Pelas tampas
O baticum podia ser ouvido de longe, reverberando pelas encostas do Aventino até as margens do Tibre. No cair da noite romana, à luz de tochas, grupos de plebeus, nobres, escravos, locais e forasteiros, de ambos os sexos e todas as faixas etárias, a maioria a pé, convergiam para um grande cercado nos fundos do templo de Sêmele. Ali, na entrada, um grupo de moças sob a supervisão de um homem baixo, meio calvo, cobravam entrada.
- Open bar por apenas um denário! - Gritava o homem. - Homem paga um sestércio, mulher entra de graça!
Aulus Nipius, filho caçula do senador Amulius Sepunius, acercou-se cautelosamente do mestre de cerimônias, após apear do seu cavalo.
- Desculpe, é a primeira vez que venho aqui... onde deixo meu cavalo?
O homem, um plebeu, pelo que pode avaliar, olhou-o de cima a baixo.
- Temos serviço de valete, patrão... está incluído no open bar, por apenas um denário!
- E se eu não quiser esse "open bar"... seja lá o que isso for?
- Então deixa o possante na mão dos flanelinhas... - retrucou o mestre de cerimônias, indicando alguns garotos andrajosos, sentados em pedras próximas ao cercado. Aulus Nipius fez cara de nojo.
- Não vou deixar meu garanhão da Farsália nas mãos desses piolhentos.
- Então, pague um denário e eu chamo o valete - atalhou o homem. - O seu possante vai ser escovado em nossa cocheira VIP e serviremos capim gourmet da Tessália para ele, colhido por virgens do templo de Diana.
- Como é que é? - Aulus Nipius parou, boquiaberto com a falação, segurando o cavalo pelas rédeas.
- Garoto, você está me atrapalhando... isso aqui é um espetáculo profissional! - Irritou-se o homem. - Está ouvindo essa percussão? É do Nonus Africanus em pessoa... o cara tocou tambor por dez anos numa trirreme cartaginesa!
E como Aulus Nipius continuava com ar de quem não estava entendendo nada, o mestre de cerimônias pegou uma de suas ajudantes pelo braço e a pôs na frente do rapaz:
- Favonia Sosia... grude no fedelho e seja a guia dele, assim que pagar o denário do open bar!
A garota, morena, queimada de sol, não devia ser muito mais velha do que Aulus Nipius, mas tinha a expressão matreira de que ganharia fácil no quesito experiência de vida. Com um sorriso brejeiro, estendeu a mão direita aberta para ele.
- Não é para beijar ou apertar... coloque um denário aqui!
Aulus Nipius deu-se por vencido e puxou um denário da bolsa que trazia pendurada na cintura. Colocou a moeda na mão da moça, que mais do que depressa a enfiou no decote da túnica. Acompanhando o olhar perscrutador dele, ela comentou, com um sorrisinho safado:
- Não é tão elegante quanto a sua pochete, mas tem suas vantagens.
E antes que ele pudesse dizer alguma coisa, virou-se para trás e gritou:
- Valete!
* * *
Braço dado com Favonia Sosia, Aulus Nipius entrou no recinto cercado. O lugar era grande. Lembrava um anfiteatro, mas sem degraus. Os frequentadores espalhavam-se pelo espaço, sós ou em grupos, requebrando ao som frenético da percussão que vinha de um grande altar nos fundos do templo. Sobre o altar, dez percussionistas batucavam em címbalos e tambores, sob o comando de um negro alto, cabeça raspada, peito nu, cheio de pulseiras de cobre.
- Aquele é o Nonus Africanus! - Gritou Favonia Sosia, para se fazer ouvir acima do barulho.
- Por que tanto barulho? - Gritou de volta Aulus Nipius.
- É pra fazer você esquecer da vida! Nosso lema aqui é: "dance, beba, afogue as mágoas"!
- Dançar?!
- Solte o corpo! Assim!
Favonia Sosia começou a requebrar na frente dele, na batida da música.
- Vai garoto! - Um grupo próximo começou a incentivá-lo, batendo palmas. Meio constrangido, ele começou a mexer a cintura, e instantes depois, estava imitando a sua parceira. Do altar, Nonus Africanus, gritava para a massa em frenesi:
- Quero ver mexer! Rebolando até o chão! Vai com tudo! Balançando o popozão!
Favonia Sosia virou-se de costas para Aulus Nipius e ordenou:
- Me pega pela cintura!
- Pelos deuses! Mas aqui... em público?! - Exclamou o garoto.
- Isso é dança! - Gritou ela, dando uma gargalhada.
- Dança do acasalamento?
- Bote as mãos na minha cintura e siga o que eu fizer com o corpo... mas sem encostar! Só as mãos! - Advertiu ela, ainda rindo.
Aulus Nipius segurou a garota como lhe havia sido ordenado e procurou imitar os passos dela da melhor forma possível. Sentia-se eufórico, e não havia bebido ainda uma gota de álcool sequer. Então era aquele o "barato da Sêmele" de que seus amigos haviam lhe falado?
- Isso é bom demais! - Gritou ele, sentindo o corpo suado de Favonia Sosia requebrar sob suas mãos.
- Só as mãos! - Reafirmou ela, rindo.
* * *
Amulius Sepunius encarou seus pares com ar circunspecto. O senado, que comparecera em massa, aguardava a conclusão de sua diatribe.
- Essa pouca vergonha tem que acabar! - Finalizou, dedo em riste.
Os senadores entreolharam-se, ar confuso.
- Data venia, nobre senador Amulius Sepunius... peço a palavra - disse o senador Publius Calidius, erguendo o braço.
- Pois não, nobre colega - acedeu o orador.
- Pelo relato que nos fez, o seu filho caçula contou-lhe ter passado momentos de profunda diversão no tal cercado da deusa Sêmele... no qual os visitantes tinham que fazer uma doação em metal sonante à entrada?
- Sim!
- E dentro do tal cercado, eram executadas danças rituais em homenagem à citada deusa, por homens e mulheres, sós ou em grupos?
- Sim!
- E algumas dessas danças eram... bem... simulações de atos sexuais?
- Sim! Sim!
- E que mal há nisso, pode nos dizer o nobre senador? - Inquiriu secamente Publius Calidius. - Uma bacanal organizada, num recinto fechado, sem que a ordem pública seja quebrada e contando inclusive com serviço de valete?
No silêncio que se seguiu, podia-se ouvir o voo de uma mosca. Finalmente, foi quebrado por Amulius Sepunius:
- Os nobres colegas estão surdos? A pouca vergonha a qual eu me referia não era essa! Estou falando dessa mistura indecente de nobres e plebeus, estrangeiros e escravos! Todos nivelados por baixo! E rebolando até o chão, como se não houvesse amanhã!
Publius Calidius baixou a cabeça.
- Percebo.
- Isso me parece sedição... - alguém murmurou do fundo da assembleia.
- Daqui a pouco, vão começar a pedir reforma agrária - comentou outro.
O burburinho continuou a crescer, enquanto Amulius Sepunius aguardava de pé, braços cruzados. Finalmente, ergueu os braços para pedir silêncio.
- Todos são favoráveis a que se ponham as bacanais fora da lei? - Indagou.
- Exceto se expressamente autorizadas pelo Senado, no interesse público... - aparteou Publius Calidius.
- Que seja. Todos a favor?
Quase trezentos braços ergueram-se favoravelmente de ambos os lados do salão.
- [31-01-2018]