Oportunidade de trabalho

Foi um golpe de sorte. A noite já havia caído, os lampiões de gás acesos, e estávamos vagando, eu e Céline, minha irmã caçula, pelas ruas de Buttes Chaumont, 19º Arrondissement, quando, ao entrarmos na rue d'Allemagne, um pouco antes da Scierie Lombard, vimos uma janela de segundo andar abrir-se num prédio escuro, e alguém atirar um saco de aniagem por ela. Com a pressa ditada pela necessidade, corremos até lá e recolhemos o saco, que devia pesar 4 ou 5 kg. Joguei o peso do nosso incerto butim sobre as costas, corremos para longe da luz dos lampiões e entramos num beco, onde abrigados sob uma marquise, abrimos o saco, cuja boca estava amarrada por uma corda, para ver o que continha.

- Roupas... parecem boas! - Sussurrei, extasiado.

- Que sorte! - Sussurrou Céline de volta.

Havia meia dúzia de vestidos simples, dois casacos de lã com botões de chifre, meias, lenços e um par de botinas femininas, usados, mas em perfeito estado e limpos. No meio das roupas, um objeto metálico responsável pela maior parte do peso: uma velha balança de ourives, enrolada numa pedaço de couro.

- Por que jogaram isso fora? - Perguntou Céline, abismada.

- Não faço ideia, mas é melhor sairmos daqui antes que se arrependam e venham buscar - atalhei.

Cautelosamente, voltamos para a rua iluminada e seguimos nosso caminho para a loja de Christophe, o "chineur". Christophe era quem geralmente comprava objetos que gente como nós - "chiffonniers" - recolhiam do lixo atirado às ruas. Mas, normalmente, nunca achávamos nada tão bom quanto nossa carga daquele dia, já que as pessoas normalmente só jogavam fora aquilo que era inservível.

- Quanto acha que vale a balança? - Perguntou Céline.

- Talvez dê pra conseguir nove ou dez francos... - especulei.

- É muito dinheiro, - ponderou ela - mas acho que devíamos tentar vender somente as roupas e guardar a balança pra vender em outro lugar. Christophe pode tentar nos roubar.

E assim fizemos. Escondemos a balança em nosso "esconderijo secreto", dentro de uma galeria de esgoto, e fomos ver o chineur, que estava atendendo outros chiffonniers, inclusive várias crianças e adolescentes como nós. Tivemos que esperar pacientemente pela nossa vez, enquanto ele pagava aos demais.

- O que os meus ratinhos conseguiram hoje? - Perguntou finalmente o velho de cara vermelha, fazendo sinal para que nos aproximássemos do balcão da loja atravancada de sucata.

- Temos roupas, Christophe - anunciou solenemente Céline. - Roupas boas!

Ele examinou tudo com atenção. Pareceu gostar das botinas.

- Onde acharam isso? - Indagou finalmente, nos olhando por cima dos óculos.

Nos entreolhamos.

- Jogado na rua, em Buttes Chaumont - respondeu Céline.

- Alguém de muito bom coração, imagino... bem, são cinco francos pelas roupas, mais três pelas botinas.

Para quem estava acostumado a receber cêntimos por cascas de laranja, rolhas e guimbas de cigarro, oito francos eram uma fortuna. Agradecemos efusivamente.

- Não espalhem por aí, ou vão dizer que enlouqueci - avisou-nos ele, dedo erguido.

- Não vamos contar - prometemos.

Quando saímos da loja rumo ao porão que dividíamos com mais dez pessoas, Céline sussurrou ao meu ouvido:

- Acho que já sei aonde poderemos levar a balança...

* * *

E na manhã seguinte, lá fomos nós para a rue de l'Entrepôt, no 19º Arrondissement, carregando a balança no saco de aniagem. Paramos em frente a um prédio de três andares, fachada adornada por colunas e com uma inscrição em baixo-relevo onde se lia: Mont-de-Piété. Um fluxo constante de homens e mulheres humildes entrava e saía do prédio.

- Eu não sei se é uma boa ideia vir aqui - ponderei. - Afinal, eles não compram nada, só penhoram.

- Tenho certeza de que vão avaliar melhor do que Christophe - insistiu Céline.

- Está bem... - suspirei.

Entramos no prédio e aguardamos até que um avaliador nos chamou.

- Isso é seu? - Perguntou o funcionário, ar de suspeita.

- Era do meu avô - menti.

- Nosso único bem - acrescentou Céline. O que não estava muito longe da verdade, aliás.

O homem abanou a cabeça, como quem não está acreditando muito, mas começou a preencher um recibo. Quando o exibiu para nós é que compreendemos que o acaso nos sorrira.

- São 100 francos, e a taxa de juros é de 9,5%. Se não voltarem para buscar o objeto em um ano, ele será vendido. Ficou claro?

Mais do que claro. Assinei o recibo e recebi a quantia; nunca havíamos visto uma soma assim em toda a nossa vida.

- O que vamos fazer com esse dinheiro? - Perguntou Céline.

Sentamo-nos na calçada em frente ao Mont-de-Piété para pensar.

- Vamos investir num negócio... - decidi finalmente. - Um no qual você possa trabalhar. Chega de catar lixo!

E então, usamos parte do empréstimo para comprar um carrinho, que Céline empurrava pelas ruas de Paris, vendendo flores. E foi assim que ela conheceu Raphaël.

Mas essa, é uma outra história...

- [19-04-2018]