CAPÍTULO 1: O NASCIMENTO

Tão logo nasceu já se pôs a andar pela casa de chão batido. Era de manhã. Manhã bem cedo, o sol ainda não tinha acordado. Pode até parecer estranho, mas era assim naquele povoado, ou vila (não se sabe mais como era chamado aquele aglomerado de casebres!), as crianças mal nasciam já tinham que aprender a se virar. Aliás, muita coisa acontecia de maneira diferente naquele lugar a única coisa que não fugia a normalidade era a gestação! As mães tinham que carregar seus filhos nove meses, apesar de todas as adversidades a anormalidades a que estavam sujeitas ali.

Era um lugar árido, onde fazia tempo que nada crescia. A última árvore nascera exatos cem anos antes da história que vamos narrar. A localização também é um problema para esse lugarejo, pois fica num canto fora de qualquer mapa, uns dizem que é em algum lugar nos desertos da África, outros preferem arriscar dizendo que é um povoado perdido no sertão nordestino de nosso Brasil. Mas alguns dizem que esse lugarejo apenas muda de lugar quando se fazem os mapas, por isso não consta em nenhum! Arriscamos dizer que estes estão certos!
Mas esse dia, o dia em que nossa história começa, começou diferente! Os raros moradores que estavam de pé quando o sol nasceu, puderam ver que havia algumas poucas nuvens atrasando o romper do dia. Nuvens escuras, de chuva pesada. Ficaram admirados, mas não se iludiram. Pois o mais difícil ali era chover, talvez nenhum dos moradores atuais já tinha visto uma chuva. Pode-se até dizer que apenas as mães encantadas, que moravam em alguns daqueles casebres, já tinham visto a chuva, e ainda assim as que já estavam encantadas a muito tempo. Mas as nuvens não paravam de chegar, e já cobriam a metade do céu. O que todos agradeceram, pois haveria um pouco de sombra! Já que nada ali fazia sombra, senão as paredes gastas dos casebres, e até mesmo a árvore centenária não tinha uma só folha, era apenas um tronco e um emaranhado cinza esbranquiçado de galhos secos e retorcidos. Somente seu tronco grosso e forte era capaz de recordar da majestade que um dia tivera, mas que há muito acabara.
Dentro do casebre, talvez o mais decaído de todos, onde nossa história tem início, a pobre mãe que sofria com as dores do parto desde a madrugada, não participava do assombro geral. Tampouco ouviu um pássaro piar, o que fez todos os outros moradores saírem de suas casas, pois um pássaro era tão raro quanto a chuva. Ela não tinha como saber que o pássaro dera um pio, voara por sobre todas as precárias habitações e pousara sobre a palha ressequida que era o teto de sua casinha, silencioso, como que aguardando algo.
A mãe olhava agradecida para o canto onde seu filho fora parar, dando fim assim ao doloroso trabalho de parto. Era uma bela criança. A mãe não se surpreendeu com a criança já nascer andando, pois já tivera outros filhos. Ali naquela terra, as crianças tinham que aprender a se virar sozinhas cedo, senão não viveriam. O que a surpreendeu foi a grossa gota de chuva que caiu por um buraco que ela nunca pensara em consertar no teto, visto que ali não chovia nunca, e as gotas que seguiram a primeira surpreenderam toda a população que saiu para comemorar, cantando e rindo, como nunca fizeram antes. Dentro da casinha a mãe sorria, também deitada à um canto, estendendo os braços na direção da criança disse:
-Filho!
Por mais surpreendente que possa nos parecer, a criança ficou de pé, abriu os braços e se preparou para dizer algo. Mas foi interrompida por algo extraordinário, o pássaro que até então estivera no telhado da casa entrou voando silenciosamente, e pousou entre mãe e filho, olhando fixamente para a criança, como que para ter certeza de que estava no lugar certo. Piou de uma forma triste e longa, que soou como uma interrogação e inclinou a cabeça para a pequena criança. Era um pássaro esquisito! Grande e cinza, mas não um cinza comum, mas um cinza desbotado, como se fosse muito velho e tivesse perdido a cor com o passar dos anos, seu bico era curvo como o de um papagaio, de sua cabeça subia um majestoso topete, como que uma coroa. Cinza. Ave, bico e crista, tudo do mesmo tom desbotado. Somente seus olhinhos indagadores e as garras de suas patas se destacavam com um tom mais intenso e vivo de preto.
