafiador.

No instante seguinte, Donna veio abaixo, com um devastador cruzado de direita.

* * *

De olhos fechados, ouvi Alice me dizer:

- Não sei se é prudente vir aqui enquanto a sua irmã está na cidade...

- Sossegue - respondi. - Disse que ia cuidar do bebê da Joanna. Ela não sabe que você tem uma cópia da chave da casa...

- Também não podemos demorar muito... Joanna e o marido voltam depois do culto, antes da 10 h...

Abri os olhos e encarei Alice, em cujo colo eu repousava a cabeça. Seu cabelo negro agora estava penteado numa trança, que caía pelo ombro esquerdo.

- Fico grata por não ter machucado muito a Donna... apesar de tudo, ela ainda é minha irmã.

Alice abriu um sorriso.

- Tive um ano para praticar, não foi? Ou ela acha que somente em Brisbane é que ensinam mulheres a lutar boxe?

- [29-09-2017]