CONECTADO COM DEUS

Isaias é um mineiro nascido no subúrbio de Belo Horizonte, a capital de Minas Gerais, onde estudou em escola pública e fez carreira como contabilista de uma empresa de médio porte. Chegou a completar o curso de economia na Universidade Federal de Minas Gerais e teve promoção no trabalho, chegando a ser diretor de departamento. Ganhava bem, comprou um apartamento de dois dormitórios, um carro popular zero km e casou com uma colega de trabalho. Viveu feliz até os 35 anos de idade.

Numa noite de domingo o casal Isaias e Inês saíram de um show na Pampulha e iam para casa quando pararam em um semáforo. Duas motos, cada uma com dois ocupantes, estacionaram ao lado do carro deles e sacaram pistolas, mandando que estacionassem. O sinal abriu e Isaias, querendo proteger seu patrimônio - o carro que ainda estava pagando em salgadas prestações- acelerou na tentativa de fugir. Um dos motoqueiros atirou e atingiu o peito de Inês que ficou sangrando. Os bandidos fugiram, pois a avenida estava movimentada. Isaias parou, tentou acudir a esposa e resolveu leva-la para o hospital. A mulher entrou para a sala de cirurgia e de lá saiu morta, para a tristeza do esposo e dos familiares. Mais uma vítima da violência das grandes cidades brasileiras para engrossar a estatística. Pra variar, ninguém foi preso, foi mais um crime impune, como milhares que ocorrem no país. Os números mostram que anualmente mais de 50 mil pessoas são assassinadas no Brasil.

Isaias é um mineiro que conheci na praia de Caraíva, no sul da Bahia, tocando seu violão na beira do rio, vislumbrando o mar ao lado. Era domingo. Isaias aparentava uns 50 anos e tinha uma barba grisalha. Sentei e conversei com o músico. Ele me disse que aprendeu a tocar violão numa igreja e que só cantava músicas de sua autoria. Mas não para o público, pois não era profissional, gostava de tocar para si mesmo ou para poucas pessoas, geralmente amigos que gostavam de ouvir suas canções.

Ao nos ver conversando e o Isaias tocando violão, um grupo de jovens turistas pediu licença e sentaram-se na beira do rio. Queriam curtir o som e a natureza. Uma menina pegou de sua bolsa uma seda de papel e uma trouxinha de maconha e começou a fechar um baseado. Pegou o isqueiro e ligou, dando uns pegas e passando para os seus amigos na volta. A maconha rodou e chegou até a mim que agradeci a gentileza e disse que não fumava nada. Passaram para Isaias que também não quis e falou: “Há anos não fumo mais nada. Já fui usuário de maconha, de crack, cheirei muita cocaína e bebi muito álcool. Quando jovem só bebia umas vodcas, cervejas e fumava uns baseados, mas depois da morte de minha mulher caí em depressão e me larguei nos vícios. Saía pra beber depois do trabalho, arrumei uns parceiros que gostavam de pó e atravessávamos as noites cheirando e bebendo. Com este ritmo de vida comecei a perder o senso de compromisso, a me atrasar e a faltar ao trabalho, até que perdi o emprego, fui demitido na boa, fiz um acordo com a empresa e eles me pagaram FGTS e ainda peguei seis meses de seguro desemprego, além de uma razoável rescisão pelos muitos anos que eu tinha de trabalho. Fui um bom empregado, mas agora estava vacilão e irresponsável, me disse o patrão. Por consideração eles me demitiram sem justa causa para eu não perder os direitos trabalhistas. Não tive outra alternativa a não ser aceitar”, completou Isaias.