A criança sorriu, e já se podiam ver pequenos dentinhos. Estendeu a mão e tocou na cabeça inclinada da ave. Algo realmente lindo aconteceu. Foi como se, apesar da chuva, o sol brilhasse acolhedor ali. Uma luz dourada e cálida saia do contato da criança e a ave. A mãe olhara para outro lado para proteger os olhos daquela repentina luz, mas ainda estava sem forças para se mover, o trabalho de parto exigia muito, e há vários dias não comia direito. A terra de seu quintal já estava bem dura, não servia mais para o consumo, não que terra fosse um alimento ideal, mas por muito tempo era tudo que eles tinham! Ela podia esquivar-se apenas com o olhar, então era isso que fazia.
 Notou então que uma mudança se operava em toda a casinha! O desbotado das paredes já não existia, dera lugar há um marrom molhado, que era a cor da casinha quando fora construída, muitos anos antes. A colcha que cobria a pequena cama que ficava num canto também mudou de cor e se renovava. A mãe olhava admirada as transformações que ocorriam ao seu redor. Parecia que tudo estava ganhando vida, readquirindo suas cores originais. Algumas cores a mãe nem conhecia, pois nunca saíra daquela terra, e desde que se lembrava, as coisas eram desbotadas.
Foi assim que, enquanto observava as mudanças ao redor, na sua moradia de um cômodo só, seus olhos pousaram novamente em seu filho e na ave. A luz dourada ainda estava lá, mas não machucava os olhos como ela pensara de início. Ela ficou ainda mais surpresa com o que viu, seu filho parecia ter crescido um pouco e já sorria com seus dentinhos completos, a ave também mudara. Sua cor era de um vermelho forte, vivo, que descia pela cabeça e apenas em alguns lugares, onde surgiam penas eram azuladas ou negras. Seu bico era dourado como o ouro, da mesma cor de suas patas. Se alguém visse só saberia ser a mesma ave por causa das garras e dos olhinhos que continuavam iguais. Negros.
“Nossa!” pensou a mãe, “esse é o pássaro mais belo que eu já vi, mesmo que seja o único que eu tenho visto.”
A ave então balançou a cabeça e abriu as grandes asas, como se fossem novas, e as olhou assim abertas. Poder-se-ia dizer que a ave sorria! Abaixou a cabeça e deixou que o menino a acariciasse novamente. A mãe já ia fechar os olhos, mas dessa vez nada aconteceu. A ave fez como que uma reverencia para a criança, depois fez o mesmo para a mãe. Esticou mais uma vez as asas e voou. Deixando em seu lugar apenas um canto maravilhoso que aquecia os corações.
O menino esticou os braços para sua mãe, sorriu com a perfeição de seus dentes de leite e disse sua primeira palavra:
-Cores!
...
Longe dali, no fim da Estrada Para Todos os Lugares, Aquele Que Deve Ser Vencido observava o seu Espelho Que Tudo Mostra e sorria. Um sorriso frio que tomava apenas os seus lábios, sem chegar aos olhos. E disse, sem qualquer emoção na voz:
-Enfim, a criança nasceu.
Sabia disso pelos sinais, o Espelho não lhe mostrava a criança, mas havia parado em um lugar esquecido e distante, onde nuvens escuras se formavam.
Nuvens de chuva que se refletiam em seus olhos.
Quem pudesse olhá-lo dentro dos olhos veria uma fúria e um terror maior que a chuva que se refletia neles. Maior que qualquer tempestade que a Terra conhecera.