Insubordinação

Noite calma e céu estrelado.

A bordo de uma lancha, o capitão Neves e o tenente Almeida deslocavam-se de volta ao encouraçado "Minas Gerais", após jantarem com oficiais franceses do cruzador "Douguay-Trouin", igualmente ancorado na Baía de Guanabara.

- Imaginei que fosse demorar-se mais, capitão - comentou Almeida. - Não é todo dia que podemos privar da companhia de oficiais de uma potência naval como a França, aqui em nossas águas...

- Creio que seu interesse maior estava naquele excelente bordeaux que serviram no jantar - gracejou o capitão. - Esse, de fato, não é algo que se encontre todos os dias nestas águas... pelo menos, não depois do fim do Império.

E voltando-se para a silhueta iluminada do encouraçado, à distância:

- Mas, falando em bebida, estou com um mau pressentimento desde hoje cedo. Os marujos estavam cochichando pelos cantos depois que mandei chicotear aquele bêbado, o Marcelino...

- A sua atitude foi a correta, capitão - contemporizou o tenente. - Não podemos tolerar esses marujos broncos embebedando-se a bordo de um navio de guerra; não em pleno século XX.

- Século XX... - suspirou Neves. - Alguns reclamam pelo Brasil ter sido o último país das Américas a abolir a escravidão, mas veja gente como Marcelino: pouco mais que brutos, animais. Fazem qualquer coisa por uma garrafa de cachaça. Com essa cambada, só na chibata mesmo.

- Concordo, capitão - aduziu o tenente. - Há quem reclame que a Marinha é excessivamente severa com os marujos, mas os que defendem "tratamento humanitário" não tem que lidar com essa escória no dia a dia.

- E não só isso... - prosseguiu Neves. - Marcelino feriu o cabo que o delatou por contrabandear bebida; embriagar-se já seria suficientemente grave, mas insubordinação, é imperdoável. Se mandei aplicar mais do que as 25 chibatadas previstas na lei, foi para que a lição ficasse bem clara para os demais broncos.

O "Minas Gerais" já estava próximo, e uma movimentação pouco usual se via em seus conveses iluminados.

- Aconteceu alguma coisa... - murmurou Neves. E, para o marinheiro que conduzia a lancha:

- Dê a volta, Anselmo... devagar.

Nas amuradas do encouraçado, vultos de marujos aglomeravam-se para ver a embarcação que se aproximava, em tensa expectativa.

- É impressão minha, ou estão preparando-se para partir? - Indagou-se Neves.

A lancha aproximou-se do costado do navio. Uma escada foi baixada, sem demora.

- Parece que voltamos à normalidade, capitão - concluiu Almeida, aliviado.

- É o que veremos - retrucou Neves.

E deu duas pancadinhas na pistola que trazia à cintura.

- [10-04-2018]