Os jovens seguiram fumando, na beira do rio, olhando o mar ao lado. Isaias tocou mais uma de suas canções e falou para nós novamente: “Desempregado eu tinha todo o dia e a noite para me dedicar aos vícios. Além da maconha, que já não me causava um efeito desejável, e da cocaína que eu já achava que estava ficando cara, passei a queimar pedras de crack. Lembro-me das palavras de um amigo meu, um engenheiro em plena decadência moral, ele me disse que eu tinha que entrar na onda do crack que era a melhor droga e mais barata, uma verdadeira viagem da mente. Entrei e me detonei. Gastei toda a grana do fundo, da rescisão e do seguro. Vendi o carro para comprar drogas e bebidas. Quando me dei conta estava vendendo as coisas de dentro de casa, a TV foi a primeira, depois foram o micro-ondas, a máquina de lavar roupas, a geladeira, o fogão, a sala, a estante, a cama, ventilador, ar-condicionado e tudo que havia comprado em anos de trabalho com dinheiro meu e da minha mulher. Quando me dei conta estava só com um colchão, para dormir no piso do apartamento. Eu já não tinha mais lucidez. Era outra pessoa. Meus pais e irmãos tentaram me ajudar mas eu fugia deles, me irritava com eles e outras pessoas que se aproximavam de mim para dar conselhos. Estava sempre irritado e só pensava em consumir qualquer droga ou bebida alcóolica, dia e noite. Minha mãe ia me visitar e não me encontrava, então deixava na porta do apartamento uns sacos com pastéis, salgadinhos, pães, bolachas, garrafas de refrigerantes, comidas que não iriam estragar se eu demorasse a voltar pra casa. Eu chegava e comia aquilo como um animal faminto, com as mãos, até saciar a fome depois de dias de drogadição.”

“Que vida fudida, meu!” disse a menina que tinha ligado o baseado.

Nestas alturas o baseado tinha acabado. Os jovens estavam chapados, quietos, querendo ouvir novas canções, mas Isaias continuou com sua conversa, falando de sua vida.

“Um dia peguei meu colchão e fui até uma boca de fumo trocar por pedras de crack. Era meu último bem móvel. O chefe da boca ainda disse que só pegaria o colchão porque eu era cliente da antiga, mas que trouxesse coisa melhor, que roubasse por aí, de preferência telefone celular. Eu já tinha torrado meu celular, uma câmera fotográfica da Inês, um liquidificador e tudo que prestava de dentro de casa. Só faltava vender o apartamento pra fumar, cheirar e beber. Na saída da boca de fumo uns malucos viciados me abordaram para roubar minhas pedras. Eu disse não. Reagi e fui esfaqueado por três caras. Me enfiaram as facas na barriga e ao tentar fugir me atingiram nas costas. Caí ensanguentado e desmaiei. Quando acordei estava numa cama de hospital, os parentes na volta, com caras de pessoas tristes e decepcionadas. E eu não podia me mexer que doía tudo. Não morri por um milagre, pois as facas cruzaram perto dos rins e do fígado por milímetros, disse-me o médico que fez a cirurgia. Eu teria que ficar no mínimo um mês deitado, imobilizado. Quando acordei a primeira coisa que pensei foi nas pedras que eu tinha perdido para os desgraçados que fugiram pelos becos estreitos da vila.”

- Esta conversa está muito longa e triste, disse um dos jovens. É melhor tu tocar alguma coisa pra nós aí neste teu violão.

- Não, deixa o cara terminar, fiquei curiosa, disse a menina de uns vinte anos.

Isaias bateu levemente os dedos nas cordas do violão e continuou falando:

