Marcela e Crisóstomo

Montada em seu cavalo, Marcela galopava pelas planícies do planalto. Era de uma beleza exuberante. Os cabelos longos e perolados esvoaçavam sob a carícia do vento. Era de uma candura, que seduzia a todos. Trazia nos lábios rosados um sorriso esplêndido, deixando à mostra os dentes brancos como leite. Os que a viam perdiam-se de amor e desejo. Marcela declinava os inumeráveis pretendentes, pois queria preservar sua liberdade. Sua beleza ganhou o mundo. De todas as partes vinham homens e mulheres, para ver e se encantar por Marcela.

Eis que um dia o jovem Crisóstomo a intercepta em sua cavalgada nas planícies do planalto central, com a suave melodia vinda de sua flauta. Marcela freia a montaria, para ouvir a canção. Ouve e observa ao redor, até visualizar o jovem, no topo de um morro, sentado sobre o tronco de uma árvore. Crisóstomo continua a melodia, interrompida pelos aplausos de Marcela. Desce o morro com a agilidade que a juventude premia. Marcela desce da montaria e, movidos por uma força interior incontrolável, o jovem casal se abraça. Marcela e Crisóstomo não veem o tempo passar. Sobre a relva, declaram seu amor, quando a noite chega e as primeiras estrelas jogam luz sobre o amor nascente, testemunhas das juras e promessas de amor eterno. Os encontros se tornam rotina, sempre às escondidas, distante dos olhares da legião de seguidores de Marcela.

Surgem comentários maliciosos. Marcela e Crisóstomo são alvos da inveja. Suas vidas, ameaçadas. Por outro lado, os que apoiam, também se manifestam e fazem um escudo protetor em volta desse amor puro. Os pais aprovam, felizes, o romance e começam os preparativos ao enlace matrimonial. Agora Marcela cavalga pelos páramos em companhia de seu amor.

Aproxima-se o dia de núpcias. Tudo preparado com requinte. O lugarejo está em festa, ruas enfeitadas; os invejosos vigiam pelas frestas das janelas, remoendo de ódio. Crisóstomo aguarda no altar a entrada de Marcela. Os sinos tocam, o maestro aguarda a entrada triunfal da noiva, a mais bela e cobiçada de toda a região do planalto central, para iniciar o repertório musical escolhido pelos jovens noivos.

Marcela está atrasada. Os convidados esperam. Alguns consultam o relógio. O padre mostra-se inquieto. Comenta-se em voz baixa, que as mulheres sempre atrasam, por vaidade ou perfeccionismo. O tempo passa. Os sinos silenciam. Porquê Marcela demora? É o que cada convidado pergunta em seu íntimo.

Um mensageiro entra e conversa ao pé do ouvido do pai da noiva, que em seguida, dirigi-se ao padre. Os convidados cochicham entre si.

Marcela optou pela liberdade, anuncia o vigário, completando: - Voltem para suas casas, mas se preferirem, vamos todos comemorar. Afinal, o banquete e os músicos esperam. Quanto a você, Crisóstomo, que cara é esta?
- Cara de alegria, seu vigário. Se Marcela é feliz assim, porquê prendê-la? Voltarei aos páramos com minha flauta, livre!

Consta que Marcela e Crisóstomo continuam se encontrando nos campos, sob as carícias das águas dos rios, lagos e cachoeiras, longe dos olhares amestrados pelas normas artificiais.




Inspirado em uma passagem de Dom Quixote: 


"(...) Por Marcela Crisóstomo morreu. Moça de grande beleza, herdeira da fortuna de um tio, teve o infortúnio de ser órfã da mãe que morreu quando do seu nascimento. Muito formosa, foi cobiçada por um jovem que por ela se apaixonou perdidamente a e não suportou sua rejeição. Este jovem, o pastor Crisóstomo, se suicida, e deixa uma narrativa em que acusa Marcela da sua morte.

"No enterro do infeliz amante, Vivaldo pergunta a Dom Quixote porque andava armado, em terra pacífica. Dom Quixote falou da beleza, grandeza e necessidade da cavalaria andante no mundo, oficio por meio do qual a espada e a lança executam na Terra a justiça de Deus. Os amigos de Crisóstomo, jovens igualmente levados pelos ideais pastorais literários, querem puni-la. Mas, quando eles estão reunidos contando a Dom Quixote como ela é má e destruidora, Marcela aparece e lhes faz um discurso em que prova que, por ser amada de Crisóstomo, ela não tem que ceder aos seus pedidos. Por ser mulher, não tem que necessariamente casar-se para buscar proteção. Ela afirma sua liberdade de ir e vir, desimpedida, e de cuidar de seus afazeres, de sua fazenda, sem ter que estar com um homem ao seu lado. (...)"