“Fui socorrido por um velho que passava de carro pelo local e parou quando me viu caído, ensanguentado e gritando, e viu que os viciados fugiram. Colocou-me no carro sem se importar se ficaria sujo de meu sangue, e me levou para um hospital. Depois descobriu meu nome na carteira de identidade que eu sempre carregava no bolso e foi atrás de meu endereço e localização de meus pais e irmãos. O velho era um destes pastores evangélicos e me salvou da morte certa, pois eu sangraria até morrer ali naquela saída de beco. Fiquei o mês todo sem álcool, sem crack, sem maconha, sem cocaína, só tomando soro nas veias, me alimentando e ouvindo o pastor que ia me visitar todos os dias, ao fim da tarde. Me falava coisas que eu já sabia mas nunca dei importância, sobre Jesus, do amor de Cristo por nós, do perdão dos pecados, do amor, do arrependimento, de uma nova vida em paz e etc. Eu fui revendo meus últimos anos de vida e percebi as burradas que tinha feito desde a morte de Inês. Perdi tudo. Menos a vida e o apartamento. Quando saí do hospital fui levado para minha casa, onde encontrei uma cama de solteiro, uma mesa com duas cadeiras, um fogão, uma geladeira usada, um pequeno guarda-roupas, toalhas, lençóis, panelas, pratos, talheres e coisas básicas para seguir a vida. Sobre a mesa havia uma Bíblia que passei a ler, pois não tinha aparelhos de televisão e nem de rádio na casa. Estes móveis e utensílios usados me foram dados pelos meus pais, irmãos e pelo pastor que se tornou meu amigo. Um dia ele me convidou para ir num culto e eu resolvi ir, afinal tinha muito a agradecer a Deus e a ele que tinha me salvado da morte. Lá chegando me encantei com aquela música, o teclado, os violões, a bateria e o coral cantando. Aquele som invadiu minha alma e me deu um arrepio. Todos ali bem vestidos, mulheres bonitas, jovens cantando e orando sem preconceitos, pessoas do bem e sem vícios. Escutei a pregação, lemos trechos da Bíblia e ao final o pastor chamou quem quisesse entregar sua vida a Cristo. Automaticamente, meio sem jeito e ainda com dificuldades no caminhar devido às facadas recém cicatrizando, fui à frente. O pastor colocou a mão sobre minha cabeça e fez uma oração pela minha saúde física e mental. Estremeci de emoção. Foi um marco em minha vida. Nunca mais senti vontade de fumar, de cheirar ou de beber. Decidi que já tinha usado drogas e bebidas o suficiente na minha vida, que não necessitava de vícios para ser feliz, que iria buscar a paz de espírito sem consumo de drogas. E foi o que fiz nos últimos anos. Vendi meu apartamento e comprei uma casa aqui nesta praia. Aprendi a fazer pão integral e comida naturalista que ofereço aos turistas e moradores que buscam uma vida saudável. É meu novo estilo de vida. Também encontrei um novo amor, pois quando eu estava na drogadição nem isso eu queria, nem pensava em sexo e carinho, só queria queimar pedra, não tinha outro prazer. Aqui conheci uma mulher maravilhosa que me recebeu em sua vida e vive comigo em paz. Ela também participa da igreja evangélica comigo e somos felizes. Mas agora eu quero cantar uma das minhas canções para vocês. Pode ser?” –perguntou Isaias.

Os jovens concordaram. Ele deu uma afinada no violão e começou a cantar uma de suas canções:

“Conectados com Deus devemos sempre ESTAR

Adorando ao Senhor e seu Amor

Em todos momentos da vida

Conectados com Deus.

No trabalho ou na escola

Nas ruas, nas praias e serras

Conectados com Deus em Seu louvor,

Conectados com adoração e temor

Amando a palavra de Jesus com ardor.

O poder da oração é o fogo do espírito

A razão do coração é a fé em Jesus Cristo

O Rei dos Reis, o Deus do amor e do perdão.

Orai com fé, ó humanidade,

Todos os dias e todas as horas

Agora e sempre pela paz

Conectados com Deus.”

“Desculpem-me se falei demais”, disse Isaias, sorrindo, “mas quando vejo uns jovens como vocês, saudáveis e bonitos, usando drogas, mesmo sendo apenas uma maconha que é leve e causa pouco mal, eu não consigo deixar de relatar minha experiência com o vício. Espero que este fuminho pra vocês seja apenas um momento de curtição de férias. E não fiquem presos a preconceitos sobre religião, pois até mesmo os ateus creem em algo, no caso o materialismo. A vida é curta e devemos buscar a paz. Cada um na sua ótica, na sua fé. Eu escolhi a minha e estou feliz com esta escolha que não me priva de nada, tenho o livre arbítrio, assisto TV, uso computador e todas as tecnologias que quero, sem detonar meu organismo e minha mente. Uma vida boa e aqui, na beira deste marzão. Agora, se me dão licença, vou para casa porque tenho várias encomendas de pães e comidas para entregar aos meus clientes. Um abraço, saúde e paz pra vocês. Se cuidem neste mundo de crimes e violência, busquem sempre os bons caminhos e tenham sorte.”

Isaias levantou-se da areia, pegou seu violão e seguiu a passos lentos, assoviando uma canção mineira.

A menina de vinte anos e seus amigos também levantaram e partiram para um mergulho no tranquilo rio ao lado do mar. Antes disso deram-me tchau e gritaram para Isaias:

- Valeu, tio!

Vladimir Cunha dos Santos,

no livro Barulho do Mar, 2017.

VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS
Enviado por VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS em 26/10/2017
Código do texto: T6153428
Classificação de conteúdo: seguro